5ª Simulação Clínica

A Blindagem do Paciente

Objetivo:

Exercício de medicina multidimensional na assistência a um paciente adulto e deprimido diagnosticado sequencialmente com câncer de pulmão e hepatocarcinoma

James Fleck, Conexão Anticâncer, 5ª Simulação Clínica

 

Capítulo 1: O legado familiar

 

 O homem perde sua saúde para conquistar o dinheiro. 

Depois, perde o dinheiro para recuperar a saúde. 

Vive pensando ansiosamente no futuro. 

Acaba por não viver nem o presente, nem o futuro. 

Vive como se nunca fosse morrer e morre como se nunca tivesse vivido.

 

Dalai Lama

Budismo Tibetano

14° Dalai Lama Tenzin Gyatso

Prêmio Nobel da Paz 1989

 

 

 

Carlos tinha 68 anos quando compareceu para a primeira consulta. Era um homem alto e magro, o que se acentuava ainda mais devido a uma recente e rápida perda de 5 Kg. Trazia consigo uma tomografia computadorizada, cujo laudo indicava um câncer de pulmão. 

Carlos administrava uma empresa familiar e sentia-se responsável por todos. Manifestava uma preocupação maior com os familiares do que consigo mesmo. Refugiava-se muitas horas por dia em seu escritório, fumando. Tinha um comportamento introvertido e aparentemente apático. Pouco falava. 

A esposa o acompanhava na consulta. Com uma atitude dominante, antecipava-se em descrever o que Carlos sentia.  Evidentemente, eu dirigia as perguntas para Carlos, mas a esposa as respondia. Quando perguntei a ele se tinha dor, a esposa interrompeu dizendo que sim, mas que a intensidade não era forte. 

A dor é um sintoma que só pode ser descrito pelo próprio paciente. Quantificá-la é uma tarefa muito difícil. Muitas vezes, o médico necessita usar escalas ou análogos visuais para facilitar o entendimento da dor2. Certamente a esposa não teria a menor condição de estabelecer um julgamento crítico do que Carlos sentia e enfaticamente responder a esta questão. Percebi que ela tentava minimizar a doença do marido e tinha o desejo mágico e inconsciente de suprimi-la. 

A despeito de sua atitude neutra, indiferente e desinteressada, Carlos era uma figura central no equilíbrio emocional da família. Sua doença ameaçara a estabilidade familiar. Seu olhar era resignado e distante. Sentia-se intimidado e culpado por estar doente. 

Confesso que pensei na possibilidade de solicitar que a esposa de Carlos se retirasse da sala de consulta. 

Contive o ímpeto. 

Tratava-se de uma família fragilizada e eu teria que trabalhar, perifericamente, na insegurança familiar. Sentia que esta seria a única forma de conseguir chegar ao paciente. 

Passei a dialogar com ambos. 

Sabia que precisava conquistar a confiança da esposa de Carlos e com isso romper a barreira de comunicação. Expliquei que aquela não seria uma única consulta e que eu iria esclarecer todas as dúvidas do paciente e da família, em tantos encontros quantos fossem necessários. Disse-lhes que o foco principal era o atendimento de Carlos, mas que eu também estaria disponível para atender a família, visando orientação e esclarecimentos. Informei que o objetivo daquela consulta seria somente o de obter o máximo de informação possível quanto a forma de apresentação da doença e fazer um exame físico no paciente. 

Propositadamente, nunca usei a expressão câncer, falara apenas e genericamente em doença. 

Não costumo usar esta palavra antes que o paciente a expresse. 

Entreguei para a esposa de Carlos um livro ilustrativo de pintura renascentista que tenho na sala de consulta e pedi que ela olhasse as obras de arte, enquanto eu examinava o marido. 

Ela concordou.

Carlos pode falar. 

Disse que há cerca de seis meses vinha perdendo a força e a motivação para o trabalho. Sua vida fora marcada por uma rotina diária de mais de dez horas na empresa. Quando percebeu a limitação para cumprir suas atividades profissionais sentiu-se deprimido. Apesar do comportamento introvertido e quieto, ele nunca havia experimentado qualquer manifestação depressiva prévia. Ao faltar-lhe a energia, deixou a barba crescer e tornou-se um pouco desleixado com a higiene pessoal. Houve paralelamente perda do apetite e da libido. 

Carlos tinha três filhos. Dois homens e uma mulher. Apesar de todos estarem na faixa dos 25 aos 30 anos, moravam com os pais, trabalhavam na empresa familiar e dependiam destas relações. Sua esposa era uma mãe zelosa e superprotetora. Referia-se aos filhos como as crianças. Infantilizava-os. Sempre que possível, evitava discutir problemas na presença dos filhos. Carlos concordara, tacitamente, em não interferir neste padrão de conduta. Ele sempre exercera um papel de equilíbrio e harmonização familiar. 

Quando, involuntariamente, mudou seu comportamento, todos ficaram surpresos. Passaram a criticá-lo duramente e a cobrar a volta ao perfil anterior, estável e cômodo. Carlos esforçou-se, mas a situação só piorava. A esposa sugeriu que ele procurasse um psiquiatra, mas ele era resistente a esta abordagem. Decidiu procurar um médico gastroenterologista que o atendera no passado, pois achava que o problema principal era a perda do apetite. 

Carlos era um excelente administrador de empresas e trazia este vício profissional para seus cuidados pessoais. Tomou a decisão certa, pois sempre que uma doença emocional ocorre de forma tão aguda, devem ser afastadas primeiro as causas orgânicas. 

Meu colega gastroenterologista era um profissional experiente, que apesar de ter sua área de atuação focada em fígado, sempre olhava para o paciente sob a ótica do clínico geral, com visão abrangente. Examinou Carlos e solicitou vários testes laboratoriais e de imagem. 

Uma tomografia computadorizada do tórax mostrou uma lesão nodular de 3 cm no lobo superior do pulmão esquerdo. Sem fazer muitos comentários com o paciente, solicitou que Carlos me procurasse.

 

Capítulo 2: O diagnóstico e as comorbidades

Há 20 anos, Carlos havia sofrido um acidente de automóvel e feito uma ruptura do baço. Esta situação provocara sangramento para dentro da cavidade abdominal, requerendo uma cirurgia de urgência. O baço foi retirado e ele recebeu várias unidades de transfusão de sangue. Infelizmente, na época, ainda não era realizado, rotineiramente, o teste anti-HCV no sangue transfundido.

Vários anos após, Carlos soube-se portador do vírus da hepatite C, ao ser diagnosticado com cirrose hepática. Esta doença é provocada pela hepatite e conduz a uma perda progressiva da função do fígado. Fora adequadamente tratado e estava, há alguns anos, com a carga viral negativa. 

Uma ecografia abdominal solicitada por seu gastroenterologista mostrava um fígado cirrótico, mas suas provas funcionais hepáticas eram normais. 

Carlos estava com a cirrose compensada. 

A história crônica de hepatite e cirrose, revelara que Carlos já havia enfrentado doença no passado e que tinha sido bem-sucedido no desfecho. Embora complacente e aparentemente submisso, ele tinha um comportamento destemido, fazia vínculos com facilidade e era aderente aos tratamentos. Falava muito pouco, apenas o indispensável, mas seus comentários eram sempre objetivos e pertinentes. 

Carlos afirmou ter olhado o resultado da tomografia computadorizada do tórax e sabia da existência do nódulo no pulmão. Achava estranho que apesar de seu problema ser pulmonar e não sentir limitação respiratória, tinha muita dor nas pernas, o que intensificava sua queixa de fraqueza. 

Em nenhum momento, Carlos mencionou a palavra câncer, embora no laudo o radiologista, explicitamente, mencionasse a hipótese de neoplasia de pulmão.

Durante todo o período da consulta, Carlos alternava o olhar entre mim e a esposa, que se mantinha calada, olhando as pinturas renascentistas. Ele parecia vigiar seu comportamento, cuidando para que nenhum comentário seu ou meu a ferisse emocionalmente. 

Havia uma situação teatral de censura tácita. Era como se Carlos me dissesse, eu já sei de tudo, mas não quero que esta mulher e os meus filhos participem ativamente deste sofrimento. 

Apostei neste pressentimento e respeitando sua postura defensiva, parti para o exame físico. 

Retirei-me da sala e pedi que a enfermeira auxiliasse o paciente a preparar-se para o exame. Solicitei a ela que gentilmente conduzisse a esposa para a sala de espera, enquanto eu estivesse realizando o exame físico.

Carlos estava nitidamente emagrecido, mas seu tônus muscular mantinha-se preservado. Levemente hipertenso, compatível com a tensão emocional daquele momento inicial de enfrentamento da doença. Seu fígado não estava aumentado, a despeito da história de cirrose. Seus reflexos e demais aspectos do exame neurológico eram normais. As unhas tinham um formato em vidro de relógio e os dedos assemelhavam-se a baquetas de tambor. Este achado não é infrequente em pacientes com doença pulmonar e é denominado de hipocratismo digital. Tinha muita dor a percussão das tíbias, ossos que ficam nas pernas, correspondendo as áreas em que ele acusava dor espontânea. Sua próstata era levemente aumentada de volume, mas não tinha nódulos palpáveis ao toque retal. Ele havia feito uma recente avaliação do PSA, cujo valor era compatível com o tamanho da próstata. Quase todos os homens a partir dos 50 anos começam a ter uma alteração chamada hiperplasia prostática benigna e convivem com ela. Não havia qualquer alteração na ausculta cardíaca ou pulmonar. Não havia massas ou linfonodos palpáveis nas regiões do pescoço, tórax ou abdômen. 

A falta de achados relevantes não me surpreendia. 

Não é infrequente que o câncer de pulmão tenha um curso silencioso, sem grande expressão ao exame físico. 

Carlos mostrara-se mais aliviado com a retirada da esposa da sala de consulta. Eu havia percebido que a comunicação ficara mais livre. Ao término do exame, ele olhou para mim e perguntou com uma certa ironia: Doutor, quanto tempo tenho de vida?

Evidentemente, eu não tinha condições de responder a esta pergunta, não só porque me faltavam dados, como também porque mesmo quando os tivesse tudo seria probabilístico. 

Carlos era um homem experiente e também sabia disso. Todavia, a pergunta era provocativa. Sua intenção era sinalizar que agora poderíamos conversar mais abertamente, pois a censura ocorria somente na presença da esposa. 

Respondi, com franqueza, que iriamos falar sobre tudo, inclusive sobre os riscos. Eu iria conduzir sua investigação e informá-lo, detalhadamente, sobre todos os procedimentos e resultados de cada um dos exames. 

Carlos olhou para mim e afirmou em desabafo: Doutor, eu sei que tenho câncer.

Iniciara-se, naquele momento, um vínculo de cumplicidade médico-paciente. Carlos parecia ter encontrado um canal de comunicação livre e começara a expressar suas preocupações. Suas perguntas evocando a morte e o câncer sugeriam que, para ele, estas duas situações estavam sempre associadas.

Expliquei que seu diagnóstico não era definitivo e que um exame de imagem como a tomografia sugeria apenas uma alteração anatômica. Esta alteração teria que ser melhor investigada. Perguntei se gostaria de olhar juntamente comigo sua tomografia computadorizada do tórax. 

Carlos mostrou-se interessado e assentiu com a cabeça.

Ao retirar-me da sala por ocasião do preparo de Carlos para o exame físico, eu já havia olhado sua tomografia e constatado que não somente havia um nódulo no pulmão, como também uma imagem no mediastino. 

O mediastino é a região que fica entre os dois pulmões e a imagem detectada era um linfonodo de 1,5 cm em uma região localizada entre a aorta e a artéria pulmonar. 

Seu pulmão também apresentava um certo grau de enfisema, uma doença relacionada ao tabagismo e caracterizada pela perda de septos alveolares. 

Quando sugeri mostrar-lhe a tomografia, minha intenção era a de desmistificar a doença. Carlos era um homem muito prático e a visualização do tumor iria ajudá-lo na compreensão do problema. 

Carlos já havia se vestido e caminhamos juntos para uma sala ao lado, onde a imagem poderia ser vista no computador.

Mostrei-lhe detalhadamente o tumor no pulmão esquerdo e a presença do pequeno linfonodo no mediastino. Expliquei que o achado no mediastino poderia ser uma extensão do tumor por via linfática. Disse que o próximo passo seria uma fibrobroncoscopia e uma biópsia da lesão do mediastino. Ambos poderiam ser feitos no mesmo ato anestésico. 

Expliquei que a fibrobroncoscopia seria feita com um aparelho flexível de luz fria que permitiria examinar sua árvore brônquica e colher material do tumor primário para o exame citopatológico e anatomopatológico. 

A biópsia do linfonodo mediastinal permitiria verificar se as células do tumor já haviam migrado pelo sistema de drenagem linfática do pulmão. 

Carlos olhou atentamente para a imagem do tumor na tomografia do pulmão e perguntou: Podemos remover tudo?

Carlos já falava no plural. Ótimo indício de que já formávamos um time.

Respondi que era cedo para dizer. 

Teríamos que fazer outros exames para avaliar se a doença estava restrita ao tórax, mas que mesmo nesta circunstância o linfonodo do mediastino tinha que ser negativo para pensarmos em cirurgia primária. 

Disse-lhe que teríamos outros encontros antes desta tomada de decisão e que conversaríamos, francamente, sobre as alternativas, da mesma forma que estávamos fazendo naquela ocasião.

Carlos sentiu que eu não poderia avançar mais e perguntou quem faria os procedimentos necessários. 

Sugeri o nome de um cirurgião torácico da minha mais absoluta confiança e solicitei que ele agendasse uma consulta. Eu o acompanharia no procedimento, fornecendo todas as informações na medida em que tivéssemos os resultados. 

Carlos agradeceu. 

Perguntei se ele gostaria que falasse com sua esposa. 

Carlos respondeu que ele mesmo faria isso. Disse que sabia como lidar com ela. 

Concordei, mas reiterei minha disponibilidade para o esclarecimento de dúvidas.

 

Capítulo 3: A dinâmica familiar

No dia seguinte ao chegar ao consultório surpreendi-me com a presença da esposa de Carlos na sala de espera. Ela havia ligado para minha secretária, solicitando falar urgente comigo, antes do início de minha agenda daquela tarde. 

Seu nome era Ligia. Tinha 62 anos, um pouco obesa, falava alto e gesticulava. Entrou no consultório abruptamente, mal esperando que minha secretária a introduzisse no ambiente. Parecia ansiosa e agressiva. Afirmou que eu não poderia esconder nada dela, pois ela tinha o direito de saber. Disse que Carlos não lhe dera muita explicação, afirmando que resolveria o problema sozinho, como já havia feito no passado. 

Havia uma alternância de culpa e raiva na expressão de Ligia. Eram sentimentos e colocações confusas, marcadas por uma forte ambivalência afetiva. 

Esta era uma situação muito difícil de ser conduzida. 

Eu ainda não tivera o tempo necessário para formar uma impressão mais clara sobre aquela dinâmica familiar e já estava envolvido na orientação de uma situação de crise vivencial. 

Pedi a Ligia que se acalmasse. 

Afinal de contas, o doente era o Carlos. 

Disse a ela que entendia o seu sofrimento, pois Carlos sempre fora uma figura central para o equilíbrio familiar. 

Lancei esta frase um pouco vaga para ganhar tempo, na expectativa de que Ligia me trouxesse mais informações que pudessem estar motivando seu conflito. 

Aparentemente funcionou.

Ligia começou a chorar. 

Disse que Carlos teria passado a vida preso a um legado familiar. 

Sua empresa era uma herança paterna que fora iniciada há 70 anos. Carlos, sentindo-se responsável pela manutenção de um patrimônio familiar, mergulhara no trabalho e ampliara muito o negócio. No início era apenas uma pequena fábrica de sapatos. Com o passar do tempo, sua empresa passara a ter filiais em várias cidades e exportava para trinta países. 

Carlos ganhou muito dinheiro, mas sempre reaplicou na empresa, pois achava que, no futuro, isto garantiria a sustentação dos filhos. Embora fosse um bom provedor, sempre proporcionou para a família, apenas o básico. Nunca tirou férias com a família. As festas eram comemoradas no ambiente domiciliar. Nos finais de semana, frequentemente viajava a negócios e nunca havia presenteado Ligia com uma flor ou um objeto supérfluo de adorno. 

Ligia dizia ter tido uma vida dura e marcada por uma certa indiferença afetiva do marido.

É curioso como a doença desperta os conflitos. Quando emergem é como se estivessem transbordando ou explodindo. 

Por mais que eu argumentasse que aquele não era o foco, Ligia, naquele momento, colocara-se em primeiro plano. Ela já tinha conhecimento da doença do marido, pois também havia olhado o laudo da tomografia. Todavia, sua busca no consultório, naquela tarde, era uma fórmula para aliviar sua angústia, reprimida pelo tempo de uma vida. 

Optei por ouvir com atenção o desabafo de Ligia. 

Minha agenda já estava trinta minutos atrasada e felizmente minha secretária interrompeu dizendo que os pacientes das duas primeiras consultas já se encontravam na sala de espera. O da primeira consulta reclamava educadamente do meu atraso e o da segunda consulta, ironicamente, tinha chegado mais cedo. 

Disse a Ligia que teríamos que interromper, mas que ela poderia retornar em outro dia. Sugeri que conversasse um pouco com os filhos. Afinal de contas eles já eram crescidos e poderiam ouvi-la e ajudá-la a enfrentar este momento de dificuldade familiar. Coloquei-me a disposição para falar com os filhos, mas que isto teria de passar pela aprovação dela e de Carlos. Percebi que era uma família de estruturação rígida e que a minha intervenção profissional necessitaria do consentimento de todos. 

Assim que Ligia retirou-se da sala, fiquei refletindo se havia feito a coisa certa. Tinha agido por impulso quando a aconselhei a falar com os filhos e quando me coloquei a disposição para atendê-los. Observei que minha atitude mantinha coerência com o que havia dito na primeira consulta, quando, na presença de Carlos, coloquei-me a disposição para esclarecer dúvidas de seus familiares. Também eu já havia suspeitado de que a blindagem de Carlos, era sustentada por dificuldades de comunicação. Eu teria que passar por isso para poder orientar eficientemente seu tratamento.

 

Capítulo 4: Repressão e sublimação

Passara-se uma semana e Carlos compareceu ao hospital para a realização das biópsias. 

Eram sete horas de uma manhã fria e escura, típica do inverno do sul do Brasil, quando encontrei com meu colega cirurgião de tórax na cafeteria do hospital. 

A noite anterior tinha sido atípica, pois eu fora chamado ao hospital para atender um paciente na unidade de cuidados intensivos. Eu já não era mais jovem e tinha dormido somente quatro horas. 

O café quente foi reconfortante. 

Fomos ao encontro de Carlos na recepção do bloco cirúrgico, onde ele nos aguardava sozinho. Carlos havia feito sua internação hospitalar naquele mesmo dia e solicitado que sua esposa o aguardasse no quarto para onde ele seria conduzido após o procedimento. 

Entramos os três, juntos, no bloco cirúrgico. 

Carlos foi recebido pela enfermeira responsável que iria prepará-lo e conduzi-lo para a sala do procedimento. Eu e meu colega fomos para o vestiário médico. 

Quando ingressamos na sala cirúrgica, Carlos já estava sendo preparado para o ato anestésico. Meu colega explicou novamente, com detalhes os procedimentos que seriam realizados e que a duração seria de aproximadamente uma hora. Enquanto isto eu checava com o médico anestesista as condições clínicas do paciente. Carlos tinha cirrose hepática e isso requeria cuidados especiais. 

O procedimento transcorreu sem intercorrências. 

Foram colhidas as amostras do tumor primário por via endoscópica e feita a biópsia do linfonodo do mediastino. Não havíamos solicitado patologista na sala, pois o exame dos materiais seria feito depois, em condições ideais no laboratório. Mesmo assim, após a retirada, meu colega cirurgião seccionou o linfonodo do mediastino que revelou um aspecto escuro, tipicamente encontrado em pacientes fumantes. Todos os materiais foram rotulados e acondicionados para serem encaminhados ao laboratório de patologia. 

Sempre acompanho com cuidado esta etapa de identificação e envio correto dos materiais.

Carlos não retardou em acordar. 

É impressionante como a medicina evolui na anestesia, não havendo necessidade de períodos longos de recuperação. 

Mesmo com um fígado cirrótico, Carlos acordou cerca de poucos minutos após a interrupção do uso do anestésico. Comuniquei-lhe do sucesso do procedimento e disse que, mesmo ele estando bem, iríamos mantê-lo por duas horas na sala de recuperação. Após ele iria para o quarto, onde eu, mais tarde, passaria para vê-lo. 

Retirei-me do bloco cirúrgico, deixando Carlos sob os cuidados de meu colega anestesista.

Estava saindo do bloco cirúrgico e pensando em tomar mais um café quando, subitamente, uma senhora discretamente me abordou. 

Era uma mulher elegante e educada, com cerca de 50 anos que se apresentou com o nome de Rose. Perguntou meu nome e se eu tinha acompanhado a cirurgia de Carlos. 

Identifiquei-me e gentilmente perguntei se ela era uma familiar. 

Rose respondeu que não propriamente dito, mas que ela e Carlos viviam juntos há mais de 20 anos. 

Depois daquela noite de insônia só me faltava ter que enfrentar mais esta situação. Procurei não demonstrar minha surpresa. Carlos não havia comentado comigo a existência de uma relação extraconjugal.

Disse a Rose que o procedimento havia transcorrido sem problemas e que Carlos iria permanecer algumas horas na recuperação, apenas porque esta era a rotina. 

Rose olhou para mim aliviada e agradecida pela resposta, mesmo que sucinta. 

Não me sentia muito a vontade para dar continuidade aquela conversa de corredor, até porque não tinha a versão de Carlos sobre esta história. Apertei a mão de Rose e pedi licença para retirar-me, alegando que teria que dar uma aula. 

Rose prendeu minha mão e disse: “Doutor, não gostaria que comentasse minha presença com Carlos.”

Soltei educadamente a mão e estava pronto para sair, quando após refletir por poucos segundos, respondi a Rose: “Sinto muito, Carlos é meu paciente e estamos construindo uma relação de confiança. Não poderei omitir dele nossa conversa. Sugiro que a senhora fale com ele e transmita a minha posição.” 

Meus residentes me aguardavam para discutir os casos internados e decidir condutas. Tinha também que dar uma aula a convite do curso de pós-graduação em Pneumologia, casualmente sobre o tratamento do câncer de pulmão. 

Entre rounds, aulas e cinco consultas o dia passou rápido.

Eram oito horas da noite quando retornei ao quarto para visitar Carlos. 

A esposa e os três filhos o acompanhavam. Carlos estava sentado em frete de uma televisão assistindo o noticiário, a esposa lia e os dois filhos homens estavam plugados em objetos eletrônicos. O mais velho navegava na internet em um laptop, enquanto o mais novo ouvia música com fones de ouvido. A filha, por ocasião de minha chegada, retirou-se do quarto alegando ter que telefonar. Tudo seguia uma rotina quotidiana de reunião familiar, marcada por pouca interatividade. 

Examinei Carlos. 

Ele estava bem. Queixava-se de uma certa inapetência e de dor nas pernas. Disse-lhe que eu já havia prescrito um analgésico, considerando que esta era uma queixa já conhecida.  

Carlos perguntou-me se poderia ter alta e eu disse que o cirurgião viria vê-lo no dia seguinte para avaliá-lo e tomar esta decisão. 

Nem a esposa, nem os filhos me questionaram sobre a cirurgia. Fiquei com a impressão de que Carlos, conforme havia anunciado previamente no consultório, teria conversado com a família, solicitando que não houvesse interferência.

Carlos teve alta no dia seguinte. 

Cinco dias após a alta, retornou ao consultório sozinho. 

Eu já havia recebido os resultados das biópsias e não tardei em comunicá-los. A biópsia do pulmão revelara adenocarcinoma e o linfonodo do mediastino era negativo para células malignas. 

Festejei o resultado, dizendo que isto o colocava em uma situação de melhor prognóstico.

Senti-me um pouco estranho, porque parecia que eu demonstrava mais contentamento do que o próprio Carlos. 

Ele permanecia fleumático, como de costume. 

Carlos estava sentado em minha frente, quando fitando-me nos olhos afirmou: “Falei com Rose”.

Eu já havia me acostumado com as frases monossilábicas de Carlos. Ele era o típico sujeito que ouvia, refletia e agia. Definitivamente, não se sentia à vontade argumentando. 

Mantive-me em silêncio, sem desviar o olhar. Precisava ter um pouco mais de informação para saber para onde ele desejava conduzir aquela conversa. 

Carlos percebeu que precisava tomar a iniciativa e disse: “Conto com seu sigilo. Tenho esta relação há muitos anos. Não desejo mudar as coisas, especialmente neste momento”. 

Reafirmei a Carlos meu propósito de orientá-lo em seu tratamento e que seus vínculos afetivos seriam todos respeitados.

Carlos mostrou-se aliviado e trocando, abruptamente, de assunto, perguntou: “Qual é o próximo passo?”

Presumindo que ele teria voltado ao foco da doença, respondi: “Vamos fazer os exames que lhe solicitei para avaliar se os outros órgãos estão livres de metástases.”

Carlos afirmou que já teria feito o agendamento de todos os exames e que assim que tivesse os resultados voltaria. 

Cordialmente levantou, agradeceu e deu por encerrada a consulta.

Alguns dias depois Carlos voltou com os exames. 

Não havia evidência de metástases em outros órgãos. Apenas um achado nas tíbias, ossos das pernas, onde ele referia dor persistente. Era um achado muito característico de uma manifestação chamada osteoartropatia hipertrófica. Esta consiste em um espessamento da cortical óssea que costuma produzir muita dor. Trata-se de uma reação metabólica do osso frente a presença de um tumor no pulmão. Não é uma metástase, pois não tem células tumorais no osso afetado. Curiosamente, ela regride após a ressecção do tumor. Como já era antecipado, seu fígado mostrava sinais de cirrose, mas estava compensada.  

Novamente, Carlos não vibrara muito com isto, tinha uma personalidade estoica e conduzia a vida com uma certa indiferença. Mesmo assim, todas as suas atitudes revelavam uma forte determinação de enfrentamento e uma vontade de viver.

Expliquei a Carlos todos estes resultados e disse que ele deveria retornar ao meu colega cirurgião torácico, pois seu tumor teria que ser removido. 

Carlos mostrou-se satisfeito ao ouvir esta recomendação. Comentou que desde o diagnóstico alimentara o desejo de tirar esta doença de dentro de seu corpo. Disse que, como era de meu conhecimento, tinha muitas responsabilidades na vida e teria que as cumprir. 

Tive a nítida impressão que ele fazia isto muito mais pelos outros do que por si mesmo.

 

Capítulo 5: Cuidados paliativos

Passaram-se alguns dias e Carlos foi operado. 

Sua cirurgia foi bem-sucedida. Foi retirado o lobo superior de seu pulmão esquerdo e explorada as cadeias linfáticas pulmonares e mediastinais. Apesar de ter enfisema, suas provas de função pulmonar eram compatíveis com esta extensão de ressecção. 

Acompanhei todo o procedimento. 

Sua função do fígado manteve-se compensada e Carlos teve alta sete dias após o procedimento. 

Como eu já havia antecipado para ele, a dor das pernas desapareceu. 

Seu exame anatomopatológico mostrou um tumor restrito ao pulmão, não havendo comprometimento da drenagem linfática. Carlos tinha boa chance de estar curado apenas com a cirurgia. Sua situação de linfonodos negativos, fazia com que não houvesse indicação de quimioterapia adjuvante.

Durante todo o período de internação a situação familiar manteve-se a mesma observada no período da biópsia. Os filhos permaneceram quietos e distantes e Ligia nunca mais me procurou em caráter privado. Todas as informações foram passadas diretamente ao Carlos na presença de seus familiares. 

Nunca mais ouvi falar de Rose. 

Carlos havia encontrado uma forma de blindar novamente sua vida familiar e afetiva.

Ele entrara em programa de acompanhamento, fazendo revisões semestrais. Sempre fora disciplinado e comparecia nas datas estipuladas e com os exames solicitados. 

Carlos havia confeccionado um calendário com este objetivo, pois além do acompanhamento comigo, ele fazia consultas periódicas com o cirurgião torácico e com seu gastroenterologista. 

Sempre comparecia sozinho às consultas e nunca mais comentara comigo qualquer aspecto de sua vida familiar. Seu peso e condição física voltaram aos seus parâmetros normais e ele retornara para uma rotina pesada de trabalho, com viagens frequentes.

Passaram-se dois anos. 

Carlos havia feito uma recente revisão e seus exames laboratoriais e de imagem permaneciam normais. Embora não houvesse qualquer evidência de recidiva de seu câncer de pulmão, ele tinha voltado a referir fraqueza e prostração. Sugeri que retornasse ao consultório em um intervalo de um mês, considerando a subjetividade destes achados. 

Carlos retornou em duas semanas. 

Disse que havia antecipado o retorno, pois precisava falar comigo. 

Achei muito estranho, pois este não era seu comportamento usual. 

Sentou-se na minha frente e disse que não suportava mais carregar o fardo que era sua vida. Sentia-se como um malabarista em um circo chinês. Sua família não o ajudava em nada e eram indiferentes a seu esforço. Seus negócios não iam bem e ele teria nos últimos seis meses perdido quase tudo que construíra ao longo da vida. Tentou justificar a situação tecnicamente, dizendo ser devida a variação cambial e instabilidade do mercado de exportação. 

Carlos, pela primeira vez desde que eu o conhecera, efetivamente, rompia a blindagem afetiva e expunha suas apreensões. 

Mencionou que Rose o havia abandonado. 

Procurei ouvir atentamente e achei que este era um momento propício para sugerir um aconselhamento psiquiátrico. 

Carlos estava sofrendo. Havia perdido Rose. 

Embora ele nunca houvesse me revelado o peso afetivo desta relação extraconjugal, a perda estava sendo insuportável para ele. Algo havia ocorrido em sua base de sustentação emocional que ameaçava a organização de sua vida. Havia perdido a resiliência. Mostrava-se fragilizado e aceitou minha sugestão.

Recomendei um colega psiquiatra com o qual já havia trabalhado em muitas situações difíceis de crise familiar. Ele tinha uma abordagem abrangente e estava também acostumado a lidar com doença orgânica. 

Liguei para ele e conversamos longamente sobre a história de Carlos. Solicitei que ele o atendesse com a máxima brevidade. 

Meu colega perguntou se Carlos estava sob alguma situação emocional de risco. 

Respondi que não, mas que ele havia recentemente aberto uma janela de diálogo favorável a abordagem psíquica e que não deveríamos perder esta oportunidade. 

Marcamos, com a concordância de Carlos, uma avaliação para aquele mesmo dia. 

Já eram nove horas da noite quando o psiquiatra me ligou. 

Carlos havia comparecido a consulta e mostrara-se receptivo a avaliação psiquiátrica. 

Sua história era marcada pelo legado familiar. 

Carlos perdera a mãe por ocasião de seu nascimento. Ele não sabia os detalhes, porém ouvira comentários de que era diabética e morrera por infecção duas semanas após o parto. Foi criado pelo pai e por uma tia-avó materna já falecida. 

Tinha uma irmã doze anos mais velha que havia casado com um missionário norte-americano e da qual nunca mais tivera notícias. Ela teria emigrado com o marido para um país situado no norte da África. 

Carlos havia recém completado vinte anos, quando seu pai já doente lhe pediu que interrompesse seus estudos e cuidasse da fábrica de sapatos. 

Carlos, na ocasião, havia iniciado um curso de direito. 

A fábrica de sapatos era um empreendimento familiar de oito irmãos. O pai de Carlos apesar de ser o mais novo, era o sócio majoritário. Os outros trabalhavam em setores técnicos da empresa e tinham baixa escolaridade, o que os impedia de assumir posições de decisão. Todos os irmãos e seus familiares dependiam deste empreendimento. 

Carlos assumiu o legado, com responsabilidade e determinação. 

O pai de Carlos teve um acidente vascular cerebral16 poucos meses depois de transferir a responsabilidade do negócio para o filho e ficou com sequelas.  Perdeu a autodeterminação, tinha dificuldade de expressar-se verbalmente e vivera restrito a uma cadeira de rodas por dez anos. 

Carlos transferiu seu curso de direito para o turno da noite e formou-se cinco anos depois. Nunca exerceu o direito, mas usou seu treinamento em benefício da empresa. A empresa prosperou, mas Carlos boicotou sua juventude. Dormia apenas seis horas por dia, inclusive nos finais de semana. Não tinha amigos e não socializava. 

Tinha 28 anos quando conheceu Ligia, filha do contador de sua empresa. Casaram-se três meses depois do primeiro encontro. Ligia era muito jovem e nunca trabalhara. Carlos insistira que ela cuidasse apenas da casa já que ele assumiria a função de provedor. 

Porém, não era apenas a casa. 

A jovem Ligia, cheia de energia e entusiasmo, também supervisionava os cuidados do sogro. O casamento gradualmente transformou-se em uma vida a três, Carlos, a empresa e a mulher que cuidava de seu pai doente. Ligia era muito responsável e assumiu passivamente seu papel. 

Com o tempo vieram os filhos que aos poucos foram sendo enquadrados no perfil familiar. A relação foi aos poucos perdendo o encanto e transformando-se em uma convivência laboriosa. Carlos já agora com traços obsessivo-compulsivos era muito exigente com Ligia. Definia suas funções, fazia exigências quanto a organização da casa e reclamava de mínimas desatenções nos cuidados com os filhos. 

Vinte anos se passaram, repetindo esta vida cotidiana estereotipada. 

A empresa já havia crescido muito e Carlos começara a viajar a negócios.

Em uma viagem a São Paulo conheceu Rose, que trabalhava como promotora de eventos para uma feira couro calçadista. Era uma mulher solteira, simpática e comunicativa. Carlos iniciou uma relação extraconjugal. Rose era bem diferente de Ligia, entusiasta com seu trabalho, queria manter-se independente e exercer sua criatividade. Ele já era um homem rico e começou a desfrutar do dinheiro na companhia de Rose. Não eram muitas as vezes em que passavam juntos, mas Carlos as descrevia como os melhores momentos de sua vida. 

Rose sabia de sua situação familiar e responsabilidade na empresa, mas não tinha conflito. Dizia ama-lo incondicionalmente. Carlos sentia-se livre na presença de Rose, um sentimento que ele nunca tivera no passado. 

Esta relação extrapolava os encontros festivos, pois Rose tentara ajuda-lo nos cuidados com a hepatite C. Carlos era agradecido a ela, mas não aceitara esta interferência. Ele não se permitia demonstrar qualquer fragilidade e embora fosse disciplinado e cumprisse as recomendações médicas, mantinha seus familiares e afetos afastados deste sofrimento. Comportamento que viria a repetir mais tarde por ocasião do diagnóstico e tratamento do câncer. 

Rose passou a incomodar-se com esta situação, pois com o surgimento do câncer, seus encontros foram se tornando cada vez menos frequentes. O caráter festivo do início passou a ser substituído por uma indisponibilidade progressiva e afastamento. Carlos sentia-se incomodado com as tentativas de Rose, buscando ajudá-lo. Tornara-se agressivo e impermeável aos seus argumentos afetivos. Revelara que não tinha mais saúde para manter aquela relação. 

Começara a reproduzir com Rose o mesmo comportamento de blindagem afetiva que tivera para com todas suas relações familiares. 

Há cerca de seis meses, Rose recebera um convite para trabalhar em um projeto em Milão e aceitou. Carlos qualificara a decisão de Rose como egoísta e não atendera mais suas ligações telefônicas. 

Depois de algum tempo Rose não ligou mais. 

Carlos perdera sua única válvula de escape e mergulhara em uma rotina que conforme expressou ao psiquiatra, iria matá-lo. 

A empresa no último ano não vinha bem e Carlos também não tinha muita motivação para cuidá-la. Também julgava os filhos incompetentes para assumi-la. 

Perdera a esperança e não tinha motivação para continuar vivendo.

Com o passar do tempo, o psiquiatra não observou progresso na situação emocional de Carlos apesar de promover três encontros por semana. 

Eu estava supervisionando sua situação clínica com consultas mensais e expliquei a meu colega psiquiatra que Carlos teria recentemente apresentado uma piora nas provas de função do fígado. Isto explicava muitos de seus sintomas mais recentes, sugerindo um desequilíbrio em sua condição de cirrose hepática. 

Eu recomendara a Carlos uma revisão com seu gastroenterologista. Ele surpreendeu-se com a velocidade de surgimento destas alterações. Examinara Carlos há dois meses e nada disso existia na ocasião. Manifestou a impressão de que algum evento novo estaria acontecendo.

Carlos retornou a meu consultório acompanhado de Ligia. 

Tinha uma expressão sofrida, apática e perdera peso. Seu nível de consciência estava alterado. Aparentava sonolência e seu raciocínio era confuso. 

No exame clínico observei sinais de hipertensão portal17. Havia ascite, um aumento de volume abdominal provocado por liquido na cavidade peritoneal. Seu fígado estava aumentado de tamanho. Havia perda do equilíbrio, a ponto de impossibilitá-lo de caminhar sem apoio. A pele tinha uma coloração amarelada, típica da impregnação por bilirrubina, um achado conhecido como icterícia. Carlos apresentava um quadro clínico denominado encefalopatia porto-sistêmica18.

Comuniquei a Ligia estes achados relevantes do exame físico e disse-lhe que Carlos teria que fazer uma tomografia computadorizada abdominal. Paralelamente, eu pediria novas provas de função hepática e ficaria em contato com seu gastroenterologista. 

Recebi os resultados dos exames. 

Sua tomografia revelava a presença de duas massas tumorais de mais de três centímetros, a maior no lobo direito do fígado e a menor no lobo esquerdo. Adicionalmente, outras lesões menores encontravam-se disseminadas por todo o fígado. Um marcador tumoral chamado alfafetoproteina havia tido uma expressiva elevação e suas provas de função hepática estavam muito alteradas. 

Avaliações complementares mostraram que Carlos tinha, em curto espaço de tempo, desenvolvido um carcinoma hepatocelular. 

Este tumor costuma ter relação com a hepatite C e com a cirrose do fígado, porém habitualmente sua apresentação clínica não é tão fulminante. 

Neste momento, sua doença era incurável. Considerando sua condição de função do fígado atual, nem sequer tratamento paliativo poderia ser oferecido. Os para-efeitos seriam maiores que o potencial e fugaz benefício. 

Carlos iria morrer em curto espaço de tempo.

Carlos encontrava-se confuso e sonolento. Não parecia ter condições de compreender o que estava acontecendo. Fisicamente abatido, sua expressão facial era apática, distante e desinteressada. 

Indiferente a tudo e a todos, não expressava sofrimento físico. 

Mesmo assim, expliquei a Carlos que seu fígado tinha problemas. 

Omiti, intencionalmente, os detalhes e o prognóstico, pois ele intercalava momentos de fugaz atenção com um estado de torpor. Expliquei-lhe que iríamos cuidá-lo em casa e que eu combinaria com Ligia os detalhes de sua assistência. Disse-lhe que poderíamos ter que interná-lo no hospital, se sua condição exigisse cuidados adicionais. 

Carlos, apertando minha mão, assentiu.

A encefalopatia porto-sistêmica é uma manifestação terminal do carcinoma hepatocelular. Traduz uma doença tão extensa no fígado que leva a falência do órgão. O sofrimento induzido por esta situação é relativo, pois o paciente vai progressivamente apresentando um distanciamento da realidade que evolui para o coma. 

Expliquei detalhadamente esta situação para Ligia e pedi que comunicasse aos filhos. Sugeri que Carlos, naquele momento, poderia ser mantido em cuidados domiciliares com o auxílio de profissionais de enfermagem. Eu o veria em casa sempre que necessário e juntamente com seu gastroenterologista iríamos organizar seus medicamentos e cuidados com a nutrição. Também ofereci a possibilidade de cuidá-lo no hospital e que esta decisão poderia ser tomada a qualquer momento, dependendo da evolução clínica de Carlos e das necessidades de seus familiares.

A despeito da gravidade da situação, Ligia estava calma. Parecia resignada e mostrava-se cooperativa no encaminhamento e instalação dos cuidados domiciliares. Iria conversar com os filhos e solicitar a compreensão e colaboração de todos. 

Passaram-se dois dias e Ligia ligou-me solicitando uma visita domiciliar.

Como eu antecipara que esta seria uma consulta de duração imprevisível, combinei com Ligia que iria à noite, após o término de minhas atividades. 

Ligia informou-me que a situação estava estável e concordou dizendo que os filhos também queriam reunir-se comigo. 

Eram oito horas da noite quando bati na campainha da casa. 

A porta foi aberta por uma funcionária da família que gentilmente conduziu-me ao quarto. 

Ligia havia contratado uma equipe de profissionais especializada em cuidados domiciliares. Fora instalada uma cama hospitalar para facilitar o trabalho de enfermagem. Uma enfermeira segurava uma planilha, onde anotara os sinais vitais e fizera um relatório das últimas 48 horas. Carlos repousava sonolento no leito. A filha estava em pé junto a cabeceira da cama e segurava a mão de Carlos, com uma atitude solicita e carinhosa. Os outros dois filhos tinham posicionado as cadeiras próximas da cama e tentavam manter uma conversação amena com o pai, sempre que possível. Ligia supervisionava os cuidados. 

Tive a nítida impressão que aquela família era genuína na expressão de seus afetos. O ambiente estava sereno. A família havia compreendido a situação clínica de Carlos e aceitado seu estado terminal. 

Os conflitos haviam sido deixados para trás. 

Em minha vida como médico eu aprendera que o perdão era a cicatriz menos traumática. 

Examinei Carlos e percebi que seu nível de consciência aprofundara ainda mais nos últimos dois dias. Apesar disso seus sinais vitais permaneciam estáveis. Havia sido instalado um soro que o mantinha adequadamente hidratado e que também proporcionava algum aporte calórico. Sempre que seu nível de consciência permitia ofereciam-lhe um alimento leve. A família participava ativamente de todos os cuidados. Ele respondia a estímulos verbais, abrindo os olhos, mas a atenção rapidamente se dissipava. Sua expressão facial não sugeria a existência de dor ou qualquer outro desconforto. 

Ao sair do quarto, Ligia solicitou-me que conversasse com os filhos. 

Reunimo-nos no living da casa. 

Disseram que Ligia já havia falado com todos e que eles estavam conscientes da gravidade da situação atual. Eles também já tinham tido uma reunião com o psiquiatra que tratara de Carlos. 

Desabafaram dizendo que o pai sempre tivera um temperamento fechado, mas que o respeitavam muito e reconheciam o seu esforço no cuidado dispensado a família e a empresa. Sabiam que desde muito jovem ele assumira um legado familiar. Entendiam que este era o principal fator de seu aparente distanciamento afetivo. Tinham sentimentos ambivalentes com relação a empresa, mas iriam deixar para pensar sobre isso mais tarde. 

Perguntaram quanto tempo Carlos iria viver e manifestaram o desejo de permanecer o máximo de tempo junto dele. Não desejavam que Carlos fosse para o hospital, preferiam mantê-lo em cuidados domiciliares, enquanto possível. Pediram que eu não autorizasse o uso de máquinas de respiração ou diálise que prolongassem, desnecessariamente, o sofrimento do pai. 

Respondi a todas as perguntas e considerei as solicitações dos filhos. 

Todos me acompanharam até a porta e com lágrimas nos olhos me agradeceram. Invadiu-me uma sensação de conforto humano, que muito gratifica o exercício da medicina. 

Apesar de já ser quase meia noite, acionei o viva voz no carro e liguei para meu colega psiquiatra. 

Sabia que não era o tipo que dormia cedo e estava sempre disponível para discutir os casos que tínhamos em comum. Eu estava sensibilizado com a forma como ele havia trabalhado a dinâmica familiar de Carlos. 

Ele me informou que Carlos havia solicitado sua intervenção e que ele teria promovido alguns encontros com Ligia e o com os filhos. Sua visão compreensiva da situação de Carlos, o havia ajudado na orientação desta família, marcada pela blindagem afetiva. Eram pessoas inteligentes e sensíveis, que rapidamente se beneficiaram da interação com o profissional. 

Agradeci enfaticamente sua valiosa participação.

Carlos morreu em casa três dias depois. 

Seu ritmo respiratório foi progressivamente tornando-se mais irregular o que evoluiu para uma parada cardiorrespiratória. 

Todos os familiares o acompanhavam naquele momento. 

Eu havia chegado a casa de Carlos alguns minutos antes e observara que tanto Ligia quanto os filhos tiveram a oportunidade de se despedir de Carlos. Foram manifestações de carinho e reconhecimento. Não eram religiosos, mas desejaram que Carlos seguisse um caminho de luz. 

Todos estavam conformados e em paz.

Passaram-se duas semanas da morte de Carlos e meu colega psiquiatra pediu que eu fosse tomar um café com ele em seu consultório. Disse que precisava discutir um caso clínico comigo. 

Combinamos o melhor horário para ambos e marcamos a reunião. 

Ele nunca havia agido desta forma antes e presumi que deveria ser alguma situação difícil e delicada. 

Pontualmente, na hora marcada, entrei em seu consultório. 

Meu colega já me esperava. Tinha um cartão de visitas na mão, que lhe havia sido confiado por Carlos em sua última consulta.

Entregou-me o cartão, perguntando o que deveríamos fazer. 

Era um cartão profissional de Rose. 

Quando virei o cartão, no verso estava escrito com uma letra já trêmula: 

“Obrigado por uma vida. Com amor, Carlos.”

 

*  Todos os personagens são fictícios  

** Referências bibliográficas que podem ser encontradas no livro Conexão Anticâncer – as múltiplas faces do inimigo interno de James Freitas Fleck

 

Habilidades e Competências adquiridas na 5ª Simulação Clínica:

A Transparência, o Tempo e a Vida

James Fleck: Conexão Anticâncer, Síntese da 5ª Simulação Clínica 

Carlos tinha um comportamento introvertido. Muito precocemente assumiu a direção de um empreendimento familiar. Sentia-se responsável por tudo e por todos. Este universo dominou sua vida. Expressava-se de forma racional, porém com o afeto contido, dominado pela ambivalência. Dava a impressão de uma certa neutralidade, que tangenciava a indiferença afetiva. Sua narrativa era factual. Ocultava seus sentimentos. Relacionava sua exteriorização com uma manifestação de fragilidade. Sentia-se culpado por estar doente. 

Carlos teve a autoestima ameaçada, pois seus referenciais eram externos. A perda da vitalidade interferiu com sua blindagem. Inicialmente, defendeu-se acentuando sua introspecção e isolamento. Todos passaram a criticá-lo, exigindo o retorno à situação anterior, cômoda e conveniente. Reunindo o que lhe restava de forças e com um comportamento destemido, começou a estabelecer vínculos e expressar com mais clareza suas preocupações. 

A incomunicabilidade familiar gerara uma situação teatral em que os papeis apreendidos e consolidados entraram em crise. O sofrimento de Carlos teve que ser compartilhado e assimilado por todas as suas relações. A doença abriu um canal de comunicação. O afeto sobrepôs-se ao egoísmo. 

Neste novo cenário, Carlos reposicionou-se como uma figura sensível. Passou a expressar o sofrimento de uma vida. Assumiu a necessidade humana de compartilhar emoções. Tornou-se transparente. 

A história de Carlos mostra que não devemos reprimir sentimentos e nem sequer ocultá-los. A vida precisa ser exercitada desde o início com afeto e sintonia de propósitos. Ninguém mente para os outros, mente para si mesmo. Esta perda de autenticidade gera sofrimento, cujo resgate, quando possível, pode ser tardio. A transparência é uma virtude a ser conquistada. Ela facilita a expressão individual. Paralelamente, é uma qualidade de grande valor humano, pois estimula a confiabilidade, facilitando as relações. 

Novamente, o fator propulsor é o desejo de viver. Passa pelo autoconhecimento, por uma reflexão sobre valores e adequação comportamental. A transparência rechaça a hipocrisia está associada a clareza na expressão do pensamento e das emoções, é um ato de coragem. Revela-se de forma matemática exponencial. Quando mais precocemente exercida, maior a velocidade de progressão e maior o benefício. 

Somos seres gregários. Nossa vida é social. As relações fortalecem o indivíduo e alimentam a alma. O resultado favorável é proporcional a nossa transparência.