9ª Simulação Clínica

Comportamento proativo

Objetivo:

Exercício de medicina multidimensional na assistência a uma paciente muito jovem com câncer de mama que expressa mutação dos genes supressores tumorais BRCA1 e BRCA2

James Fleck, Conexão Anticâncer, 9ª Simulação Clínica

 

Capítulo 1: A expressão do perfil proativo

O perfil proativo foi inspirado no trabalho do Dr. Viktor Emil Frankl, neuropsiquiatra existencialista austríaco. Em seu livro “Man’s Search for Meaning” descreveu sua experiência como vítima do holocausto:

"Nós tropeçávamos na escuridão, sobre pedras e poças grandes, ao longo da estrada que levava a um acampamento. Os guardas do acompanhamento gritavam e conduziam-nos com as coronhas de seus rifles. Pessoas com pés feridos apoiavam-se nos braços de seus companheiros. Quase nada era falado, pois o vento gelado não incentivava a conversa. Escondendo a boca atrás da gola do casaco, virada para cima, o homem que marchava ao meu lado sussurrou de repente: Se nossas esposas pudessem nos ver agora!  Eu espero que elas estejam em melhor situação em seus acampamentos e não saibam o que está acontecendo conosco!

Lembrei de minha mulher. E como nós tropeçávamos por milhas, deslizando sobre o gelo, apoiando-se uns nos outros, arrastando o outro para cima e para a frente, nada foi dito, mas nós dois sabíamos que cada um estava pensando em sua esposa. Às vezes, eu olhava para o céu, onde as estrelas começavam a desaparecer e a luz rosa do amanhecer espalhava-se atrás de um conjunto de nuvens escuras. Minha mente agarrava-se a imagem da minha mulher, imaginando com uma intensidade fantástica. Ouvi-a falar, via seu sorriso, seu olhar franco e encorajador. Real ou não, esta visão era mais luminosa que o sol que começava a surgir.

Um pensamento ocorreu-me! Pela primeira vez na minha vida eu vi a verdade como ela é definida na música por tantos poetas e proclamada pela sabedoria de tantos pensadores. A verdade é que o amor é o melhor e o maior objetivo que o homem pode aspirar. Então eu percebi o significado do maior segredo que a poesia, o pensamento e a crença humana tem para dar. A salvação do homem ocorre através do amor. Compreendi como um homem, que não tem mais nada neste mundo, pode ainda alcançar a felicidade, mesmo que seja apenas por um breve momento, na contemplação de sua amada. Em uma posição de total desolação, quando o homem não pode se expressar em ação positiva, quando sua única realização consiste em suportar seus sofrimentos com dignidade, o homem pode, através da contemplação da imagem que ele carrega de sua amada, realizar-se e sentir-se pleno".  

Man's Searching for Meaning

Viktor Emil Frankl, MD, PhD (1905 - 1997)


O Dr. Frankl usou a palavra proatividade para descrever um comportamento humano que assumia integral responsabilidade por seus atos e sentimentos, independentemente das circunstâncias externas ou interferência de outras pessoas. Seu trabalho valorizava a determinação, a coragem e a responsabilidade individual. 

Há muito, eu já havia observado que a condição emocional prévia do paciente desempenhava um papel essencial no enfrentamento do câncer. 

Havia um perfil psicológico saudável, no qual o impacto causado pela doença era manejado com a mesma naturalidade empregada na superação de outras crises vivenciais menores. Este traço comportamental consistia em um perfil biopsicossocial caracterizado pelo exercício da proatividade. Alguns pacientes o expressavam espontaneamente. Em outros, era necessário buscá-lo e estimulá-lo a partir de indícios que apontavam para sua existência subjacente. 

O paciente proativo tendia a sair rapidamente de uma atitude passiva e submissa frente a doença. A busca ativa de informação representava um dos principais recursos que ele costumava usar no encaminhamento adequado das soluções. Promovia um vínculo imediato de cumplicidade com o médico. Brotava uma relação de confiança mútua. Não havia censura. O diálogo era livre e objetivo. O médico sentia-se mais gratificado, pois suas intervenções geravam resultados mais imediatos. Criava-se uma situação harmônica de administração da doença, em que o enfrentamento era potencializado pela aliança médico-paciente, visando objetivos comuns. 

A relação de confiança permitia o diálogo continuado e esclarecimento eficaz de todas as dúvidas que costumavam ocorrer no diagnóstico e tratamento do câncer. O diálogo e a informação favoreciam uma visão clara e objetiva da realidade, afastando fantasias e projeções indesejáveis. 

O perfil proativo era inquisitivo. Isto já costumava ser manifestado na primeira consulta e não poderia intimidar o médico. Pelo contrário, o médico precisava estimulá-lo. O paciente não estava testando o médico. Ao questioná-lo, o paciente já estaria propenso a estabelecer o vínculo. Significava que algum grau de empatia já havia ocorrido. 

O perfil proativo tinha relação com a vontade de viver, com a esperança e com uma visão de futuro otimista. Não seria um traço exclusivamente genético, mas sim uma adaptação comportamental positiva frente a adversidade.

 Na proatividade não haveria determinismo genético, psíquico ou ambiental induzindo o comportamento humano. O paciente proativo assumia a responsabilidade por sua vida. Seu comportamento nunca era influenciado pelas expectativas de outras pessoas ou circunstâncias adversas. Não havia imputação de culpa e as decisões eram baseadas em uma escolha consciente, sustentada por valores. Estas pessoas tinham uma percepção aguçada da natureza humana e um desprendimento facilitador no processo decisório.  


Capítulo 2: O aborto clandestino

Leila tinha 24 anos, inteligente, dinâmica e criativa havia recém completado o curso de arquitetura. Era uma jovem graciosa e comunicativa que estabelecera uma relação afetiva com Raul, um colega peruano que viera ao Brasil para fazer um mestrado em urbanismo. Tinham objetivos comuns e rapidamente a afinidade progrediu para uma relação de convivência quotidiana. Começaram a viver juntos, a despeito do pouco tempo de conhecimento mútuo. Era uma relação descontraída e descompromissada em que compartilhavam despesas, expectativas, frustrações e alegrias. Eram dois jovens inconsequentes, simulando uma vida conjugal. 

Leila julgava que vivia uma situação de amor e precipitou uma gestação. 

Raul surpreendeu-se com a situação e assumiu, imediatamente, uma posição contrária. Ele, com 28 anos, tinha outros planos para sua vida, que antecediam de muito a paternidade. 

Criticou a atitude impensada de Leila, que qualificou como irresponsável e traiçoeira. 

Foi explicito em recomendar o abortamento. 

Leila, inundada pelo encanto da maternidade, já havia feito uma ultrassonografia e portava consigo uma foto do embrião, fruto de uma concepção não consentida. 

O que para ela representava um filho desejado, para ele era um empecilho ao pleno exercício da liberdade e crescimento profissional.

Os pais de Leila eram pessoas sensíveis. Leila era a mais jovem das duas filhas do casal. Quando tomaram conhecimento da gestação da filha, acolheram-na e colocaram-se a disposição para apoia-la no que ela necessitasse. 

Não houve censura ou julgamento, apenas uma resignada aceitação. A posição dos pais não era fundamentada em qualquer aspecto legal, moral ou religioso. Era puramente afetivo. Mesmo que Leila decidisse enfrentar aquela gestação sozinha, ela teria o desprendimento e a cumplicidade dos pais.

Apesar do apoio familiar, Leila sentira-se ambivalente. 

Ela sonhara com uma situação de aceitação plena. 

Em sua fantasia, Raul iria vibrar com a concepção, pois o via sob a ótica da alma feminina. Revoltara-se com a atitude egoísta e incompreensiva de Raul. Passou a rejeita-lo e inconscientemente transferiu este sentimento ao filho. 

Optou, impetuosamente, por abortar.

Leila desabafou com Thereza, sua irmã mais velha e juntas procuraram uma clinica de abortamento clandestino. 

Era um ambiente dissimulado, localizado na periferia da cidade e marcado por indiferença e impessoalidade. Outras jovens mulheres compartilhavam com Leila do mesmo sofrimento. 

Ao chegar sua vez, foi conduzida para uma pequena sala e orientada para retirar somente a parte inferior da roupa. Foi posicionada em uma mesa ginecológica e puncionaram-lhe uma veia do braço. A partir deste momento, Leila ficou inconsciente, pois recebera uma medicação hipnótica intravenosa. Quando acordou, cerca de uma hora depois, sentia dor abdominal e apresentava sangramento vaginal. Nunca teve contato com o médico, sendo orientada por uma suposta enfermeira a vestir-se, pois aquelas queixas eram normais a passariam em poucas horas.

Leila não comunicara sua decisão aos pais, pois sabia que não concordariam com o aborto. Retirou-se do apartamento que dividia com Raul e foi morar, temporariamente, com Thereza. 

Elas tinham oito anos de diferença e Thereza sempre fora muito protetora com a irmã.

Thereza era divorciada e não tinha filhos, trabalhava como jornalista investigativa e era muito reconhecida em sua área de atuação. 

As primeiras vinte e quatro horas que se seguiram ao procedimento foram marcadas por profunda prostração, sangramento vaginal intermitente e dor no baixo ventre. Leila permanecera deitada e alimentando-se somente com líquidos. Não recebera qualquer prescrição medicamentosa ou orientação de como proceder em situação de urgência. Sentia-se culpada e achava que o sofrimento físico era um castigo por sua atitude impensada. 

Thereza adiara todos os seus compromissos e ficara ao lado da irmã para confortá-la. Devido ao sofrimento físico e emocional, Leila sentia-se entristecida e chorava com frequência, expressando revolta e inconformismo. 

Thereza deu-lhe um medicamento ansiolítico que dispunha para uso pessoal, bem como gotas de um analgésico diluídas em chá de camomila. 

Leila passou por algumas horas de sono.

A situação agravara-se. 

A dor assumira uma intensidade incontrolável e passara a ser acompanhada de rigidez da parede abdominal. O sangramento vaginal tornara-se continuo e Leila começou a apresentar calafrios motivados por uma febre persistente. Não conseguia se levantar, pois apresentava tontura na troca de posição. 

O que havia sido descrito como rotineiro e transitório, assumira proporções graves. 

Thereza tomou a iniciativa de deslocar Leila para um serviço hospitalar de emergência. 

Quando chegaram a sala de atendimento, Leila havia desmaiado. 

Estava hipotensa e recebera suporte medicamentoso para estabilização do quadro, durante a etapa diagnóstica. Realizara vários exames que permitiram concluir por perfuração uterina. 

Leila foi submetida a uma cirurgia de urgência, sendo necessário retirar o útero. Recebeu transfusão sanguínea e antibióticos permanecendo hospitalizada pelo período de uma semana. 

Por ocasião da hospitalização, Thereza comunicara aos pais e ouvira severas críticas por mantê-los desinformados daquela situação. Sentira-se culpada, mas justificava que tentara protege-los, pois o aborto era uma situação ilegal no Brasil. Os pais eram juízes aposentados, aderentes a uma doutrina legal que praticaram por toda uma vida profissional bem-sucedida.

Eram pais muito sensíveis, que colocavam o amor acima de suas convicções. 

Logo, as diferenças cederam lugar ao acolhimento afetivo das filhas. 

Leila voltou a morar com os pais e Thereza retomou sua rotina de vida. 

Toda esta história ficara sepultada no passado por mais de dois anos e somente retornava à tona porque Leila fora diagnosticada com um câncer de mama e aquela família estava ali, na minha frente, em uma consulta de orientação.   

 

Capítulo 3: A primeira consulta de Leila

Leila tinha recém completado 27 anos. Sua história pregressa fora um relato espontâneo, marcado por uma atitude de aceitação da imperfeição humana e amadurecimento. Expressava muita autoconfiança, encarara o diagnóstico do câncer com naturalidade e discutia livremente a questão na frente de todos os familiares. 

A doença não era nova na família. 

Sua mãe tivera câncer de mama aos 55 anos, o mesmo tendo ocorrido em idades mais precoces com duas tias maternas. Tratava-se de uma doença com fortes indícios de predisposição familiar. 

Todas haviam sido adequadamente tratadas, estavam bem e sem recidiva, mantendo vigilância periódica. Leila antecipava que teria o mesmo desfecho, mas que precisava buscar uma condução mais abrangente. 

Seu diagnóstico fora feito em um exame clínico rotineiro com o ginecologista. A mamografia fora inconclusiva, pois Leila era jovem e o tecido mamário denso diminuía a especificidade do método. Uma ressonância nuclear magnética (RNM) fora fortemente sugestiva de malignidade. 

Leila submetera-se a uma punção-biópsia e o diagnóstico anatomopatológico revelara um carcinoma de mama. A imuno-histoquímica indicara um tumor de alto índice proliferativo e triplo negativo, ou seja, não expressava marcadores para estrógeno, progesterona ou Her-2. 

Este exame indicava que Leila tinha um tumor agressivo e não responsivo a manipulação hormonal ou a terapia de alvo biológico com trastuzumab, um anticorpo monoclonal dirigido contra o receptor Her-2.

Ouvira falar de testes genéticos que permitiriam avaliar o risco familiar e desejava submeter-se a eles. 

Curiosamente, toda a família optara por permanecer na sala de consulta durante todo o tempo de duração da anamnese e do exame físico. 

Ao exame físico, Leila tinha um nódulo de aproximadamente 2.0 cm, localizado na junção dos quadrantes externos da mama esquerda. Não havia indícios clínicos de comprometimento dos linfonodos axilares. Ela era jovem e com exceção do aborto complicado com histerectomia, não tinha outra doença pré-existente. Todo o restante de seu exame clínico era normal.

Expliquei que faríamos os exames de estadiamento para excluir a possibilidade de metástases e definir a melhor recomendação de tratamento.

Eu tentara iniciar uma abordagem sequencial, quando Leila me interrompeu e perguntou qual seria o tratamento se todos os exames dessem normais.

Percebi que Leila buscava ativamente mais informação e oportunidade de discutir possibilidades. 

Tinha algo maior nos objetivos daquela jovem e de seus familiares, que não havia sido claramente expresso. 

Leila olhou, cautelosamente, para os pais, para a irmã e finalmente fazendo contato visual comigo, afirmou: Doutor, eu quero ter um filho.

Leila explicou que relatara detalhadamente sua história para que eu pudesse entender o significado psicológico que o filho teria para ela. Disse que há seis meses discutira esta questão com a família. Ela achava que esta era a única forma de redimir-se do que qualificava como erro da imaturidade e precipitação. 

Seus pais iriam apoia-la e sua irmã emprestaria o útero.

Havia uma determinação inabalável nos objetivos de Leila. 

Seus familiares explicaram que ela sempre fora muito persistente. Sua autoestima ficara, temporariamente, abalada pelo aborto provocado. Porem, o plano de Leila atenuaria a culpa, encaminhando para uma vida familiar mais plena e saudável.

Leila explicou que seus atos passados tiveram consequências sobre a vida de muitas pessoas. Thereza sentira-se responsável pelo referencial inadequado e conivência. Os pais julgaram-se incompetentes por não perceber a extensão do sofrimento da filha ou por terem, inadvertidamente, plantado a ideia de uma moral rígida. 

Leila tinha consciência de que o filho perdido era insubstituível, mas que seu destino estava fortemente vinculado com a maternidade. Disse estar segura de que venceria o câncer e que teria um filho, desejado e saudável.

Eu já havia passado por situações profissionais difíceis, mas esta era muito peculiar. Leila tinha um perfil psicológico proativo. Ela estava focada não apenas em vencer o câncer, mas em tentar resgatar um erro passado. 

Tecnicamente seria possível, mas exigiria algumas precauções. 

Paralelamente ao tratamento do câncer, Leila e a irmã passariam por aconselhamento genético, psicológico, reprodução assistida e cuidados de eugenia. 

No passado, sempre que eu me deparara com um perfil psicológico proativo, marcado pela persistência e pela habilidade de promover vínculos, a sensação era reconfortante e tranquilizadora. 

No caso de Leila, havia este mesmo sentimento, mas vinha acompanhado de um desafio maior. Eu estaria sendo envolvido no planejamento de uma nova vida e precisava ter segurança de que escolhera o caminho certo. Eu não tinha experiência em lidar com esta variável e busquei uma avaliação multiprofissional. Ela iria ajudar-me a encontrar a decisão técnica e eticamente correta. 

Compartilhei com Leila e seus familiares minhas preocupações e encaminhamentos.

Aquela família havia sido contaminada pelas ideias de Leila. Seus pais julgavam correto seu racional. Thereza sentia-se lisonjeada por emprestar o útero. Parecia que o filho era uma garantia subjetiva de que Leila seria curada do câncer. Não aceitar este encaminhamento era contrapor-se ao seu principal estímulo para viver. Todos os familiares eram favoráveis a maternidade, independentemente das dificuldades que tivessem que enfrentar. Era uma família muito unida e com sintonia de pensamento. 

Leila e seus familiares já tinham feito contato com profissionais competentes em todas as áreas demandadas e eu ratificara a necessidade de consulta-los. 

Expliquei que tudo poderia correr em paralelo, mas que o foco principal era a vida de Leila e que o tratamento do câncer teria a prioridade. Ela deveria realizar os exames solicitados com a máxima brevidade e retornar ao consultório para reavaliação e novos encaminhamentos.

 

Capítulo 4: Tratamento curativo, intervenções preventivas e fertilidade

Todos os exames de estadiamento foram normais. Leila foi encaminhada para uma avaliação cirúrgica e paralelamente já havia iniciado com o aconselhamento genético. 

Habitualmente, a decisão costumava ser um tratamento conservador da mama. A cirurgia consistiria em uma setorectomia, na qual o tumor seria completamente removido, com adequada margem de segurança. No mesmo ato cirúrgico seria injetado, na área do tumor, um material radioativo que com o auxilio de um probe permitiria identificar o primeiro linfonodo de drenagem, chamado linfonodo sentinela. Ele seria examinado por um patologista presente na sala, visando identificar células tumorais metastáticas. Se o linfonodo sentinela fosse negativo, não haveria necessidade de explorar adicionalmente a axila. Se ele fosse positivo, seria feita uma amostragem da axila homolateral para avaliar o número de linfonodos comprometidos. Esta informação era essencial para avaliação prognóstica e definição do tipo de tratamento sistêmico complementar. A conservação da mama implicaria necessariamente no uso de radioterapia adjuvante.

Todavia, no caso de Leila a decisão não era rotineira. 

Ela tinha fortes indícios de suscetibilidade genética, pois havia uma expressiva história familiar de câncer de mama e Leila apresentara este diagnóstico, ainda, muito jovem. 

Ela teria que ser avaliada para mutação dos genes BRCA1 e BRCA2. 

A presença de mutação nestes dois genes supressores tumorais, colocaria Leila em altíssimo risco de recidiva local na mama operada, novo tumor na mama contralateral ou aparecimento de câncer no ovário. 

Isto exigiria recomendações preventivas. 

A positividade na mutação para os genes BRCA1 e BRCA2 poderia interferir na decisão quanto ao tipo de abordagem cirúrgica das mamas e também do ovário. Na eventualidade de mutação em ambos os genes, o risco de desenvolver novo câncer de mama ao longo da vida poderia chegar a 85% dos casos. Para o câncer de ovário o risco também iria progressivamente aumentando com a idade até atingir 50% das pacientes. 

As recomendações preventivas teriam que ser individualizadas. Poderia ser proposto desde aumento da vigilância com ressonância magnética das mamas e controles ginecológicos frequentes até medidas cirúrgicas mais radicais, porem mais seguras. Após adequada discussão dos riscos, não era infrequente a proposição de mastectomia profilática bilateral, acompanhada da retirada de ambos os ovários e trompas.

Havia outra agravante. 

O exame anatomopatológico e imuno-histoquimico do tumor de Leila era do tipo basalóide, o que independente da expressão de mutação para BRCA1 e BRCA2, conferia um prognóstico muito reservado. Este tipo poderia estar associado a outras alterações genômicas que ainda não teriam sido adequadamente estudadas e descritas pela comunidade científica internacional.

Outro aspecto essencial era o timing dos procedimentos, pois Leila desejava ter um filho e isso somente seria possível pela coleta de óvulos, que criopreservados em laboratório, seriam usados posteriormente para reprodução assistida.

Leila e os familiares passaram por alguns encontros com o grupo de profissionais de aconselhamento genético. Após adequado entendimento das variáveis técnicas e éticas envolvidas, concluíram por encaminhar a avaliação da mutação BRCA1 e BRCA2. 

Na época, esta avaliação de sequenciamento gênico necessitava de aproximadamente 90 dias para a obtenção de um resultado abrangente e fidedigno.

Eu não poderia conceder este tempo. 

A expressão biológica do tumor de Leila era muito agressiva e o tratamento precisaria iniciar imediatamente. 

Promovi um reunião com Leila e seus familiares e propus uma abordagem sequencial. Leila iniciaria com um tratamento rotineiro de setorectomia, avaliação do linfonodo sentinela e tratamentos adicionais adjuvantes em conformidade com os achados cirúrgicos. 

Expressei minha conduta para Leila e seus familiares que concordaram com o encaminhamento proposto. 

Contatei o cirurgião e marcamos o procedimento.

Paralelamente, por orientação do grupo multiprofissional de aconselhamento genético, Leila consultara um centro especializado em reprodução assistida. Lá havia iniciado um programa de obtenção de ovócitos, células precursoras do óvulo.  Elas seriam obtidas por punção dos folículos ovarianos e submetidas a criopreservação para futura fecundação in vitro. Era uma tecnologia nova e com resultados insipientes. Leila tinha consciência das limitações de sucesso e das implicações éticas. Mesmo assim, persistiu aderente em sua busca pela maternidade.

Embora eu fosse complacente com os objetivos mais amplos da paciente, meu foco permanecia no tratamento do câncer. 

No dia agendado para a setorectomia da mama, acompanhei Leila ao bloco cirúrgico. Lá estavam o cirurgião, o anestesista, o patologista e um radiologista especializado em RNM, que iria ajudar na localização transoperatória do tumor. 

Iniciamos o procedimento. 

Leila tolerou bem a indução anestésica. O cirurgião, auxiliado pelos achados da RNM prévia e pelo apoio técnico de nosso colega radiologista, identificou o tumor, com relativa facilidade. Procedeu a setorectomia com ampla margem de segurança e injetou o material radioativo no leito tumoral para avaliação da drenagem linfática e identificação do linfonodo sentinela. Com o uso de um probe localizou na axila homolateral o linfonodo sentinela, retirando-o para exame. O patologista recebeu ambos os materiais. Manifestou sua posição favorável a adequação das margens cirúrgicas para o tumor primário e ao exame microscópico transoperatório concluiu que o linfonodo sentinela era positivo. Era um dado desfavorável que exigiu a exploração adicional da axila, buscando maior amostragem linfonodal.

Leila tolerou muito bem o pós-operatório e teve alta no terceiro dia.

Seu material foi cuidadosamente avaliado no laboratório de patologia. O resultado confirmou o achado da biópsia prévia. Tratava-se de um carcinoma de mama do tipo basalóide, com 2.2 cm de diâmetro. As margens cirúrgicas estavam livres de tumor e o linfonodo sentinela era positivo. A avaliação da amostragem axilar revelou ausência de comprometimento histológico em 23 linfonodos dissecados. Como era de se esperar neste tipo de tumor, não havia expressão de receptores para estrógeno, progesterona ou Her-2, configurando a denominação de triplo negativo. Uma avaliação por uma técnica mais sofisticada denominada de PCR, evidenciou doença micrometastática em mais dois dos 23 linfonodos axilares examinados.

Leila tinha uma doença agressiva, caracterizada por uma expressão histológica e imuno-histoquímica desfavorável, acompanhada de metástases em linfonodos axilares. Havia, ainda, a possibilidade de expressar mutação germinativa nos genes supressores tumorais BRCA1 e BRCA2. Tudo apontava para um alto risco de doença sistêmica subclínica.

Embora os exames de imagem não mostrassem presença de metástases em outros órgãos, as características biológicas desfavoráveis deste tumor apontavam para uma alta probabilidade de micrometástases. Estas células indetectáveis clinicamente poderiam ter migrado precocemente pela corrente sanguínea, instalando-se em órgãos alvo. 

Esta era uma suposição, baseada no alto índice de recidiva observada nos primeiros três anos do acompanhamento internacional de pacientes jovens com o mesmo perfil biológico apresentado por Leila. 

Minha recomendação de tratamento fora de quimioterapia em um sistema de alta densidade de dose, em que os medicamentos seriam administrados a cada duas semanas. 

Era um programa muito tóxico, mas que havia demonstrado impacto prognóstico, diminuindo o risco de recidiva e aumentando a chance de cura. 

Visando minimizar as complicações, Leila receberia um suporte para evitar queda de glóbulos brancos, obtido com a administração de uma droga chamada filgrastima.

Promovi um novo encontro com Leila e seus familiares. 

Expliquei toda a situação e coloquei-me a disposição para esclarecimentos adicionais. 

 

Capítulo 5: Leila enfrenta três desafios sequenciais

Leila mostrava-se confiante. Mantinha-se totalmente informada e sabia que precisava enfrentar o câncer com todos os recursos disponíveis. Referiu a necessidade de aguardar mais três semanas para iniciar a quimioterapia, considerando a recomendação feita pelo grupo de reprodução assistida. 

Sensibilizado pelos objetivos de Leila, concordei em retardar o início da quimioterapia por um período máximo de um mês. 

Embora não houvesse uma definição clara na literatura sobre o tempo ideal para iniciar a quimioterapia adjuvante, eu tinha consciência da agressividade daquele tipo de tumor e costumava recomendar o início com a maior precocidade possível. 

Mantive Leila em acompanhamento semanal. 

Ela estabelecera uma excelente relação com os grupos de aconselhamento genético e de reprodução assistida. 

Eu continuava focado em seu tratamento oncológico.

No prazo estabelecido, Leila iniciou a quimioterapia. 

Era um tratamento ambulatorial, realizado no ambiente da clínica, em que profissionais experientes assumiam uma postura leve e descontraída, combinada com a indispensável eficiência técnica. 

Leila comparecera as sessões acompanhada de Thereza e ambas rapidamente desenvolveram uma relação de confiança mútua com o grupo assistencial. 

Durante todo o tratamento com quimioterapia, mantive acompanhamento semanal de Leila. 

Nas consultas era possível julgar como ela estava enfrentando a toxicidade do tratamento. O exame clinico permitia avaliar sua condição cardíaca, pulmonar, gastrintestinal e neurológica. Ela cumpria integralmente as recomendações e fazia exames laboratoriais periódicos para avaliar contagens de glóbulos sanguíneos, função renal e hepática. 

Leila era jovem e tolerou bem o tratamento. 

Passou por duas situações de infecções respiratórias, acompanhadas de queda leucocitária, que exigiram hospitalização e uso de antibióticos por via venosa.

Ainda em vigência do programa de quimioterapia, Leila recebeu os resultados da avalição genética. Ela apresentava mutação para ambos os genes supressores tumorais BRCA1 e BRCA2. 

Thereza fizera a mesma avaliação e era negativa. 

Esta mutação costumava seguir o padrão de uma herança autossômica dominante e, portanto, sua expressão ocorreria em 50% dos filhos. 

Thereza ficara ambivalente. 

Havia um sentimento de conforto por não ter herdado um fator de risco alto para câncer de mama e ovário. Porem, o exame da irmã era positivo e ambas sabiam que este achado implicaria em novos desafios para Leila. 

Leila lamentou seu resultado, mas seu racional surpreendia, produzindo reações de rápida acomodação. Ela festejou o resultado negativo do exame de Thereza. Havia dois motivos para seu contentamento. Um era o afeto que unia aquelas duas irmãs, o outro é que Leila sabia que este resultado garantiria seu plano de maternidade. Thereza poderia manter a oferta do útero, pois sua saúde não estaria ameaçada.

Ao concluir o programa de quimioterapia, Leila estava bem. 

Havia conseguido atingir 90% da intensidade de dose programada. Este era um cálculo que envolvia não somente a dose administrada da medicação, mas também o respeito aos períodos previstos para os ciclos. A perda de 10% fora motivada pelos atrasos ocorridos nas duas situações de internação hospitalar. Porem, este era um desempenho considerado adequado e seguro.

Leila convivera bem com a perda do cabelo e os danos de autoimagem provocados pela cirurgia da mama. Ela sabia que tudo seria transitório. O cabelo iria retornar e ela já teria planejado uma cirurgia de reparação plástica da mama para o futuro.

Um mês após concluir a quimioterapia, Leila já se preparava emocionalmente para o próximo desafio. Em uma consulta rotineira de revisão clínica perguntou-me sobre as consequências da positividade para as mutações BRCA1 e BRCA2. 

Expliquei detalhadamente os riscos acumulativos ao longo da vida de surgimento de um novo câncer na mama e no ovário. Disse que para uma pessoa jovem como ela a conduta frequentemente recomendada era de acompanhamento clínico com RNM da mama e exame ginecológico rotineiro, seguido de ultrassonografia dos ovários. Esta conduta seria mantida até a obtenção do primeiro filho, quando seria proposto a retirada preventiva de ambas as mamas, ambos os ovários e ambas as trompas de Falópio.

Leila argumentou que a maternidade já se encontrava em fase avançada de planejamento. O grupo de reprodução assistida tivera sucesso na obtenção dos ovócitos. Eles tinham sido criopreservados até o momento da fecundação. Esta teria ocorrido no laboratório por meio de uma técnica de injeção intracitoplasmática do espermatozoide. Foram obtidos alguns embriões que testados revelaram não apresentar mutação para os genes BRCA1 e BRCA2. Duas tentativas de implante de embriões no útero de Thereza tinham fracassado, mas na tentativa mais recente ocorrera uma nidação satisfatória e Thereza mantinha uma gestação gemelar saudável por quase 60 dias.   

Eu ficara impressionado com a velocidade dos encaminhamentos promovidos por Leila e seus familiares. Havia uma determinação inabalável com relação a maternidade das irmãs. Tudo isto ocorrera em paralelo a assistência oncológica de Leila, que com alegria discorria sobre os sentimentos mobilizados na família.

Havia um sentimento mágico provocado pela gestação gemelar. Ela daria dois filhos para duas mães.

Leila propôs aguardar o nascimento dos filhos para tomar as decisões de prevenção pendentes. 

Isto provocara um dilema médico que optei por discutir com Leila. 

Como ela fora submetida a uma cirurgia conservadora da mama, havia a necessidade de complementar o tratamento com radioterapia adjuvante. O tumor de Leila estava localizado na mama esquerda e mesmo usando adequada proteção técnica, haveria algum grau de irradiação cardíaca. Se Leila aceitasse a mastectomia profilática, naquele momento, a radioterapia poderia ser evitada. 

Leila exercendo sua proatividade fez uma nova proposta. 

Ela faria a mastectomia profilática imediatamente, mas retardaria a retirada dos ovários e trompas, aguardando o nascimento dos filhos. Argumentou dizendo que embora tudo estivesse correndo bem com a gestação de Thereza, teríamos que ser cautelosos. 

Leila tivera pouco tempo para obtenção de ovócitos e não dispunha de outros criopreservados. Se houvesse insucesso, ela ainda teria os ovários para novas tentativas. Expliquei que a infertilidade induzida pela quimioterapia era infrequente em mulheres jovens como ela, mas que para dar mais sustentação a sua decisão eu iria solicitar exames de laboratório que permitissem avaliar sua condição hormonal.

Leila concordou.

Seus exames laboratoriais, obtidos poucos dias depois, revelaram ovários funcionantes. Contatei com Leila e marcamos com o cirurgião a retirada preventiva das mamas. Leila faria a colocação de próteses mamárias no mesmo ato cirúrgico. Meu colega era muito experiente em reparação estética e Leila estava confiante.

A cirurgia transcorreu sem intercorrências. 

Foram colocadas duas próteses expansoras abaixo do músculo peitoral, que seriam progressivamente infladas no pós-operatório, respeitando o tempo de cicatrização e a elasticidade da pele. Todo o material fora encaminhado para exame laboratorial.

Leila teve alta em menos de uma semana. 

Seu exame anatomopatológico não revelou doença residual.

O processo de expansão requereu várias semanas até que o volume e simetria atingissem condições satisfatórias para a introdução da prótese de silicone definitiva. Posteriormente, Leila submeteu-se a uma intervenção menor, mas esteticamente importante, de confecção dos mamilos. O resultado final foi gratificante, havia boa simetria, a pele de Leila tinha excelente elasticidade e as cicatrizes foram progressivamente tornando-se menos perceptíveis. 

Leila ficou satisfeita com o resultado plástico da reconstrução.

Nasceram os filhos. 

Eram duas meninas saudáveis. 

Leila, ainda optou por aguardar seis meses antes de submeter-se a retirada dos ovários e trompas. 

Passados dois anos, Leila permanecia bem, fazia seu acompanhamento regular e não apresentava sinais de recidiva. 

Veio, espontaneamente, ao meu consultório para mostrar as meninas e entregar um convite de casamento.

Embora Leila sempre fosse muito comunicativa e discutisse comigo todos os encaminhamentos relacionados aos cuidados de sua saúde, meu conhecimento sobre os detalhes da reprodução assistida fora parcial. 

Eu ficara limitado a administração das interferências que a maternidade provocara na programação de seu tratamento oncológico. 

Naquela tarde, Leila estava especialmente feliz, entrou no consultório acompanhada das filhas e do futuro marido. 

As meninas eram encantadoras, inteligentes e comunicativas como a mãe. Uma tinha a pele clara e olhos azuis como os de Leila, a outra tinha a pele mais pigmentada, cabelos escuros e olhos castanhos que lembravam o fenótipo do futuro marido de Leila. 

Eu estava um pouco confuso, pois não conhecia os detalhes daquela relação. 

Leila, exercendo mais uma vez sua proatividade, apresentou-me o futuro marido, que também era o pai daquelas meninas. 

Seu nome era Raul, um arquiteto urbanista peruano. 

  

*  Todos os personagens são fictícios  

** Referências bibliográficas que podem ser encontradas no livro Conexão Anticâncer – as múltiplas faces do inimigo interno de James Freitas Fleck

 

Habilidades e Competências adquiridas na 9ª Simulação Clínica:

O comportamento proativo

James Fleck: Conexão Anticâncer, Síntese da 9ª Simulação Clínica

Leila tinha 27 anos ao ser diagnosticada com câncer de mama. Seu tumor era muito agressivo e associado a uma suscetibilidade genética familiar. Há três anos, ela havia passado pela experiência negativa de um abortamento clandestino, que qualificara como um erro de imaturidade e precipitação. Houve complicações e Leila perdeu o útero. 

O ato e as circunstâncias do abortamento deixaram estigmas. Leila teve sua autoestima diminuída, a irmã Thereza sentira-se responsável pela conivência e os pais julgaram-se incompetentes na detecção do sofrimento da filha, culpando-se por terem, inadvertidamente, plantado uma ideia de moral rígida. 

O comportamento proativo precede o diagnóstico do câncer. Seis meses antes, Leila teria proposto à família a reprodução assistida. Tinha consciência de que o filho perdido era insubstituível, mas via na maternidade uma possibilidade de resgate da culpa e alivio do sofrimento familiar.

A proatividade amplia-se no manejo do câncer. Leila e seus familiares passam a orquestrar um conjunto de decisões sequenciais complexas, buscando compatibilizar o tratamento oncológico com a reprodução assistida. Ambos os objetivos são plenamente atingidos. 

A proatividade consiste em um traço comportamental humano que assume integral responsabilidade por seus atos e sentimentos, independentemente das circunstâncias ou interferências de outras pessoas. É marcada por autonomia, determinação e coragem.

O paciente proativo costuma evitar uma atitude passiva e submissa frete a doença. Mantem-se informado, estabelece vínculos e promove cumplicidade. Tem facilidade de comunicação, expressando claramente seus objetivos e sentimentos. Não há muito espaço para a ambivalência, o que conduz a decisões rápidas e coerentes. Tem senso crítico apurado, valorizando uma abordagem racional e um sequenciamento lógico nas intervenções médicas. Não aceita imposições, prefere participar das escolhas, ouvindo e julgando as recomendações. É focado em seus objetivos, permanecendo aderente aos processos que conduzem ao resultado almejado. 

A história de Leila é uma ilustração da proatividade. Muito precocemente assume o comando de sua própria vida. Ultrapassa limites e exercita a autocrítica. Busca ativamente o resgate de uma decisão precipitada e traumática. Conquista pelo afeto a cumplicidade familiar e desfaz conflitos. Estabelece vínculos com todos os profissionais médicos, sendo sensível e aderente às recomendações. Assume a liderança na tomada de decisões, focada em seus objetivos. A despeito da adversidade e dos desafios, Leila constrói um desfecho favorável.