A vida é mais do que um jogo de probabilidades

Em um futuro próximo a ciência médica será previsível

James Fleck, MD, PhD


Atualmente, os ensaios clínicos aleatórios (ECA) são a pedra angular da ciência médica. Eles representam o mais alto nível de evidência para apoiar avanços diagnósticos e terapêuticos. Na história da pesquisa clínica, o primeiro ECA foi projetado em 1946, sendo coordenado por Sir Geoffrey Marshall assistido por dois estatísticos denominados Sir Austin Bradford Hill e Philip Hart. O ensaio foi iniciado em 1947, avaliando o uso da estreptomicina no tratamento da tuberculose pulmonar. Aqui, o Dr. Hill instituiu a distribuição aleatória, uma nova metodologia estatística que foi descrita em um artigo histórico publicado no British Medical Journal. A questão central, no programa de distribuição aleatória proposto pelo Dr. Hill, foi a ocultação da alocação, substituindo a distribuição alternada de pacientes por uma nova estratégia mascarada, usando um conjunto de envelopes lacrados, cada um contendo apenas o nome do hospital e um número. Essa técnica, evitando viés de seleção, aumentou gradativamente em sofisticação por meio do uso de novos critérios de distribuição em blocos e metodologia adaptativa estratificada. Há mais de 75 anos, os avanços da ciência médica baseiam-se na seleção aleatória, responsável pela imprevisibilidade dos resultados. A medicina tornou-se uma ciência apoiada por estatísticos, e os médicos costumavam explicar suas recomendações com base em probabilidades. ECA e metanálise são agora utilizados como o melhor nível de evidência para propor um novo padrão no diagnóstico ou no tratamento das doenças. No entanto, apesar da metodologia rigorosa, a padronização de condutas assistenciais não corresponde perfeitamente ao observado no método de distribuição aleatória utilizada nos estudos clínicos. ECA e mesmo metanálises nunca incluirão pacientes expressando exatamente os mesmos fatores de risco, comportamento clínico e microambiental. Atualmente, as diretrizes clínicas são baseadas no nível de evidência e recomendações apoiadas por revisão por pares da literatura, contextualização e consenso. É uma espécie de modelo de melhor ajuste, usando uma metodologia heurística de resolução de problemas.

O câncer é a segunda principal causa de morte no mundo. Vamos usar o câncer como modelo de raciocínio. Nos últimos cinquenta anos, ECA e metanálises criaram quase toda a base de evidências para apoiar os avanços na prevenção, diagnóstico e tratamento do câncer. Atualmente, tanto a pesquisa quanto a prática oncológica têm sido progressivamente sustentadas na medicina de precisão. Uma enorme quantidade de dados foi obtida a partir de várias vias de sinalização molecular. Todos eles costumavam ser representados por ilustrações metafóricas descritivas. A Figura 1 mostra a via de sinalização a jusante da tirosina-quinase, um dos vários mecanismos associados à carcinogênese. Aqui, uma rede de comunicação é representada no nível molecular e é usada para testar novas terapias direcionadas, geralmente usando ECA e metanálise. Uma abordagem semelhante é usada em outras vias de sinalização e na imunoterapia do câncer por bloqueio de pontos de checagem imunológica. No entanto, mesmo nesses cenários sofisticados, existem limitações para o uso atual de ECA. A principal delas é a necessidade de analisar populações homogêneas, assumindo que o dano está ocorrendo em apenas uma via de sinalização por vez. No entanto, esta é uma visão simplista e artificial, assim como é sua descrição metafórica. Os organismos vivos são dinâmicos e o comportamento microambiental depende de uma rede de sinalização conectada. No microambiente das células tumorais há plasticidade fenotípica, que se estende aos níveis molecular, genômico, morfológico e funcional. Isso explica a recorrência precoce e o alto nível de resistência medicamentosa na doença metastática.



Figura 1: Ativação do receptor HER e dimerização: (A) Estrutura do receptor HER: domínio extracelular contendo quatro subdomínios (I, II, II e IV) + segmento helicoidal transmembrana + domínio intracelular da proteína tirosina quinase, (B) Conformação espacial do receptor HER, expondo os subdomínios I e III do ligante, (C) Ativação de receptor HER, (D) Dimerização levando à proximidade do terminal c com o domínio da tirosina quinase e fosforilação.


Recentemente, o The Cancer Genoma Atlas (TCGA) representou uma metodologia mais integrativa. O TCGA identificou em nível molecular mais de 20.000 tumores primários, pareado com amostras normais em 33 tipos frequentes de câncer. O TCGA possui seis plataformas abrangentes, compilando dados clínicos, genômicos, epigenômicos e proteômicos. Todas as plataformas são suportadas por banco de dados crescentes e podem ser representadas visualmente. Colocando em perspectiva, este é o início de uma nova era, esperançosamente sustentando uma metodologia mais precisa para apoiar a tomada de decisão clínica. A integração de gráficos de conhecimento bem projetados e recursos de inteligência artificial pode identificar padrões, tanto para condições normais quanto para estágios progressivos da doença. O que acontece no modelo de raciocínio do câncer pode ser extrapolado para outros cenários. Esses avanços irão tornar a ciência médica mais previsível em um futuro próximo.

Vamos momentaneamente combinar ciência e raciocínio filosófico, assumindo a interação dialética como um processo construtivo de aprendizagem. Vamos partir da premissa de que a ciência médica pode ser completamente precisa e previsível. Que modelo poderia descrever os sistemas biológicos, tanto na saúde quanto na doença? Bem, quase tudo na natureza é baseado na geometria fractal. O corpo humano é inteiramente composto de geometria fractal. Estes são observados tanto na morfologia quanto na fisiologia do corpo. A árvore brônquica é composta da mesma dimensão fractal até a sétima geração e depois passa para uma dimensão superior. Fígado, rins, cérebro e pâncreas também são órgãos que podem ser descritos morfologicamente segundo a mesma regra fractal de autossimilaridade. Os batimentos cardíacos seguem o padrão fractal. O fluxo sanguíneo é fractal. Curiosamente, o fluxo sanguíneo cerebral aumenta em áreas onde há maior atividade neuronal. O uso crescente de ressonância nuclear magnética funcional do cérebro pode evocar padrões fractais em atividades cognitivas, emocionais e funcionais tanto na saúde quanto na doença. A Figura 2 mostra neurônios piramidais do córtex visual humano, corados por técnica de Golgi e usando ampliação de 100X. Tornando essa visão dialética mais instigante, a imagem se assemelha a Summertime: Number 9A, de Jackson Pollock, pintada em 1948. O artista nunca estudou biologia, mas acreditava firmemente que a pintura representava a energia e o movimento das forças internas. Como os neurônios do córtex visual humano, o trabalho de Jackson Pollock tem padrões que lembram a geometria fractal, o que pode indicar uma expressão da arte humana orientada tanto emocional quanto fisiologicamente. Na natureza, o comportamento também pode ser explicado por padrões fractais. Talvez o melhor exemplo seja o modelo matemático observado no voo dos estorninhos, fenômeno chamado de murmuração, devido ao som emitido. É uma expressão coletiva de movimento e ruído, sustentada por um código de sinalização individual, orientando todo o grupo. Esse fenômeno pode ser semelhante aos modelos de sinalização molecular expressos no nosso microambiente celular. Os avanços tecnológicos do sequenciamento de última geração permitirão a identificação da maioria das variantes de DNA, incluindo inserções, deleções, duplicações, inversões, expansões repetitivas e outras, o que refletirá na expressão clínica das doenças. Curiosamente, uma análise de dimensão fractal do DNA humano foi recentemente descrita, expressando alto valor preditivo.



Figura 2: Dimensão fractal em neurônios piramidais do córtex visual humano, corados por técnica de Golgi (A), Summertime: Número 9A  de Jackson Pollock (B), murmuração no voo dos estorninhos (C) e sequenciamento de DNA de última geração (D)


Arranjos microscópicos de células cancerígenas, imuno-histoquímica e fenótipo molecular podem ser descritos em padrões fractais. Os fractais são definidos por vários níveis de organização, formas irregulares e autossimilaridade. A geometria fractal lida com dimensões não-inteiras, onde cada parte da imagem é semelhante à imagem inteira. Em geral, quando a expressão fenotípica muda de um estado normal para um estado doente, ocorre um salto súbito para uma dimensão fractal mais alta. Mas, ainda assim, um padrão pode ser identificado e eventualmente previsto. Esse conhecimento é inteiramente dependente dos avanços na inteligência artificial. O conceito de geometria fractal foi descrito pela primeira vez por Benoît Mandelbrot. Em 1980, o matemático mudou-se para a IBM, onde usou números complexos e polinômios quadráticos para construir uma imagem de iteração infinita. Essa imagem, conhecida como conjunto de Mandelbrot, foi a primeira a reproduzir, em um sistema eletrônico, a geometria fractal encontrada na natureza. Nos fractais, apesar da irregularidade, complexidade e não linearidade, há um padrão que é percebido, reconhecido e que pode ser previsto. Pouco em modelagem computacional fractal foi feito após o conjunto de Mandelbrot. Algumas tentativas começaram a surgir na pesquisa clínica com participação pequena e muito específica na assistência ao paciente. A principal razão é a dificuldade de identificar padrões irregulares e dinâmicos tanto na saúde quanto na doença. Mas eles estão lá, esperando para serem encontrados pela inteligência artificial (IA). Isso pode soar como um voo livre sobre a ficção! No mundo real, a IA nunca superará a criatividade do cérebro humano, mas certamente é uma ferramenta muito útil para trabalhar com big data. Médicos e engenheiros de ciência da computação devem cooperar no desenvolvimento de uma nova ontologia para comunicar dados médicos globalmente. Ela poderá ser, progressivamente, usada para gerar gráficos de conhecimento, capazes de alimentar os algoritmos de aprendizado de máquina com uma enorme quantidade de dados qualificados. O resultado seria a crescente identificação de padrões fractais específicos no corpo humano. Como a dimensão fractal é previsível, isso levaria a ciência médica a criar intervenções precisas e consequente alta efetividade.

 

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