7ª Simulação Clínica

Nascendo uma Flor de Lótus

Objetivo:

Exercício de medicina multidimensional na assistência a um paciente jovem que enfrenta o tratamento curativo para um tumor de testículo não-seminomatoso, expressando resiliência.

James Fleck, Conexão Anticâncer, 7ª Simulação Clínica

 

Capítulo 1: Apresentação Clínica

Estava começando o mês de junho. Um mês em que, sazonalmente, se iniciava o período das pneumonias no sul do Brasil. Representava um momento de queda expressiva da temperatura, em um clima caracteristicamente úmido. Os hospitais tendiam a ter a ocupação máxima de suas instalações. 

Eu estava responsável pelo acompanhamento dos pacientes internados no serviço de oncologia de nosso hospital universitário. Estávamos com nossa capacidade de atendimento esgotada. Não havia mais leitos disponíveis e meus residentes revezavam-se no atendimento dos pacientes sob minha responsabilidade e orientação. 

Felizmente, nós contávamos com residentes muito qualificados, que já tinham passado, no mínimo, por dois anos de treinamento prévio em medicina interna, antes de serem, criteriosamente, selecionados para a especialidade de oncologia. Eles eram compromissados com suas funções, desprendidos na disponibilidade e fortemente motivados na busca do conhecimento. Eram treinados para o exercício de uma assistência técnica e afetiva a uma população de pacientes habitualmente carente.

Meu residente Mauro, de 28 anos, havia passado o dia na atividade assistencial. Eram oito horas da noite e ele preparava-se para descansar, quando foi chamado na emergência do hospital. Rapidamente, deslocou-se para o setor e encontrou o colega plantonista que lhe apresentou o caso de Roberto.

Tratava-se de um jovem de 23 anos, que chegara à emergência há cerca de uma hora, com um quadro clinico sugestivo de pneumonia. Apresentava tosse, expectoração purulenta, febre de 39°C, dor em todo o hemitórax esquerdo e expressiva falta de ar. 

Já havia sido colhido exame para cultura do escarro e iniciara com antibióticos. No exame físico, havia a suspeita de um extenso derrame pleural, ocupando todo o lado esquerdo do tórax. 

Um RX de tórax confirmara esta impressão. 

Habitualmente, a pneumonia não justificaria todos estes achados. Adicionalmente, o médico plantonista identificara um tumor no testículo direito de Roberto, razão pela qual solicitara nossa intervenção.

Mauro entrou em contato comigo e tomamos a decisão de puncionar a cavidade pleural, visando retirar o líquido, que lhe comprimia o pulmão.  

Roberto tinha risco de não suportar aquela condição por muito tempo, pois sua oxigenação estava prejudicada e a função cardíaca era instável. 

Desloquei-me para o hospital e realizamos o procedimento, com o auxilio de um médico do serviço de radiologia intervencionista. 

Foram extraídos 800 ml de um líquido turvo da cavidade pleural.   

Roberto teve uma importante melhora de sua condição respiratória e cardíaca logo após o procedimento. Seu quadro respiratório e circulatório estabilizou-se, dando-nos o tempo necessário para conduzir a investigação. 

Roberto internou via emergência, sendo deslocado para um leito, sob os cuidados do serviço de oncologia. 

Mauro já havia solicitado exames de sangue para avaliar contagens hematológicas, função renal e hepática. Eu sugerira acrescentar, a avaliação de dois marcadores para tumor de testículo, considerando o achado clínico. 

Estes marcadores tumorais são denominados de gonadotrofina coriônica fração beta (beta-HCG) e alfafetoproteina (alfa-FP), ambos muito importantes para posterior monitoração do tratamento de Roberto. Solicitamos também uma tomografia computadorizada de tórax e outra de abdômen total.

Assim que conseguimos estabilizar a situação, perguntei a Mauro se ele teria tido algum contato com os familiares. Ele informou-me que Roberto teria chegado sozinho ao serviço de emergência e que ao ser questionado sobre um contato familiar, informara um número de celular que se encontrava fora de área. 

Sugeri a Mauro que fosse descansar.

 

Capítulo 2: Exames para diagnóstico e estadiamento

Fui ao quarto de Roberto. 

Ele estava melhor e a enfermeira dera-lhe uma refeição leve. 

Era um sanduíche de queijo, partido na metade. Roberto comera a primeira metade e oferecera-me a outra. Agradeci, mas senti-me tocado por aquele gesto singelo de desprendimento. 

Roberto demonstrou-se muito espontâneo e comunicativo. Agradeceu o atendimento prestado na emergência e pediu informações sobre o que estava ocorrendo, pois, a ideia inicial era de uma pneumonia, mas tudo havia tomado uma proporção muito maior. 

Expliquei que a pneumonia provavelmente estaria ocorrendo devido a alguma compressão sobre o pulmão. Expliquei que tínhamos detectado um tumor no testículo e que possivelmente ele seria o responsável por todo o quadro clínico. 

Roberto afirmou que já havia notado este aumento em seu testículo direito, mas tinha associado com um trauma. Ele usava uma motocicleta para trabalhar e achava que poderia ter, inadvertidamente, machucado o testículo, em uma manobra de trânsito.

Expliquei que tínhamos solicitado vários exames para poder julgar melhor toda a situação e que estaríamos conduzindo sua assistência. Aproveitei a oportunidade de diálogo mais franco para voltar a questioná-lo sobre um contato familiar.

Roberto respondeu, com naturalidade: “Eu não tenho família.”

Aceitei, tacitamente.

Ele já havia passado por um dia difícil, em que sua vida fora ameaçada por uma doença, ainda, não bem esclarecida. Superara o desafio. Eu ficara, naturalmente, preocupado com sua resposta, mas achei que não era o momento adequado para insistir naquele assunto. 

Despedi-me de Roberto, desejando-lhe boa noite.

No dia seguinte, Mauro checou os resultados dos exames de sangue. 

Nem todos estavam prontos, mas o mais importante era verificar como estava função renal de Roberto. Ele iria fazer duas tomografias e ambas necessitavam de contraste radiológico. O contraste iodado é potencialmente tóxico para o rim, especialmente se a função já estiver comprometida. 

Felizmente, seus rins de estavam bem. 

Mauro acompanhou as tomografias e, logo após o exame, chamou-me ao celular, informando-me dos resultados. Disse ter sido detectado aumento de linfonodos no retroperitônio, junto a aorta na emergência dos vasos renais. Eles eram grandes e fusionados com diâmetro aproximado de 6 cm. Disse também haver extenso comprometimento do mediastino, uma região localizada entre os dois pulmões. Lá também foram detectados linfonodos muito aumentados. O pulmão esquerdo estava parcialmente expandido e parecia haver uma massa pulmonar comprimindo a árvore brônquica, provocando um quadro secundário de pneumonia obstrutiva.

Mauro, ainda, não havia informado estes achados ao paciente e tomamos a iniciativa de irmos juntos conversar com Roberto. 

Quando encontrei com Mauro no hospital, comentei, brevemente, o diálogo que tivera com Roberto no dia anterior. 

Chegando ao quarto, encontramos Roberto bem, praticamente sem sintomas. Estava sentado em uma cadeira, lendo uma revista de esportes. Eu, ainda, não tinha tido o tempo necessário para entendê-lo melhor, mas ficara admirado com seu comportamento independente, tranquilo e agregador.

Roberto interrompeu a leitura e perguntou: E ai doutores! O que deu nos exames?

Tomei a iniciativa e expliquei que nossa impressão era de um tumor no testículo que havia se estendido para uma região localizada atrás da barriga e também para uma área situada entre os dois pulmões. Estas células tumorais teriam migrado para cima usando a circulação linfática do testículo.  Havia, também, uma disseminação do tumor por via sanguínea para o pulmão esquerdo, onde a metástase comprimira um brônquio e provocara a pneumonia. 

Roberto perguntou: De onde surgiu todo o líquido que vocês tiraram do meu pulmão, ontem?

Expliquei que este liquido não estava no pulmão, mas dentro de uma membrana chamada pleura, que envolve os pulmões e a cavidade torácica. 

Normalmente não tem muito liquido neste espaço, mas no seu caso o liquido teria acumulado pela dificuldade de drenagem linfática do tórax. Ele comprimira o pulmão e provocara grande parte do sofrimento e risco enfrentados no dia anterior.  

 

Capítulo 3: A expressão da resiliência

A esta altura eu já havia percebido que Roberto tinha resiliência. Era muito objetivo e não fantasiava. Demonstrara muita coragem naquelas primeiras 24 horas de convivência com a doença e rapidamente cativara a equipe assistencial. Sua comunicação era livre e expressava uma autoconfiança inabalável. Ele era o único interlocutor no diálogo sobre sua doença, pois até então, nenhum contato havia ocorrido, confirmando sua afirmação anterior de estar, precocemente, sozinho na vida. 

Em minha atividade profissional, eu aprendera a equilibrar afeto e neutralidade, mas a situação de Roberto era por demais impactante. 

Pedi que o serviço social explorasse um pouco melhor esta situação. Contávamos com profissionais muito dedicados nesta área e talvez eles pudessem nos ajudar a encontrar algum familiar, mesmo que mais periférico. A busca também poderia ser feita em seu trabalho. 

Paralelamente, orientei Mauro a obter mais informações sobre a história da doença, pois a condição crítica de Roberto, no dia anterior, havia impedido esta abordagem mais compreensiva.

Eu tinha o vício profissional de querer entender a alma das pessoas. 

Eu tinha o pressentimento de que a resiliência de Roberto havia sido construída sobre uma história de sofrimento. O sofrimento não gerara uma resposta agressiva ou depressiva. Ao contrário, fora usado como um elemento propulsor para o crescimento pessoal. Ele aprendera com as adversidades a buscar vínculos e a desenvolver valores como afeto, confiabilidade, empatia, cumplicidade e comprometimento. 

Roberto tinha o perfil vencedor. 

Seu comportamento era estoico e em alguns momentos eu sentia que a indiferença frente as adversidades impostas pela doença, tangenciava uma atitude de resignação. 

Preocupei-me com isso, pois sabia que sua resiliência garantiria o enfrentamento pessoal do câncer, mas precisava ser apoiada por uma base que proporcionasse suporte e cuidado, amor e encorajamento. Esta teria sido a razão de minha busca pelos vínculos familiares. 

 

Capítulo 4: Visão biopsicossocial

No dia seguinte, Mauro discutiu comigo o resultado dos demais exames. 

Havia uma expressiva elevação nos valores dos marcadores tumorais beta-HCG e alfa-FP, o que apontava para a existência de um tumor no testículo classificado como não-seminomatoso. O líquido da pleura não mostrara células tumorais e nos estávamos ainda sem o diagnóstico anatomopatológico. 

Expliquei a Mauro que o próximo passo teria que ser a retirada cirúrgica do testículo direito e teríamos que chamar em consultoria a equipe de urologia. Roberto estava estável, respondera bem a antibioticoterapia e teria as condições clínicas para enfrentar este ato cirúrgico que não era de grandes proporções. 

Em poucas horas fomos contatados pelos urologistas. Eles concordaram com o procedimento. O testículo seria retirado por uma abordagem semelhante a uma cirurgia de hérnia. Fariam uma abertura no canal inguinal e o testículo, tracionado pelo cordão espermático, seria retirado íntegro, como é o recomendado para este tipo de cirurgia oncológica9.

Fomos ao quarto de Roberto para comunicá-lo do procedimento cirúrgico. 

Mauro tomou a iniciativa e disse que o tumor do testículo direito teria que ser retirado. Explicou que era necessário não somente porque precisávamos fazer o diagnóstico do tipo de câncer, mas também porque esta era uma etapa importante do tratamento. Mauro também comentou a forma inguinal de abordagem e a necessidade de retirar o testículo inteiro.

Roberto ouviu calado. Sua expressão facial revelara uma certa surpresa e descontentamento frente a esta cirurgia mutiladora. 

Pensou um pouco e perguntou: Como fica o outro testículo? Vocês vão ter que mexer nele?

Mauro respondeu que não, pois no dia em que foram feitas as tomografias, também havia sido realizada uma ecografia dos testículos e o esquerdo estava normal. Explicou que também não haveria problemas com relação a questão hormonal, pois o testículo esquerdo manteria esta função.

Roberto olhou para mim, buscando minha concordância com as informações e confirmação. 

Sacudi a cabeça, em um sentido afirmativo.

Roberto disse resignado: Bom, vou ter que viver com somente um testículo.

Embora não fosse uma pergunta, informei a Roberto que poderia ser colocada uma prótese no local do testículo removido. Ela proporcionaria uma melhor condição plástica e manteria sua percepção de integridade corporal. Disse que poderíamos discutir isso mais adiante, porque naquele momento nosso objetivo estava focado na cura do câncer.

Ele mostrou-se aliviado com a explicação e concordou com a cirurgia. 

Informei que a cirurgia estaria sendo marcada para daqui a dois dias, que ele estaria sendo acompanhado pelos médicos da urologia e que receberia a visita de um anestesista.

Quando Mauro e eu saímos do quarto fomos abordados por Eliza, chefe do serviço de assistência social do hospital. 

Eliza informou ter conversado longamente com Roberto e passou a relatar as informações colhidas. 

Disse que Roberto não conhecera o pai. Ele era filho de uma mãe solteira que teria migrado do norte para o sul do país, ainda muito jovem, em busca de melhores condições de trabalho. Ele era filho único e convivera com a mãe até os seus vinte anos. A mãe não mantivera vínculos familiares em seu local de origem. Ela teria sido diagnosticada com SIDA o que conduzira a um grande sofrimento para ambos pelo período de dois anos que antecedera sua morte. 

Roberto sentira-se precocemente responsável pela condução da vida da mãe. Começara a trabalhar aos dezesseis anos como jornaleiro, ajudando na manutenção da casa e posteriormente no custeio da doença da mãe. Estudava no turno da noite, tendo completado o ensino médio. Fora um ótimo filho e sempre tivera o reconhecimento da mãe. 

Desde a perda da mãe, Roberto vivera sozinho. Ele trabalhava, desde então, como autônomo fazendo telentregas de motocicleta para várias empresas.

Ingressara em uma universidade há um ano, onde cursava administração no turno da noite. 

Sentia-se livre e não se queixava de sua atual situação de vida.

Expressei a Eliza minha impressão anterior de que a vida de Roberto fora marcada por muito sofrimento e que esta seria a base da construção de sua resiliência. 

Eliza concordou e informou que por solicitação de Roberto, teria feito contato com alguns de seus ambientes de trabalho mais frequentes. 

Ela explicara a ausência de Roberto, informando sua recente hospitalização. Referira que todos perguntaram sobre um possível acidente, mas ela respondera que o problema não envolvera trauma. 

Informou que Roberto era muito bem quisto em seus locais de trabalho. Todos os contatos profissionais lamentaram o ocorrido e colocaram-se a disposição para ajudá-lo no que fosse necessário. 

Eliza era uma senhora sensível, inteligente e profundamente comprometida com sua função. Ela compartilhara comigo da mesma preocupação relacionada a falta de contatos familiares. Também já havia tomado as medidas iniciais de encaminhamento da seguridade social, pois Roberto sendo autônomo, não mantinha vínculo empregatício com qualquer daquelas empresas. 


Capítulo 5: A busca por um suporte social

Roberto enfrentara bem o ato cirúrgico. 

Estava no terceiro dia de pós-operatório e o exame anatomopatológico do testículo revelara, como era esperado, um tumor misto com componentes de coriocarcinoma, carcinoma embrionário e teratocarcinoma. A associação deste resultado com uma expressiva elevação dos marcadores, especialmente o beta-HCG, aumentava o risco de comprometimento do cérebro e nos havíamos solicitado uma ressonância nuclear magnética. 

Encontrei com Mauro no serviço de radiologia e fomos olhar a ressonância. 

Felizmente, o exame estava normal e iniciamos imediatamente o planejamento do tratamento com quimioterapia. 

Seria um tratamento agressivo, tóxico, porém com alto índice de curabilidade. 

Meu telefone celular tocou. 

Era a secretária do serviço de oncologia solicitando o meu comparecimento, pois havia duas pessoas querendo conversar comigo sobre a situação de Roberto. 

Perguntei se as pessoas tinham se identificado e qual o grau de relação com Roberto. 

A secretária informou que eles teriam dito ser amigos.

Desloquei-me prontamente até o serviço, enquanto Mauro subira para ver os outros pacientes internados. 

Ao chegar ao serviço de oncologia, pedi que a secretária passasse os conhecidos de Roberto em um dos consultórios. 

Ao entrar na sala encontrei um senhor de aproximadamente 35 anos, vestindo um terno azul escuro e uma jovem mulher de cerca de 25 anos, também vestida socialmente. 

Cumprimentei a ambos, solicitei os seus nomes e qual o grau de relacionamento com Roberto.

A jovem mulher apresentou-se com o nome de Lisa e o senhor disse chamar-se Alan. Ambos tinham vindo da enfermaria, onde teriam ido visitar Roberto. 

Conheceram-se, ocasionalmente, no quarto de Roberto e estavam nitidamente surpresos e constrangidos com a situação. 

Lisa disse ser secretária de uma das empresas para a qual Roberto prestava serviços e Alan conhecera Roberto também em uma circunstância de trabalho, pois era corretor de seguros de uma outra empresa que utilizava seus serviços de telentregas.

Lisa disse ter iniciado uma relação de namoro com Roberto há seis meses e Alan afirmou que ele mantinha um relacionamento intimo e amoroso com Roberto há cerca de um ano. 

Eles não tinham conhecimento da bissexualidade de Roberto. Embora não tivessem decidido, ainda, qual o encaminhamento que iriam dar a este impasse, teriam conversado e decidido por apoiar Roberto em sua doença. 

Optaram por vir juntos conversar comigo. 

Disse a ambos que Roberto estava enfrentando muito bem toda a situação da doença, tanto no contexto físico como emocional. Manifestei minha preocupação anterior pela falta de contatos e que me sentia satisfeito de agora poder contar com dois. 

Perguntei a ambos se Roberto teria solicitado a participação deles em seus cuidados.

Informaram que, inicialmente, Roberto teria se mostrado constrangido. Porem, frente a situação de doença, teriam iniciado uma conversação triangular, onde o componente humano havia prevalecido. 

Não ocorrera ruptura de nenhuma das partes e Roberto despediu-se de uma forma afetiva e reconhecida pela compreensão de todos. 

Lisa e Alan demonstraram um comportamento aberto ao diálogo.  

Era uma situação inusitada para mim e eu não sabia muito bem como conduzi-la. Todavia, sentia que aquela triangulação iria ter um encaminhamento natural e que eu não estava ali para julgá-la. 

Informei a ambos que Roberto iria necessitar de muito apoio, pois estava por iniciar um tratamento tóxico com quimioterapia. Disse que ele iniciaria o tratamento hospitalizado e que os ciclos seguintes seriam administrados em ambulatório. Orientei que seria aconselhável que Roberto viesse sempre acompanhado nas sessões de quimioterapia. 

Lisa e Alan fizeram contato visual e reafirmaram o desejo de apoiar. 

Eu coloquei-me a disposição de ambos para informações adicionais e sugeri que fornecessem seus telefones de contato para o serviço de registro incluí-los no prontuário de Roberto. 

Despedimo-nos cordialmente.

 

Capítulo 6: Explicando a quimioterapia

Liguei para Mauro, pois tínhamos que fazer o round diário. 

Ele havia reunido os residentes, alunos e estagiários no andar combinado e desloquei-me para encontrá-los. 

Pensei em não comentar o ocorrido. Embora nem Lisa nem Alan tivessem solicitado sigilo, achava que esta iniciativa teria que partir de Roberto. Eu já estava satisfeito em saber que ele poderia ter o apoio domiciliar necessário e isto bastava. 

round transcorreu normalmente, incluindo todos os encaminhamentos e tomadas de decisão programadas para aquele dia. 

Chegamos em equipe no quarto de Roberto. 

Ele estava calmo e comunicativo como era o habitual, porém tinha intensificado suas queixas de tosse e falta de ar. 

Mauro havia solicitado um RX de tórax no pós-operatório que mostrara um retorno parcial do derrame pleural. 

Decidimos iniciar imediatamente a quimioterapia. 

Informei a Roberto que já dispúnhamos de todos os dados necessários para programar a continuidade de seu tratamento. Disse que a próxima etapa seria a quimioterapia e que sua intenção era curativa. Expliquei que iríamos iniciar logo, pois o tumor estava começando a gerar sintomas, novamente, e que considerávamos prudente não adiar.

Roberto disse que já tinha ouvido falar deste tratamento e que teria usado a internet de seu celular para descobrir que muitos jovens em condições semelhantes teriam ficado curados.

Respondi que ele estava certo. Disse que o tratamento para o tumor de testículo era de domínio internacional e que os resultados costumavam ser muito bons. 

Roberto perguntou pelo tempo de tratamento e toxicidade. 

Eu respondi que era um tratamento venoso de aproximadamente três meses, com ciclos frequentes, cada um com cinco dias de duração. Expliquei que a toxicidade seria alta e iria requerer cuidados semanais, envolvendo risco de infecções, avaliação de sua função renal e pulmonar. Expliquei que ele não poderia trabalhar durante todo este período, mas que Eliza do serviço social, que ele já conhecera, iria ajudá-lo nos encaminhamentos necessários.  

Roberto perguntou: Como a gente sabe se o tumor está respondendo ao tratamento?

Roberto era muito inteligente e possivelmente lera na internet que existiam situações em que a resposta não ocorria de forma satisfatória. 

Procurei tranquilizá-lo dizendo que o parâmetro mais importante eram os dois marcadores tumorais que estavam alterados e cuja dosagem no sangue seria repetida após cada ciclo de quimioterapia. Acrescentei dizendo que nos sabíamos, por cálculos matemáticos, o quanto cada marcador tinha que cair em cada ciclo, monitorando desta forma sua resposta. Alertei, no entanto, que ele teria que ser totalmente disciplinado, seguir todas as recomendações, permanecer aderente ao grupo assistencial e comunicar, imediatamente, qualquer alteração que viesse a sentir.

Estávamos por sair do quarto, quando Roberto pediu para falar comigo em caráter privado. 

Pedi que minha equipe fosse em frente que eu os alcançaria logo em seguida. 


Capítulo 7: Abordagem da lesão mediastinal residual

Roberto, olhou-me fixamente e disse: Doutor! Alan me telefonou e disse que conversou com o senhor. O senhor também já deve saber que minha mãe morreu de SIDA. Existe chance de eu ter esta doença também?

Respondi que o tumor de testículo não era o tipo de doença maligna associada à SIDA, mas que independente disso existiria um risco, considerando seu estilo de vida e que se ele autorizasse poderíamos fazer um teste para maior tranquilidade. 

Roberto concordou e eu mesmo procedi a solicitação.

Passaram-se doze dias. 

Roberto já havia completado a primeira semana de tratamento e tivera alta com expressiva melhora de seus sintomas. 

Seu teste de SIDA dera negativo. 

Ele mantivera-se aderente e disciplinado, conforme fora recomendado. 

Planejávamos a primeira avaliação de seus marcadores tumorais para monitoração terapêutica, quando Roberto fez um quadro de neutropenia febril. Consistia em uma queda importante da contagem de glóbulos brancos, acompanhada de febre alta. 

Solicitei a Mauro que atendesse Roberto na emergência do hospital, colhesse exames culturais do sangue e iniciasse, imediatamente, com antibióticos. 

Normalmente este tipo de infecção ocorre por agentes bacterianos não muito agressivos, mas o risco está na imunidade deprimida e Roberto encontrava-se com menos de 100 neutrófilos, uma contagem definitivamente muito baixa. 

Mauro tomou todas as medidas necessárias e procedeu a nova internação hospitalar. 

Roberto estava cooperativo e confiante. Fora ao hospital acompanhado por Alan, que se apresentou como um amigo que estaria dando o suporte necessário naquela situação de emergência.

Esta era uma intercorrência previsível e como Roberto era jovem e não apresentava outras doenças, tínhamos a nítida sensação de que ele iria superar bem o quadro infeccioso. 

Efetivamente, foi o que ocorreu pois em quatro dias as contagens hematológicas normalizaram, a febre cedeu e ele teve alta hospitalar.

Quando fui visitá-lo no quarto, antecedendo a alta, ele estava acompanhado de Alan. Conversavam, descontraidamente. 

Alan mencionou que teria levado Roberto para sua casa. Lá havia mais conforto e ele poderia dar-lhe uma assistência mais segura. Roberto manifestou sua gratidão para com Alan. A casa pertencia a mãe de Alan, uma senhora de 67 anos que havia sofrido um AVC há dois anos e ficara com sequelas. Vivia restrita a uma cadeira de rodas e Alan havia organizado uma infraestrutura domiciliar para a assistência da mãe. Roberto passara a compartilhar desta condição de suporte. 

Ambos questionaram a intercorrência infecciosa. Queriam saber se isso iria ocorrer sempre após cada ciclo de quimioterapia. 

Tranquilizei-os dizendo que iríamos incluir no tratamento de Roberto um medicamento chamado filgrastima. Era um medicamento preventivo, administrado por via subcutânea, após a quimioterapia, visando diminuir o risco de queda leucocitária. Seu uso era justificado após um primeiro episódio de leucopenia febril, como ocorrera com Roberto. A filgrastima iria agir sobre a medula óssea, estimulando a série branca, mobilizando leucócitos para o sangue e melhorando a proteção contra infecções oportunistas.

Roberto interrompeu, expressando autoconfiança. Disse que estava muito sensibilizado por todo o atendimento que o hospital lhe proporcionara e manifestou certeza de que ficaria curado. 

Alan, que também havia comprado este desafio. Agradeceu as explicações e comentou que ficara muito impressionado com o sistema de assistência pública. Disse que apesar de tudo ser gratuito, o atendimento era integral. A enfermaria era limpa, cada paciente tinha seu leito, com uma certa privacidade proporcionada por cortinas móveis. Os banheiros apesar de serem de uso comum, eram confortáveis, higienizados e a água quente era farta. Elogiou muito o trabalho das enfermeiras, abnegadas e prestativas e valorizou a qualidade técnica e eficiência de nossos residentes. 

Alan tinha uma visão humana e administrativa apurada e mencionou, adicionalmente, que o ideal seria a existência de maior número de centros de atendimento terciário. Nas vezes que acompanhara Roberto ao hospital, pode testemunhar a superlotação do serviço de emergência, as filas de ambulâncias trazendo pacientes de outras cidades e a sobrecarga de trabalho das equipes assistenciais. Colocou-se a disposição para ajudar como voluntário na atividade de alguma ONG que visasse estender aquela qualidade de assistência a todas as pessoas necessitadas.

Agradeci os comentários de ambos, valorizei os cuidados domiciliares que Alan havia proporcionado para Roberto e expliquei que ainda teríamos um longo caminho a ser seguido. 

Despedi-me cordialmente.

Naquela manhã, durante o round diário, Mauro comentou comigo sobre os resultados dos marcadores beta-HCG e alfa-FP de Roberto. Seus valores haviam caído de forma expressiva. Mauro abriu seu laptop onde ele tinha armazenado um gráfico. Estavam marcados sobre duas curvas os valores esperados de decréscimo dos marcadores de Roberto. A primeira avaliação fora bem-sucedida, pois ambos os marcadores tinham caído de acordo com a expectativa. 

Elogiei o trabalho de Mauro e comemoramos em conjunto, pois estávamos no caminho certo.

Passaram-se seis meses e o tratamento de Roberto com quimioterapia transcorrera sem intercorrências graves adicionais. 

Ao término da quimioterapia seus marcadores beta-HCG e alfa-FP haviam normalizado. As tomografias revelaram o desaparecimento completo das alterações, exceto por uma lesão residual de cerca de três centímetro presente no mediastino. 

Roberto estava bem, sem sintomas e havia retomado suas atividades profissionais, bem como seu curso de administração. 

Permanecia na casa de Alan tendo assumido uma relação estável.

Roberto compareceu ao ambulatório de oncologia do hospital universitário para revisão e Mauro questionou-me a respeito da lesão residual no mediastino. 

Expliquei que ela teria que ser removida cirurgicamente. 

Embora os marcadores estivessem normais, o exame anatomopatológico do testículo retirado, previamente, revelara componentes mistos, incluindo teratocarcinoma. 

Roberto provavelmente teria um teratoma maduro residual no mediastino. 

Este tumor apesar de não ser maligno, costuma crescer ao longo dos anos e comprimir estruturas vitais. Sugeri a Mauro que Roberto fosse examinado pela equipe da cirurgia torácica. 

Mauro fez contato imediato e obteve a consulta para a semana seguinte.

Informamos Roberto da cirurgia, explicando detalhadamente as razões de sua necessidade. 

Nós já tínhamos aprendido a lidar com Roberto e podíamos prever suas reações. Como era esperado, Roberto fizera todos os questionamentos pertinentes e certificara-se de que estávamos seguros quanto aquela recomendação. 

Perguntou se depois desta intervenção teria que fazer mais tratamento e ambos respondemos que a cirurgia seria suficiente, pois o tumor que ficara não era maligno. 

Roberto ficara incomodado de ter que interromper mais uma vez suas atividades, mas concordou. Olhou para nós sorrindo e disse de forma inteligente e jocosa: Vou enfrentar este desafio de peito aberto.

Nós tínhamos uma reunião semanal interdisciplinar com as equipes de pneumologia e cirurgia torácica. Quando comparecemos a reunião na semana seguinte ambas as equipes já conheciam o caso de Roberto e o trouxeram para discussão. 

Ele era jovem, não tinha comorbidades, havia respondido favoravelmente a quimioterapia e não havia mais indícios de doença maligna. Roberto fizera vários testes de função pulmonar que estavam normais. A cirurgia torácica concordara em operá-lo, visando retirar o teratoma maduro. 

A cirurgia foi agendada.

Quando saímos da reunião alertei Mauro de que deveríamos fazer contato com o anestesista. Roberto tinha usado em seu tratamento com quimioterapia uma droga chamada bleomicina, que embora estivesse dentro de uma dose acumulativa segura, teríamos que ter cuidados especiais quanto a oxigenação transoperatória23. Mauro já tinha conhecimento disso e apressou-se em alertar o anestesista.

A cirurgia transcorreu sem complicações. 

A lesão residual do mediastino foi totalmente retirada e o exame anatomopatológico confirmou nossa impressão clínica de teratoma maduro. 

Roberto completara com sucesso todas as etapas de seu tratamento e referia sentir-se emocionalmente fortalecido. Eu já antecipara esta reação, pois ele tinha resiliência alta conforme manifestara em todas os desafios enfrentados anteriormente. 

Passaram-se cinco anos. 

Roberto cumprira, rigorosamente, todas as recomendações de acompanhamento e estava curado. 

Formou-se em administração. Manteve uma relação estável com Alan e iniciaram, conjuntamente, uma empresa de terceirização de serviços. Eram muito criativos e buscaram um nicho de mercado rentável. Eles haviam selecionado várias atividades relacionadas a recursos humanos e logística que eram necessárias em grandes companhias, mas que não justificavam economicamente a contratação de um funcionário exclusivo. Tiveram tanto sucesso em seu empreendimento que já faziam assistência a vários estados das regiões sul e sudeste brasileiros. 

Sua ideia recebera vários prêmios de marketing e criatividade. 

Desenvolveram um programa social de auxílio a família de mães aidéticas. 


Admiro a flor de lótus, pois mesmo crescendo no lodo, mantém-se imaculada.

Zhou Dunyi (1017-1073)

Filosofo Precursor do Neoconfusionismo 

 

*  Todos os personagens são fictícios  

** Referências bibliográficas que podem ser encontradas no livro Conexão Anticâncer – as múltiplas faces do inimigo interno de James Freitas Fleck

 

Habilidades e Competências adquiridas na 7ª Simulação Clínica

O Sofrimento e a Resiliência

James Fleck: Conexão Anticâncer, Síntese da 7ª Simulação Clínica

Roberto ingressou na emergência de um hospital público desacompanhado. Enfrentava uma situação adversa de instabilidade física e imprevisibilidade. Sob sua ótica era um quadro agudo e incompreensível.  Ele não tinha suporte familiar. Mesmo assim, não se desestruturou emocionalmente. Lidou com aquela situação com objetividade. Mostrou-se habilidoso na construção de vínculos, assumindo rapidamente relação de confiança com o grupo assistencial. Questionava, expressava autonomia e exercia o consentimento informado. 

Seu histórico de vida fora marcado precocemente pelo sofrimento. Vítima de um movimento migratório, ficou sem referenciais e assumiu sozinho os cuidados de uma mãe aidética. Ainda muito jovem, enfrentou a perda materna. Lidou com sua indefinição sexual. Teve desprendimento e deixou que o tempo orientasse seu caminho.

Construiu com Alan uma relação estável, que lhe proporcionou suporte, cuidado, amor e encorajamento. Havia uma base humanística naquele relacionamento, pois compartilhavam uma visão de responsabilidade social. 

Desde cedo, Roberto expressara resiliência. O sofrimento não gerara uma resposta agressiva ou depressiva. Ao contrário, fora usado como um elemento propulsor para o crescimento pessoal. Ele aprendera com as adversidades a buscar vínculos e a desenvolver valores como afeto, confiabilidade, empatia, cumplicidade e comprometimento.

Pode parecer irônico, mas muitas vezes a resiliência está associada ao sofrimento. Todavia, esta associação é circunstancial. A base para a construção de comportamento resiliente está no afeto, na identificação de modelos e no exercício da disciplina. Sua origem está na infância e talvez remonte ao nascimento. São crianças que nunca foram superprotegidas e que tiveram que precocemente lutar contra a fome, o preconceito, o medo e a desesperança. Porem, em algum momento de suas vidas identificam um objeto de amor, representado por um dos pais, avós, um educador formal ou simplesmente um orientador adotado. Cria-se um modelo, não necessariamente de moral estereotipada, mas digno. Em sequência, a resiliência incorpora-se ao caráter que passa a ser dominado por um comportamento determinado, disciplinado, estoico e persistente.

 A história de Roberto é um exemplo de resiliência. Ele já a expressava naturalmente, o que facilitou muito o trabalho médico no enfrentamento do câncer. Quando a expressão de resiliência não é espontânea, ela deve ser estimulada, buscando uma âncora na história pregressa do paciente. Às vezes, ela está dissimulada, voluntária ou involuntariamente oculta. Mas, existe benefício em esforçar-se na busca.