8ª Simulação Clínica

A Medicina é Universal

 

Objetivo:

Exercício de medicina multidimensional na assistência a um paciente com câncer gástrico tratado com intensão curativa e que propõe uma ficha clínica eletrônica personalizada e global.

 James Fleck, Conexão Anticâncer, 8ª Simulação Clínica

 

Capítulo 1: A indisponibilidade dos dados clínicos

Milton tinha recentemente mudado para o sul do Brasil por motivos profissionais. Nascera em uma cidade pequena no interior brasileiro. Era um homem de 47 anos, casado e com três filhos adolescentes jovens. Exercia um papel provedor na família, auxiliado pela esposa Dóris, que era professora em uma escola pública.

Milton era filho de mãe afrodescendente com um pai que tivera ancestrais holandeses. Era um mulato de olhos verdes, simpático, carismático e extremamente criativo. Trabalhava na área de informática para uma empresa multinacional. Fora responsável pelo desenvolvimento e implantação de vários softwares inovadores em áreas técnicas e administrativas. Fora transferido para o sul do país, pois estava envolvido com a implementação de um sistema de sua responsabilidade específica em uma grande empresa brasileira exportadora de produtos manufaturados. 

Há cerca de dois meses, antecedendo sua transferência, iniciara com inapetência, náuseas, dor abdominal e perda de peso. Chegou a perder 4 Kg em um mês e meio. Teria apresentado um episódio de vômitos escuros, o que motivou uma consulta em uma clínica privada, cerca de dez dias antes de sua viagem. Fora atendido por um gastroenterologista, que solicitou exames laboratoriais e indicou uma endoscopia digestiva alta.

Na data estipulada, colheu os exames e realizou a endoscopia. 

Seu médico informou-lhe da existência de uma lesão tumoral e ulcerada localizada no estômago. Referiu ter realizado uma biópsia e orientou que o procurasse em uma semana para nova avaliação. 

Sua família havia mudado e instalada na nova moradia, aguardava a chegada de Milton. Eles não tinham conhecimento de sua condição de saúde.

Quando Milton procurou-me para uma primeira consulta, estava muito revoltado. Compareceu sozinho ao consultório e mencionou que gostaria de estar portando seus exames, mas que infelizmente eles teriam sido extraviados. 

Relatou-me seu histórico clínico recente e informou que não lhe fora dado acesso às informações. Disse que insistira, explicando que tinha um compromisso profissional inadiável, que exigia sua transferência para outro estado e que gostaria de continuar o seu atendimento na nova localidade. 

Recebeu, inicialmente, a informação de que os exames não poderiam ser retirados da clínica, que o médico responsável estava indisponível e não teria feito registro de seu atendimento. Após reiteradas tentativas, Milton recebeu a informação de que todos os seus exames e materiais teriam sido perdidos e que ele deveria submeter-se a nova avaliação. 

Milton pedira o nome do laboratório para onde teria sido encaminhada sua biópsia. Fez contato pessoalmente com o laboratório indicado pela clínica, que informara nunca ter recebido aquele material. 

Indignado com o ocorrido, solicitou meu aconselhamento.

Orientei que não retornasse para aquela clínica. 

A postura administrativa e profissional não inspirava credibilidade. Segundo seu histórico, eles teriam sido displicentes no cuidado de seus exames e materiais.

Informei que os relatórios e exames pertencem ao paciente e sempre devem ser a ele disponibilizados. Os laboratórios que processam materiais, como foi o exemplo de sua biópsia, são responsáveis por sua guarda. Mesmo nesta circunstância, o paciente pode requerer estes materiais para revisão em outro laboratório, desde que assine um documento responsabilizando-se pelo encaminhamento e retorno após a revisão. Todavia, no seu caso havia uma agravante, pois, o laboratório acusava nem sequer ter recebido o material. 

Expliquei que mesmo fazendo contato e obtendo retorno, a informação não seria confiável. Adicionalmente, o seu histórico e as informações, que lhe tinham sido passadas verbalmente, exigiam medidas imediatas e nós não deveríamos despender tempo tentando resgatar dados inconsistentes. 

Sugeri reiniciar sua investigação com a maior brevidade possível. 

Disse que iria ajudá-lo em todos os encaminhamentos, bem como na organização de seus exames e materiais. Orientei que os exames de imagem e laudos fossem organizados e arquivados em ordem cronológica. Eles mereciam o mesmo cuidado que as pessoas costumavam ter com seus documentos de identificação. Adicionalmente, muitas das avaliações médicas exigiriam comparação com exames anteriores, razão pela qual eles nunca deveriam ser descartados. 

Milton refletiu um pouco, mas concordou. 

Revisamos todo o histórico clínico e eu solicitei permissão para examiná-lo. 

Tratava-se de um senhor previamente saudável, com sua constituição física preservada, apesar do histórico de perda ponderal recente. Apresentava sinais de anemia e tinha dor a palpação profunda da região epigástrica, ou seja, sobre a área do estômago. Não havia outras alterações em seu exame clinico. 

Retirei-me da sala para que ele pudesse vestir-se.

Enquanto aguardava, fiquei refletindo sobre a situação. 

Eu já tinha mais de trinta anos de exercício da medicina e esta, infelizmente, não era a primeira vez que tomara conhecimento da perda de exames e materiais. Eu até entendia que estes lamentáveis erros ou falhas pudessem ocorrer. O que eu não aceitava era a atitude, via de regra, arrogante e hipócrita dos responsáveis. Eles deveriam ter reconhecido a existência do problema e buscar soluções alternativas.

Com o aumento progressivo da população, os arquivos de registro e guarda dos hospitais vem tornando-se progressivamente inviáveis, mesmo com o recurso da microfilmagem. Os médicos e administradores conscientes deste problema deveriam comprar este desafio. Várias empresas multinacionais já vêm oferecendo produtos que permitem armazenamento de dados de forma virtual. Este é um campo fascinante de investigação e transformação comportamental chamado de Open Cloud Computing IT. Ele pode ser definido como um sistema onde as funções de software, processamento e armazenamento de dados ficam em um lugar da rede, podendo ser acessadas remotamente via internet1

Esta seria uma evolução fantástica, pois com a utilização de uma senha exclusiva do paciente, as informações de seu prontuário eletrônico poderiam ser disponibilizadas imediatamente, a qualquer hora em qualquer parte do mundo. 

Guardei estas ideias para reflexão posterior.

Voltei à sala de exame. 

Milton estava um pouco mais tranquilo. Percebera que embora tivesse vivido uma experiência negativa, ainda haveria resgate. 

Descrevi, detalhadamente, os achados do exame físico. Expliquei suas limitações e a necessidade de repetirmos a endoscopia. Indiquei o nome de um colega experiente para realizar o exame e assegurei a Milton de que eu o acompanharia durante toda esta investigação, fornecendo-lhe as informações em tempo real e controlando os encaminhamentos de seus materiais. 

Milton agradeceu e para minha surpresa perguntou: Doutor, porque a medicina não faz o registro dos dados do paciente via internet?

E acrescentou: Já fiz vários trabalhos de software para bancos e cartões de crédito. Se as pessoas confiam seu dinheiro a estes sistemas, porque não confiar um bem maior como a sua saúde?

Fiquei chocado e desabafei dizendo: “Milton, embora pareça pouco ortodoxo para um médico expressar-se desta forma, eu não entendo como você pode ler o meu pensamento. Eu estava justamente refletindo sobre esta questão.” 

Milton sorriu descontraído e afirmou categoricamente: Yo no creo en brujas pero que las hay, las hay!

 

Capítulo 2: Orientação diagnóstica e terapêutica

Milton era uma pessoa eclética. Interessava-se por tudo e por todos. Tinha uma disposição contagiante, acreditava em novas ideias e tinha a persistência necessária para concretizá-las. Era alegre, descontraído, dinâmico e empreendedor. Quando começamos a falar sobre computação na nuvem, ele mostrou-se tão entusiasmado que esqueceu sua doença. 

Queria, imediatamente, iniciar um projeto, comprometendo-se a encaminhá-lo de forma corporativa junto a sua empresa. Fui obrigado a interromper, temporariamente, aquele assunto e faze-lo sair da nuvem, pois já começara a rabiscar uma ideia de software

Embora, eu também estivesse motivado pelo assunto, minha missão principal, naquele momento, era cuidar do paciente.

Voltamos para o mundo real. 

Tive a impressão inicial de que Milton teria dado mais importância para o extravio dos exames do que para a própria doença. Precisava conscientizá-lo de que algo relativamente grave estava acontecendo e que ele teria que colocar foco na sua investigação e tratamento. Apesar de todas as suas qualidades, ele era um pouco dispersivo e eu precisava monitorar este comportamento. 

Aconselhei-o a conversar com sua esposa sobre a doença e coloquei-me a disposição para atende-la, assim que tivéssemos os resultados dos exames. Eles estavam casados há vinte anos e costumavam compartilhar todas as decisões. 

Milton justificou que teria retardado a informação para Dóris, pois a família estava em processo de instalação na nova moradia e também ficara muito inseguro sobre o que dizer, frente ao extravio dos exames e materiais. Mas, comprometeu-se em fazê-lo.

No dia marcado compareci ao hospital para acompanhar a endoscopia. 

Milton estava bem e viera acompanhado de Dóris, com quem já havia conversado. A sedação fora feita com propofol, um anestésico venoso de curta ação, cujo efeito mantém-se apenas pelo período do exame, permitindo sua realização em caráter ambulatorial. 

Na endoscopia, fora visualizado uma lesão vegetante e ulcerada localizada no antro gástrico, ou seja, na parte distal do estômago, junto a pequena curvatura. Procedera-se a biópsia e o material fora cuidadosamente rotulado e encaminhado para o laboratório de patologia. Adicionalmente, fora solicitada a pesquisa de Helicobacter pylori, uma bactéria potencialmente associada com o risco de desenvolvimento de tumores no estômago.

Milton acordou cerca de cinco minutos após o término do exame. 

Estava eufórico, pois este anestésico costuma dar uma sensação de bem-estar. Aguardei até perceber que ele estava consciente e comuniquei-lhe o resultado do exame. 

Disse-lhe que iria acompanhar pessoalmente o processamento e avaliação de seu material de biópsia junto ao laboratório de patologia. Reiterei, posteriormente, a Dóris esta decisão, pois sabia que estavam, ainda, muito desgastados com a perda anterior.

Conforme combinado, permaneci em contato com o laboratório. Após adequado processamento do material de biópsia, olhei, juntamente com o patologista, a lâmina de Milton. 

Tratava-se de um tumor maligno chamado adenocarcinoma do tipo intestinal da classificação de Lauren. Este achado era compatível com a localização distal do tumor, observada na endoscopia. Havia um certo grau de atrofia glandular, achado comum neste tipo especifico de tumor, revelando uma mudança no aspecto do revestimento mucoso do estômago, frequentemente atribuída a fatores ambientais. 

A atrofia glandular, conduzira a uma diminuição na secreção ácida, tornando o órgão mais suscetível ao comprometimento pelo Helicobacter pylori, que se mostrou positivo na avaliação do material colhido por ocasião da endoscopia. 

A presença desta bactéria produz compostos nitrosos, que adicionalmente causam mais atrofia da mucosa, gerando um ciclo vicioso altamente propício ao desenvolvimento deste tipo de tumor. 

Milton retorna ao consultório, acompanhado de Dóris e de seus três filhos. Eram três meninos, cujas idades variavam de 12 a 17 anos. Milton solicitara que eu falasse com todos, pois já teria antecipado o problema para os filhos. 

Comprei aquele desafio. 

Entendi que ele estava tentando ser o mais transparente possível na condução de seu problema. Esta atitude estava em consonância com o seu temperamento extrovertido e com a forma franca e transparente como sempre conduzira a dinâmica familiar. 

Refleti um pouco sobre a maneira de abordar a questão frente a um grupo tão heterogêneo. 

Minha secretária havia acomodado a todos em uma sala de entrevistas. Quando entrei na sala, a família conversava de forma descontraída. Falavam sobre a instalação na nova moradia e sobre a adaptação dos meninos na escola. Tive a sensação de que aquela família estava conseguindo elaborar a doença com relativa serenidade. A impressão era de que Milton passara uma visão superficial do problema e o encaixara na rotina quotidiana. 

Procurei enquadrar-me neste mesmo cenário.

Quando sentei, todos interromperam a conversa e olharam-me nos olhos, na expectativa do que seria comunicado. 

Procurei ser claro e objetivo, mas mantive uma linha de diálogo sereno e afetivo, usando uma linguagem passível de ser entendida por todos, independentemente das idades. 

Expliquei que Milton tinha um tumor localizado em uma região do estômago. Disse que ele teria que fazer alguns exames adicionais para verificarmos se a doença estava restrita a este órgão. Antecipei que se os exames fossem normais, Milton teria que fazer uma cirurgia retirando a parte do órgão que estava doente. Este material seria examinado no laboratório e definiria a necessidade ou não de tratamento adicional. Expliquei que havia uma bactéria no estômago, mas que ela seria, imediatamente, tratada com antibióticos. 

Coloquei-me a disposição para perguntas.

Milton tomou a iniciativa e informou que apesar de ser difícil para todos, ele sentia-se seguro. Tinha encontrado bom acolhimento na família. Também havia comunicado a situação em seu ambiente de trabalho e recebera total e incondicional apoio, com flexibilização de horários e tarefas. Finalizou dizendo que confiava no meu trabalho.

Naquele momento, percebi que ele tinha alicerçado todos os pontos centrais na manutenção da estabilidade familiar. Entendi que este era o motivo da leveza com que todos estavam enfrentando a doença. 

Dóris perguntou quais os exames que precisariam ser feitos. 

Respondi que não eram muitos. Precisaríamos apenas de uma tomografia computadorizada do tórax e abdômen total e de alguns exames de sangue. 

Se todos fossem normais, Milton faria a cirurgia.

Não houve mais perguntas e fiquei falando um pouco mais com os meninos sobre futebol, enquanto minha enfermeira ajudava o paciente a fazer o agendamento de seus exames.

Passaram-se poucos dias e Milton retornou ao consultório com o resultado dos exames. 

Estavam todos normais com exceção de um nódulo de dois centímetros, localizado no segmento sete do lobo direito do fígado8. Era um nódulo que captava o contraste da tomografia e o radiologista havia interrogado sua natureza. Comparecera sozinho e expressara preocupação com a possibilidade de ser uma metástase. 

Convidei-o para olharmos juntos o exame. 

Ele concordou.

Examinei cuidadosamente a tomografia do abdômen e fiquei com a impressão de que o nódulo poderia ser um hemangioma. Perguntei se ele teria feito algum exame de imagem do fígado no passado, para obter uma avaliação comparativa. 

Milton respondeu que não.

Expliquei que o hemangioma era um tumor benigno do fígado e que existia um exame que poderia esclarecer esta dúvida, chamado cintilografia com pool sanguíneo hepático. 

Era um exame simples, que usava uma baixa dose de contraste radioativo, isento de risco e que em uma lesão de dois centímetros de diâmetro teria boa chance de fazer o diagnostico diferencial entre metástase e hemangioma.

Milton apressou-se em marcar e fazer a cintilografia.

Eu tinha consciência da importância daquele momento. Se a lesão no fígado fosse metastática, ele não teria chance curativa. Se fosse hemangioma, seguiríamos com o plano de tratamento original. Por esta razão, acompanhei-o no exame. Eu iria permanecer todo o dia no hospital e pedi que ele me aguardasse após o exame, pois eu iria definir esta situação, ainda, naquele mesmo dia.

Meu colega do laboratório de medicina nuclear era um profissional com muita experiência e eu me sentia seguro com sua avaliação. 

Algumas horas após o exame, meu colega concluiu que com certeza tratava-se de um hemangioma. 

Festejei o resultado e apressei-me em comunicá-lo para Milton. Aproveitei a oportunidade para indicar o nome de um cirurgião oncológico da minha confiança, solicitando que ele marcasse uma avaliação com a máxima brevidade.

Milton sentiu-se aliviado. 

Agradeceu o encaminhamento e voltando a expressar seu comportamento habitual de descontração, disse: Vou marcar isso logo. Mesmo trabalhando na nuvem, prefiro, por enquanto, fazê-lo aqui da Terra.  

Poucos dias depois, o cirurgião entrou em contato comigo. 

Ele havia revisado todos os exames e concordara em fazer a cirurgia. Argumentou que o tumor estava localizado na porção distal do estômago, o que permitiria uma gastrectomia subtotal, ou seja, seu plano era retirar somente uma parte do órgão. Programou uma ressecção D1, como é o standard no mundo ocidental, em que somente os linfonodos próximos do estômago são dissecados. Justificou sua recomendação, baseado na redução do risco cirúrgico. Disse que iria fazer uma ecografia transoperatória do fígado, para ter mais segurança quanto ao diagnóstico do hemangioma.

Milton internou na véspera da cirurgia. 

Seus exames pré-operatórios estavam normais. Ele transferira para a equipe cirúrgica a mesma relação de confiança. O cirurgião mostrara um vídeo ilustrativo de todas as etapas do procedimento e explicado a intenção curativa da cirurgia. 

O procedimento transcorreu sem complicações. 

O achado da ecografia transoperatória confirmara a existência do hemangioma como lesão única do fígado e, portanto, não relacionada ao câncer do estômago. O cirurgião manteve seu plano original e procedeu a gastrectomia subtotal, certificando-se da existência de boa margem de segurança. Reconstituiu o trânsito gastrointestinal por meio de uma técnica de sutura chamada Bilroth II. Explorou os linfonodos, retirando-os para exame posterior.

Eu acompanhara todo o ato cirúrgico e a recuperação pós-operatória de Milton. Tudo transcorrera bem. 

Poucos dias depois, recebi o exame anatomopatológico. 

O patologista confirmou o diagnóstico de adenocarcinoma tipo intestinal de Lauren com extensão na parede do estômago restrita a muscular própria e metástase em dois dos dezessete linfonodos dissecados. As margens cirúrgicas estavam livres, ou seja, o tumor havia sido completamente ressecado.

Fui ao quarto do paciente. 

Ele já estava no sexto dia de pós-operatório. Havia reiniciado uma dieta branda e encontrava-se em condições clínicas de alta. Seu cirurgião comentara todos os achados transoperatórios e antecipara a informação da necessidade de tratamento complementar. Milton estava confiante, tinha feito uma pasta onde organizara cronologicamente todos os seus exames e relatórios e solicitou que conversássemos sobre a sequência de seu tratamento. 

Pedi que me alcançasse sua pasta. Selecionei o exame anatomopatológico. Mostrei a ele que embora todo o tumor tivesse sido retirado, a presença de metástase em dois linfonodos era um indicador de risco para a recidiva local e sistêmica da doença. Expliquei que teríamos que fazer um tratamento chamado adjuvante com a associação de quimioterapia e irradiação. 

Milton refletiu por um período e perguntou: Isto vai aumentar minha chance de cura?

Respondi categoricamente que sim. 

Expliquei que um estudo internacional, envolvendo múltiplos hospitais norte americanos denominado Intergroup 116 havia mostrado um nítido benefício com o tratamento adjuvante no câncer de estômago.  

Ele interferiu perguntando sobre a duração do tratamento, complicações e chance de cura.

Expliquei que ele estaria completo em aproximadamente seis meses. Disse que iniciaria com cinco dias de quimioterapia. Um mês após, começaria a fase mais difícil do tratamento, em que seria feita uma combinação da radioterapia com quimioterapia. A radioterapia teria uma duração de cinco semanas e ele receberia quimioterapia nos quatro primeiros dias e nos três últimos dias da irradiação. Terminada esta fase, o tratamento seria concluído após dois ciclos mensais de cinco dias de quimioterapia exclusiva. 

Milton acompanhava com atenção. Usando um calendário, rabiscava com criatividade um desenho do esquema que eu acabara de explicar.

Reiterei, apontando para seu esquema, que a fase de combinação da radioterapia com a quimioterapia era a mais delicada. 

Sempre que se tinha que irradiar a porção superior do abdômen, em associação com quimioterapia, havia uma somação de para-efeitos. Milton teria que estar preparado para uma fase de desconforto abdominal, causado por dor ou distensão, náuseas, inapetência e diarreia. Além disso, ele estaria com sua imunidade diminuída e, portanto, maior suscetibilidade para infecção. 

Expliquei que eu estaria supervisionando todas estas etapas e procurando diminuir ao máximo seu desconforto. Poucas semanas após o término do tratamento, tudo voltaria ao normal. Completei dizendo que a intenção do tratamento era curativa e que estávamos trabalhando com um percentual de 50%.

Milton não valorizou muito o percentual. 

Manifestou sua concordância e perguntou se poderia trabalhar. Justificou dizendo que suas duas maiores alegrias na vida eram a convivência familiar e o trabalho. 

Respondi que a convivência com a família seria permanente, pois todo o seu tratamento iria ser ambulatorial, ou seja, não precisaria internar no hospital. Quanto ao trabalho, ele já havia feito arranjos para reduzir, temporariamente, suas responsabilidades, mas dentro do possível, poderia manter-se parcialmente ativo.

Milton perguntou se já poderíamos iniciar seu tratamento. 

Respondi que ele teria que ter um pouco de paciência, pois recém tinha feito a cirurgia. Teríamos que aguardar mais umas três semanas para que ele se restabelecesse e então iniciaríamos o tratamento adjuvante conforme combinado.   

Ele concordou.

Despedi-me, solicitando que ele me procurasse no consultório em três semanas. Reiterei que ele seguisse rigorosamente as orientações da equipe cirúrgica neste intervalo de tempo. Reforcei a recomendação de que me ligasse se houvesse qualquer problema.

 

Capítulo 3: A crise de identidade

Cerca de dez dias após, meu colega cirurgião contatou-me, informando que Milton estava bem. Já havia retirado os pontos cirúrgicos e não havia complicações pós-operatórias. Ele estava dando alta cirúrgica para o paciente. 

Agradeci o contato e informei-lhe sobre o plano de tratamento adjuvante. 

Coincidentemente, poucos minutos depois Milton telefonou-me. 

Disse estar bem, mas precisava falar comigo, pessoalmente. 

Eu estava quase concluindo minhas consultas daquela tarde e pedi que viesse ao consultório, imediatamente. 

Milton chegou com uma expressão contrariada. 

Perguntei se estava com algum problema. 

Ele respondeu que sim. 

Disse que estava ferido em sua autoestima. 

Ele teria sido contatado pela direção de sua empresa naquela manhã. Recebera uma indicação de afastamento temporário por motivo de doença. Referiu que o trataram bem como era o usual, mas argumentaram que pelo período em que estivesse em tratamento não poderiam mantê-lo em qualquer função de responsabilidade. Seus projetos e clientes teriam sido transferidos para um colega. Ele permaneceria sendo pago, continuaria morando com a família em sua nova residência e poderia retomar suas atividades após o término do tratamento.

Milton era um profissional exemplar. Trabalhara para aquela empresa por mais de vinte anos e nunca faltara a um compromisso. Teria sempre superado todas as expectativas e metas e achava ultrajante o que estava acontecendo. 

Ele havia subestimando seu problema de saúde e demonstrado unilateralidade no julgamento da questão. 

Eu já tinha bastante liberdade de comunicação com Milton para tentar fazê-lo compreender a atitude da empresa. 

Expliquei que seu tratamento não seria fácil e que muitas vezes ele iria se sentir indisposto ou incapacitado para o cumprimento das tarefas. Estava contraindicado a exposição a qualquer situação de stress físico ou emocional. Manter sua atividade em condições plenas, poderia gerar para ele e para a empresa situações de no mínimo constrangimento. Procurei fazer com que entendesse que a empresa estava sendo correta, pois teria dado todo o suporte e mantido a perspectiva de seu retorno. Expliquei que não estavam fazendo isso por caridade, mas porque ele era um excelente profissional e eles não queriam perdê-lo. 

Milton refletiu um pouco e aceitou meu racional, porém argumentou dizendo que seria muito difícil manter-se inativo pelo período de seis meses. 

Ele considerava-se jovial, cheio de energia, entusiasmo e criatividade. Referiu ser um pouco hiperativo e que precisava convergir esta disposição proativa ao trabalho para algo produtivo.

Procurei ter uma visão mais compreensiva do que estava acontecendo. Ele não demonstrara muita preocupação com a doença. Por alguma razão inexplicável, tinha a convicção de que iria ficar curado. Na sua cabeça a chance de curabilidade sempre fora 100%, embora eu já o tivesse alertado de que estávamos trabalhando com uma perspectiva bem menor. 

Todavia, minha experiência assistencial mostrara que na visão do paciente, a estatística era mais útil para jogos de dados do que para administração da saúde. Mesmo baseando-se em dados concretos, cada paciente construía sua visão de futuro e lutava para atingi-la. Eu aprendera a respeitar esta atitude otimista. Porem, precisava paralelamente administrar a questão. 

Após refletir por alguns segundos, expliquei que a despeito do tratamento limitá-lo em sua atividade junto a empresa, ele não iria bloquear sua criatividade. Disse que muitas vezes uma maior disponibilidade de tempo até ajudava as pessoas a refletir melhor sobre a orientação de seus projetos de vida. 

Sugeri que ele considerasse esta visão alternativa.

Milton concordou. 

Eu não ficara com a sensação de que ele havia aceitado, instantaneamente, a totalidade de meus argumentos. Mas, percebera que ele iria refletir sobre a questão.

Concluímos que deveríamos encerrar aquele encontro e voltarmos a falar sobre o assunto dentro de um período de dois ou três dias.

Em menos de 24 horas, Milton voltou ao consultório. 

Disse que teria encontrado uma alternativa. Havia contatado com um grupo de profissionais que estavam trabalhando no desenvolvimento de softwares na área de medicina. Propôs retomarmos o assunto da computação na nuvem. Ele ficara entusiasmado com a ideia, argumentando que iria continuar exercendo sua criatividade durante o período de seu tratamento. 

Disse que funcionaria como uma terapia ocupacional, pois ele não suportaria a ideia de permanecer passivo, “cultuando” a doença. Explicou que poderia trabalhar em casa e que não haveria excessos.

Milton fora convincente. 

Concordei com a ideia. 

Combinamos seu retorno na data estipulada para o início do tratamento adjuvante.

Antes de sair, pediu para levar consigo todo o material informativo que eu costumava disponibilizar para os pacientes no consultório. Explicou que iria utilizá-lo como protótipo no desenvolvimento de suas ideias. 

 

Capítulo 4: A criação de uma Ficha Clínica virtual Personalizada (Global e-PHR)

Trabalhando na nuvem, Milton desenvolveu o conceito da Global e-PHR.

A computação em nuvem é uma denominação alegórica. Trata-se de uma metáfora usada para definir novas tecnologias que permitem que o datacenter seja operado pela Internet. Os dados podem ser acessados ​​e compartilhados como um recurso virtual, mesmo estando armazenados em um ambiente físico seguro.

PHR significa Personal Health Record e é precedido pela letra e porque está em um arquivo eletrônico (digital), especialmente projetado para facilitar o upload de todos os dados médicos. O sistema está centrado nas necessidades e direitos dos pacientes. O registro pertence ao paciente, como um documento de identidade. O paciente é solicitado a preencher o registro. Todo o restante é fornecido pelos médicos assistentes, responsáveis ​​pela qualidade dos dados. Os médicos são orientados a criar uma lista de problemas, de acordo com o problem-oriented medical record (POMR), conhecido mundialmente, e descrito por Lawrence Weed. Os pacientes são estimulados a interagir ativamente com seus médicos para qualificar melhor a lista de problemas. Uma base de dados composta por histórico clínico, exame físico e alguns dados laboratoriais preliminares apoia cada problema listado. Com base em cada problema numerado, os médicos definem seu planejamento de intervenções, mantido sob vigilância até a respectiva resolução. Além disso, os relatórios, imagens e vídeos de cada exame de diagnóstico são incluídos sob orientação médica no ícone projetado. O global e-PHR também forneceria aos usuários, na linha temporal, uma lista de eventos, gerada automaticamente, bem como um resumo clínico completo. O acesso a global e-PHR ocorreria por meio de um usuário e senha, exclusivos do paciente. Somente o paciente teria o direito de compartilhar informações. A critério do paciente, o compartilhamento dos dados de sua global e-PHR seria restrito a profissionais ou instituições diretamente envolvidas em seus cuidados de saúde. O uso da computação na nuvem, tornaria o e-PHR um recurso universal, acessível em tempo real.

Milton também projetou um protótipo da global e-PHR, disponibilizando-o em um site para comentários e sugestões críticas (www.ephr.org). Um registro eletrônico de saúde personalizada envolve várias partes interessadas, o que torna difícil sua implementação no mundo real. Tentando superar limitações históricas, Milton criou um big data, usando uma plataforma que integrava os comentários dos principais stakeholders.

Depois de discutir comigo algumas etapas médicas, Milton publicou o arquivo eletrônico mostrado abaixo e começamos a descrever o que seria incluído em cada ícone. O modelo utiliza a língua inglesa para facilitar a comunicação universal.

 


Foram identificados cinco stakeholders (paciente, médico, administradores de instituições de saúde, profissionais de tecnologia da informação, e companhias de seguro de saúde) e seus comentários categorizados. As categorias foram relacionadas às cores e tons da obra-prima Mona Lisa de Leonardo da Vince. Cada comentário seria associado a seis pixels. A combinação de pixels repintaria a Mona Lisa com resolução crescente. Essa metodologia de raciocínio de abdução, mostrado em cores e tons criaria um grande volume de dados (big data), apoiando a geração de inteligência coletiva e auxiliando a solução de problemas mal estruturados.

Em 2011, a Apple Worldwide Developer’s Conference, já havia anunciado a adaptação do sistema operacional de seus equipamentos ao caráter universal da Internet:

Vamos rebaixar o PC e o Mac para ser apenas mais um aparelho, a semelhança do iPhone, iPad ou iPod Touch. Vamos mover o centro de sua vida digital para a nuvem. Todos esses novos aparelhos estão habilitados para interagir e podem conectar-se com a nuvem, sempre que quiserem. Se, neste momento, algo entrar em meu iPhone, será imediatamente enviado para a nuvem. Ao tirar fotos com ele, essas imagens vão para a nuvem e automaticamente retornam ao meu iPhone. Tudo está em sincronia comigo, sem sequer ter que pensar sobre isso. Eu não preciso mais estar perto de meu Mac ou PC. Este é o conceito de iCloud. O conteúdo fica armazenado na nuvem, a qual, livre de fiação, o disponibiliza para todos os aparelhos e aplicativos.

Steve Jobs, 2011


Capítulo 5: Retornando ao mundo real

Encaminhei um mail para Milton cumprimentando-o pela qualidade do trabalho. Disse ter ficado agradavelmente surpreso com a velocidade com que teria entendido a dinâmica da assistência médica e as peculiaridades da interatividade. Usando sua linguagem, disse que começávamos a trabalhar a medicina na nuvem.

Na data agendada previamente, Milton retornara para iniciar o tratamento adjuvante. 

Ele estava bem. O ferimento operatório cicatrizara e seu estado nutricional voltara ao normal. Seus exames laboratoriais mostravam desaparecimento da anemia e todas as contagens hematológicas e avaliações bioquímicas permitiam o início do tratamento.  

A primeira fase seria composta por cinco dias de quimioterapia ambulatorial. Milton não demonstrara muita curiosidade e sentia-se confiante, como era o habitual. Viera junto com Dóris, que iria acompanhá-lo durante todo o tratamento.

Expliquei que muito provavelmente esta fase não teria para-efeitos. Mesmo assim, tomaríamos todos os devidos cuidados de vigilância. Seria instalado um soro, administrado medicações de proteção contra vômitos e em sequência ele receberia por via venosa os dois medicamentos que compunham a quimioterapia. 

Ele teria que permanecer na clínica cerca de uma hora por dia. Expliquei que apesar dos medicamentos serem administrados por cinco dias, seu efeito biológico estaria ocorrendo pelo período de mais três semanas e esta era a razão para o intervalo que antecedia o segundo curso de quimioterapia. 

Aproveitei a oportunidade para orientá-lo sobre a consulta com o médico da radioterapia, pois na sequência seu tratamento envolveria a combinação com irradiação, conforme eu já havia mencionado previamente. 

Ele teria que ser visto na radioterapia, já na semana seguinte, pois era necessário fazer o planejamento. Este consistiria na avaliação com um médico especializado em irradiação, que iria definir, com auxilio de um software, os campos e doses de irradiação. Adicionalmente, eu precisaria revisá-lo no consultório para avaliar sua tolerância ao tratamento. 

Expliquei que existiam situações raras de pacientes maus metabolizadores de fluoropirimidinas e que precisaríamos estar atentos para este risco, que costumava expressar-se já nos primeiros dias do tratamento, exigindo sua interrupção. 

Nossa enfermeira responsável técnica tinha mais de vinte anos de experiência e com muita habilidade acomodou Milton e Dóris em uma sala de quimioterapia. Dóris trouxera um bordado e iniciou a trabalhar nele, passando uma sensação de profunda serenidade para Milton. Ele, como não poderia deixar de ser, considerando seu temperamento, portava um laptop. 

 Voltei a falar com Milton sobre computação na nuvem, um assunto que parecia lhe interessar mais do que o tratamento. Afirmou ter evoluído no desenho do software, mas precisava compartilhar algumas questões comigo. 

Disse que o coração do projeto estava no prontuário eletrônico e no seu gerenciamento. Informou-me que havia pedido, informalmente, um parecer para a consultoria jurídica de sua empresa sobre a legislação em informática médica, mas que aparentemente ainda era frágil. 

Milton estava preocupado com a segurança dos dados e tentava reforçar os dispositivos de controle. Lembrou de seus exames extraviados e disse que isto jamais ocorreria em um sistema eletrônico, como o que estávamos desenvolvendo. Milton havia projetado um sistema tão seguro, quanto aquele utilizado pelos bancos. 

Manifestei meu contentamento, mas pedi que continuasse encarando este projeto como uma “terapia ocupacional” e não jogasse muito stress negativo nele. 

Milton interrompeu-me e perguntou o que eu queria dizer com stress negativo.

Respondi que era tudo aquilo que o fizesse sofrer. 

Disse que o entusiasmo com que ele conduzia este projeto não representava problema, desde que ele não se colocasse sob pressão. Expliquei que todos os desafios que enfrentamos na vida vem acompanhados de gratificações e sofrimentos. Solicitei que Milton dividisse comigo os sofrimentos para podermos juntos analisá-los e superá-los ou, eventualmente, descartá-los. 

Ele concordou, informando que o projeto só lhe trazia stress positivo e até ajudava a combater o stress negativo da doença e seu tratamento.

Voltando ao assunto de sua preferência, pediu que eu começasse a pensar sobre o conjunto de modificações comportamentais que este projeto iria demandar. Advertiu que precisávamos começar a imaginar como seria esta nova realidade.

Sugeriu a implantação na clínica de um projeto piloto para avaliar as funcionalidades. Os pacientes seriam informados deste recurso e participariam de forma voluntária.

Respondi que iria pensar e que voltaríamos a abordar este assunto. 

Milton passara pelo primeiro ciclo de quimioterapia sem apresentar qualquer complicação e já havia planejado seu tratamento na radioterapia. 

 

Capítulo 6: Lidando com os eventos adversos do tratamento adjuvante

Formou um ótimo vínculo com o grupo de profissionais do serviço de radioterapia e interessou-se pelo software do planejamento com IGRT* e gate respiratório21. Esta era uma técnica de segurança, pois dava maior precisão na definição dos campos de tratamento, diminuindo a exposição de estruturas normais à irradiação. O gate respiratório promovia um funcionamento intermitente do aparelho, baseado nos movimentos do tórax e do abdômen superior durante a respiração. 

Chequei, juntamente com meu colega da radioterapia, os exames laboratoriais do paciente e iniciamos o tratamento combinado. 

Esta era uma fase difícil, pois frequentemente havia para-efeitos. 

Milton não foi uma exceção a esta regra. 

Cerca de três semanas após o inicio da radioterapia, iniciou com inapetência e dor localizada na parte superior do abdômen. Nós sabíamos que a despeito destas complicações o tratamento teria que ser continuado, pois havia a necessidade de manter intensidade de dose. O sucesso da irradiação depende não somente da dose total planejada, mas também do tempo de administração e nós não poderíamos fugir das cinco semanas planejadas. 

Prosseguimos com o tratamento.

No final da quarta semana, Milton tinha melhorado um pouco, apesar de toda a dose acumulativa administrada. Referiu que felizmente a irradiação era administrada somente cinco vezes por semana e que as pausas do final da semana eram essenciais para sua recuperação. 

Iniciamos a última semana, a mais difícil, quando o efeito da radioterapia era potencializado pela quimioterapia nos três últimos dias do tratamento. 

Milton enfrentou esta fase com muita dificuldade. 

Manifestou muita prostração, alimentava-se pouco e na maior parte das vezes somente com líquidos. Teve náuseas, vômitos, diarreia e intensificou-se a dor abdominal. Fomos obrigados a recorrer a internação hospitalar para manter o seu equilíbrio hídrico e eletrolítico, bem como usar medicamentos de suporte. Intensificou-se a anemia e houve queda de contagem de glóbulos brancos. Todavia, não houve sinais de infecção. A anemia chegou a um valor critico e tivemos que o transfundir com duas unidades de concentrado de hemácias. 

Milton foi progressivamente melhorando, tendo alta hospitalar em menos de uma semana. 

Mantive-o sob controle frequente. 

Passaram-se duas semanas e ele retornou para revisão. 

Estava bem melhor. Seus sintomas eram mínimos e encontrava-se em uma condição nutricional mais favorável. Expressou que embora eu o tivesse advertido, ele admitia ter subestimado o incômodo desta fase. Perguntou se os dois próximos ciclos de quimioterapia seriam igualmente difíceis. 

Respondi que, provavelmente, não. 

Expliquei que a fase mais sofrida era a anterior. Todavia, eventualmente, a quimioterapia mesmo um mês depois poderia produzir um recall dos para-efeitos da irradiação, mas que mesmo nesta circunstância, não seria tão tóxico como na etapa do tratamento concomitante.  

Milton sentiu-se aliviado. 

Voltando a sua condição de humor original, confessou que havia parado, temporariamente, de trabalhar na nuvem, pois nesta fase, temia que pudesse cair dela.

Reforcei que este era um projeto grandioso e de expressivo valor humanitário. Com progressiva inclusão digital, ele não teria limites na sua abrangência. Muitas das atividades assistenciais médicas eram fundamentadas na interatividade. Seu projeto contemplava as funções mais importantes na relação dos pacientes com os médicos e com as instituições. 

Lembrei que tudo iniciara com sua experiência pessoal negativa da assistência médica. Todavia, ela permitira que ele defendesse um dos aspectos éticos mais importantes da medicina.

Milton olhou para mim com uma expressão de interrogação. 

Ele talvez não tivesse percebido, mas seu protótipo colocava o gerenciamento do prontuário na mão do paciente, ou seja, exatamente, onde ele deve, por direito, ficar.

Milton completou seu tratamento com sucesso. 

Retomou para suas atividades na empresa, onde assumiu responsabilidades progressivamente maiores. 

Hoje, Milton já está com dois anos de seguimento, sem sinais de recidiva e clinicamente estável. Ele segue, criteriosamente, as recomendações de acompanhamento. 

Continuamos melhorando os objetivos e funcionalidades do projeto da medicina na nuvem. 

Nosso maior desafio é a mudança comportamental.

 

*  Todos os personagens são fictícios  

** Referências bibliográficas que podem ser encontradas no livro Conexão Anticâncer – as múltiplas faces do inimigo interno de James Freitas Fleck


Habilidades e Competências adquiridas na 8ª Simulação Clínica:

A Medicina é universal

James Fleck: Conexão Anticâncer, Síntese da 8ª Simulação Clínica

Um dos principais méritos da medicina é sua universalidade. Existe uma força propulsora marcada pela cooperação multiprofissional. Cada nova descoberta é imediatamente divulgada e compartilhada pela comunidade científica. Não costuma haver registro público de propriedade intelectual. Os pesquisadores na área da saúde aprenderam a trabalhar com humildade, entendendo que o mistério da vida é maior do que qualquer avanço técnico, por mais relevante ou inusitado que seja. A publicação é feita em revistas científicas e a motivação transcende o retorno imediato. Quando as evidências atingem impacto clínico, este conhecimento é rapidamente incorporado à prática assistencial e amplamente divulgado por recursos de mídia. 

Milton não tinha consciência deste cenário universal da medicina. Sofrera com o extravio de seus dados clínicos e desorganização documental. Propôs algo novo centrado na ótica do paciente. Idealizou um conceito em que seus dados clínicos poderiam ser acessados globalmente, usando uma assinatura eletrônica. Colocou o prontuário eletrônico do paciente na internet, armazenado seus registros na nuvem, com acesso remoto, em tempo real a qualquer hora do dia.

Milton era muito transparente. Ele expressava leveza, fluidez e desprendimento em suas relações. Tinha visão social. Suas ideias conduziam a quebra de um paradigma, gerando uma mudança comportamental. Nelas, havia um forte apelo para uma universalidade assistencial.

Milton sugerira a utilização dos recursos interativos da internet para integrar esforços de pacientes, médicos e instituições na luta global contra o câncer. Os benefícios seriam imediatos. O paciente seria educado para participar em todas as etapas do diagnóstico do câncer e no processo de decisão do tratamento. Sairia de uma posição de passividade. O paciente passaria a escolher o médico com base na localização anatômica da doença com acesso total ao currículo e cronologia do profissional. O médico editaria a ficha eletrônica personalizada, onde o paciente poderia visualizar os dados técnicos, sustentados por referências bibliográficas. Com base nos dados constantes em sua página, poderia gerenciar seu atendimento. A consulta seria agendada por meio eletrônico, facilitando o acesso ao médico. Após a consulta, o paciente poderia contatar o médico a qualquer momento e discutir com o profissional todos os detalhes de sua recomendação. O paciente poderia buscar uma segunda opinião e até solicitar uma conferência médica. O médico registraria todos os dados no prontuário eletrônico do paciente. O paciente teria acesso contínuo e irrestrito a seu prontuário. O prontuário teria portabilidade e acesso universal imediato. Todos os dados do paciente seriam armazenados, protegidos por acordo de confidencialidade e acessados por assinatura eletrônica. 

Embora seja uma visão futurista, um prontuário eletrônico global é uma ferramenta desejável e passível de ser conquistado.