4ª Simulação Clínica

Convivendo com Dilemas Éticos 

Objetivo:

Exercício de medicina multidimensional na assistência a um paciente detento do sistema prisional com retardo no diagnóstico de uma neoplasia torácica 

James Fleck, Conexão Anticâncer, 4ª Simulação Clínica 


Capítulo 1: Sofrimento Negligenciado

Anoitecera. Naquela cela isto não era facilmente percebido, exceto pela mudança da rotina. Havia silêncio. A noite calava as pessoas e acendia a introspecção. O devaneio dominava o inconsciente, misturando-se com a realidade adversa. O isolamento confundia os limites. Gritos ou sussurros tinham o mesmo significado, pois ninguém estava ali disposto a ouvi-los. O diálogo era interno. 

Edmar tinha 47 anos, boa compleição física e comportamento exemplar após três anos de prisão. Há dois meses iniciara a queixar-se de uma dor no lado esquerdo do tórax, que ocorria aos esforços. No início, a mudança de alguns hábitos fora suficiente para evitar a dor. Com o tempo passara a usar analgésicos, primeiro de forma eventual e depois sistematicamente a cada três ou quatro horas. Não tinha mais posição de alívio, nem sequer para dormir. A dor piorava com a respiração, que lhe parecia cada vez mais curta. 

Apesar dos sintomas de intensidade crescente, o sofrimento de Edmar não se expressava em sua condição física, que permanecia inalterada, fazendo com que ninguém acreditasse muito em suas queixas, cada vez mais frequentes. Chegou a ser examinado por um médico do sistema prisional que não detectando alteração ao exame clinico, restringira-se a prescrever analgésicos mais potentes.

Nada ajudava e Edmar começara a gemer durante a noite, incomodando os demais ocupantes da cela. Fora removido para um espaço isolado no fundo do corredor. Fora obrigado a manter-se quieto, tanto pelos guardas, como pelos outros presidiários. Durante a noite, Edmar colocava uma parte da coberta enrolada na boca, reprimindo a expressão do sofrimento.

Mas, naquela noite ele chegara ao limite. Começara a transpirar, apesar do frio de inverno. Tentava convencer-se de que aquilo não estava acontecendo. Imaginava-se fora daquele lugar, ainda jovem e livre. Lembrou do pai de comportamento rígido e agressivo e da suavidade da mãe que o defendia da intolerância paterna. Lembrou dos amigos e das noites de sábado. Veio-lhe à mente o efeito das várias drogas ilícitas experimentadas. Subitamente, apareceu-lhe o rosto inseguro e indefeso de Leo, sua vitima de sequestro, que ele brutamente assassinara sob o efeito da cocaína. Afastou esta imagem, pensando em Luana, aquela mulata de corpo escultural. Tentou masturbar-se, mas o gozo foi interrompido pela dor. Chegou ao desespero e sentado em um banco, começou a embalar o corpo de traz para a frente no ritmo da dor. Quando ela atingiu a intensidade máxima, jogou a cabeça contra a parede de concreto e desmaiou.

Amanheceu.

Edmar foi encontrado e transferido sob escolta para um serviço público de atendimento de emergência. Foi constatado um traumatismo crânio-encefálico. Uma tomografia computadorizada revelou um hematoma subdural hipertensivo e Edmar foi submetido a uma cirurgia de descompressão em caráter de urgência. 

Sua condição neurológica era imprevisível e permaneceu sob observação clinica, por um período de 48 horas. Recebeu medicações que diminuíam o edema cerebral e progressivamente foi melhorando em seu nível de consciência. 

Ao acordar estava confuso. Havia uma indefinição de tempo e espaço. Fora orientado de que estava sob cuidados médicos em um hospital. 

A dor torácica reapareceu e ajudou-lhe a lembrar de tudo que havia ocorrido. 

Sentiu-se ambivalente. 

Era uma realidade que preferia esquecer. 

Mas, ele estava agora ali, impossibilitado de interferir com seu destino, restrito a um leito hospitalar, sob supervisão médica e policial. 

Edmar chamou uma enfermeira e referiu que tinha dor. 

Ela administrou-lhe um analgésico venoso que havia sido prescrito, sem perguntar aonde era a dor. Ela, inadvertidamente, supunha que se tratasse de uma queixa comum pós-operatória. 

A rotina da emergência gerava estes comportamentos ambíguos. 

A tortura reiniciara, pois, o analgésico não interrompia a intensa dor torácica. 

Edmar tornou-se agressivo e descontrolado, arrancou o soro e tentou levantar-se do leito. 

Foi contido. 

Antes que pudesse expressar o que sentia, recebeu um sedativo venoso e adormeceu. 

Comunicaram o ocorrido a um médico de plantão que atribuiu o quadro a um estado de confusão mental postraumática. 

Edmar acordou confuso e agitado. 

Foi contido mecanicamente. 

Amarraram-lhe os pulsos nas grades da cama. 

Ele tinha o rótulo da periculosidade e havia dúvidas com relação a sua condição de recuperação neurológica. Não poderiam administrar mais sedativos, pois o diagnóstico era incerto.

Edmar percebeu que teria que assumir o controle daquela situação. 

Sob sua ótica era uma busca desesperada pela sobrevivência. 

Resignado, acalmou-se e pediu para falar com um médico. 

O neurologista responsável pelo setor aproximou-se do leito. Avaliou com competência técnica e interesse a situação neurológica de Edmar, concluindo que ele havia recuperado a consciência, estava coerente e com reflexos normais. 

Iniciou um diálogo com Edmar, perguntando como se sentia.

Finalmente, Edmar teve a chance de explicar sua dor. 

O neurologista solicitou um RX de tórax.

O exame revelou um extenso tumor comprometendo grande parte do hemitórax esquerdo, estendendo-se até a pleura diafragmática e recesso costovertebral.

O neurologista realizou um procedimento de colocação de um cateter na região epidural da coluna torácica para administração de analgésico e Edmar obteve, pela primeira vez, depois de meses de sofrimento, o tão desejado alívio da dor.  

Por orientação do sistema público de assistência à saúde, Edmar fora transferido para nosso Hospital Universitário, internando no serviço de oncologia sob minha responsabilidade. 

 

Capítulo 2: Ambivalência

Edmar chega ao Hospital Universitário.

Por motivo de segurança, ele permanecera em um quarto sob contínua vigilância policial. Não era a primeira vez que atendíamos pacientes detentos e eu costumava acompanhar meus residentes na primeira consulta, visando auxiliar na avaliação do risco. 

Os residentes não tinham acesso direto a ficha criminal, mas eram orientados a buscar contato com o serviço de psicologia do sistema prisional, sempre que disponível. 

Edmar cometera um crime hediondo, fora condenado e cumpria a pena com um histórico de bom comportamento, com exceção da alteração de conduta, manifesta mais recentemente. 

Ele seria acompanhado por Pedro, meu residente sênior. 

Pedro estava formado há cerca de cinco anos, passara por três anos de treinamento em medicina interna e cursava o terceiro ano de formação em oncologia clínica. Era um jovem inteligente, comunicativo, estável emocionalmente e com excelente preparo técnico. 

Ele contatou comigo e combinamos o horário para avaliar Edmar. 

Quando encontrei com Pedro, ele estava um pouco tenso e contrariado. 

Há cinco anos seu irmão mais velho havia sido vítima de um sequestro relâmpago. Este era um tipo de crime frequente nas grandes cidades brasileiras em que a vítima costumava ser mantida por algumas horas como refém, enquanto eram feitos saques bancários em seus cartões de crédito. 

Seu irmão fora liberado, ileso, cerca de três horas depois, porem a insegurança permanecera como uma marca indelével e contagiara a família.  

Pedro questionou a validade de prestarmos aquele atendimento. 

Havia feito uma associação de Edmar com a agressão que o irmão sofrera. 

Estava ambivalente. 

Manifestava revolta e rechaço contra o que Edmar representava para a sociedade, porem sentia-se imbuído do compromisso de prestar a assistência médica.

Para mim, tratava-se de um dilema. 

Eu poderia liberar Pedro daquela função e envolver um outro residente que não carregasse o mesmo histórico. Por outro lado, Pedro precisava superar este trauma. 

No exercício profissional da medicina não há espaço para ambivalências. 

Optei por dar-lhe a opção de escolha.

Interrompemos, temporariamente, nossa caminhada em direção ao quarto de Edmar. Sentamos em um canto da sala de prescrição médica, onde podíamos desfrutar de algum grau de privacidade. 

Pedro disse que precisaria refletir por mais tempo sobre aquela decisão. Mostrou-se favorável a acompanhar-me na consulta, mas pediu que eu a conduzisse. Ele permaneceria no quarto apenas observando. 

Concordei com o encaminhamento proposto.

 

Capítulo 3: Considerações técnicas e éticas

Entramos no quarto de Edmar. 

Ele expressava uma atitude resignada, apesar de estar algemado, sob escolta policial armada e consciente de que tinha uma doença grave, com desfecho indefinido. 

Apresentei-me como o médico responsável por sua internação. Sentei ao lado de seu leito, na altura de seu olhar e expliquei que precisava ouvir sua história. 

Edmar começou a falar compulsivamente. 

Relatava de forma apressada, tudo o que ocorrera nos últimos meses. Atrapalhava-se um pouco na linguagem e havia uma ansiedade incontida. Tentava gesticular, mas os movimentos eram limitados pelas algemas.

Solicitei que ficasse calmo, falasse pausadamente, pois isto facilitaria a compreensão e ordenação dos fatos. 

Edmar desacelerou um pouco e melhorou a clareza da comunicação. 

Todavia, seu relato era frequentemente interrompido por movimentos rítmicos e estereotipados no lado esquerdo da face, lembrando um tique motor, que quase sempre vinha acompanhado de uma palavra obscena. Por mais que se acalmasse, Edmar não conseguia controlar aquela forma de expressão involuntária e autônoma. Ele tinha consciência desta alteração neurológica, pois ela fora motivo de muita incompreensão e conflito desde a infância. 

Quando questionado sobre o problema, revelou que seu pai o agredia na face para corrigir o defeito e que ele fora motivo de bullying na escola e também na vida adulta. Seu primeiro contato com drogas ilícitas ocorreu, paradoxalmente, para tentar buscar ajuste social. Disse que elas, no início, o ajudavam a sentir-se mais desinibido e autoconfiante. 

Infelizmente, somente percebera que isto era ilusório após matar um homem. 

Justificou-se, dizendo que estava em estado alterado de consciência. Arrependera-se, mas já era tarde. Nunca mais usara drogas, aprendera a conviver com seu defeito físico e a absorver os conflitos gerados por ele. 

Aceitara com resignação sua condenação.

Edmar era inteligente e apesar da dificuldade motora comprometer a fluidez da linguagem, ordenava claramente o pensamento e transmitia confiabilidade em suas informações. 

Descreveu, detalhadamente, a intensidade, a localização e a duração de sua dor. Ele parecia conhecer muito bem seu sintoma predominante. Convivera com ele já há alguns meses e sabia quais os movimentos ou posições que o agravavam, tentando defender-se destas situações.

Ouvi sua história por trinta minutos.

Ao exame clínico havia uma nítida redução da ventilação pulmonar nos dois terços inferiores do hemitórax esquerdo. Havia dor espontânea e a palpação dos arcos costais inferiores do mesmo lado. O traumatismo craniano era detectável pela cicatriz cirúrgica, mas não havia deixado outras sequelas. Os movimentos espasmódicos que ocorriam na face eram a expressão de uma doença rara denominada de síndrome de Tourette. Consistia em uma doença genética, autossômica dominante, mas de penetração errática, ou seja, nem todas as pessoas que herdavam o gene, iriam necessariamente expressar a doença. Embora tivesse sido descrita há mais de um século, continuava sendo uma doença pouco conhecida e subdiagnosticada. Costumava estar associada com ansiedade, déficit de atenção ou até mesmo transtorno obsessivo-compulsivo. Sua base era orgânica, relacionada a alteração nos níveis de neurotransmissores no sistema nervoso central. Adicionalmente, Edmar apresentava coprolalia, um transtorno de linguagem associado à síndrome de Tourette, no qual involuntariamente expressava palavras obscenas, fora do contexto, motivando incompreensão e desajuste social. Os demais aspectos do exame clinico de Edmar estavam normais.

Descrevi para Edmar os achados de minha avaliação. 

Expliquei que havia um tumor no lado esquerdo do tórax. Ele fora detectado pelo RX e provocava dor por uma provável infiltração da pleura e parede costal. Disse que faríamos uma tomografia computadorizada que além de melhorar nosso entendimento sobre a localização do tumor, iria orientar a realização de uma biópsia. Expliquei que ele tinha síndrome de Tourette e que iriamos paralelamente buscar opções de tratamento que aliviassem os sintomas neurológicos e comportamentais.

Antes de sair do quarto, observei que Pedro fora gradualmente aproximando-se do leito de Edmar. 

Quando eu estava por finalizar a consulta, Pedro tomou a iniciativa e apresentou-se a Edmar. Disse que era o médico residente e que estaria, a partir daquele momento, participando de seu atendimento.

Ao sair do quarto, Pedro sentia-se melhor. 

Disse ter superado a ambivalência. 

Não associava mais a imagem de Edmar com a agressão sofrida pelo irmão. 

Entendera que Edmar fora estigmatizado desde a infância por uma doença neurológica não diagnosticada. Havia uma base de incompreensão social que embora não justificasse o crime, pelo menos diluía a culpa. 

Antes que Pedro pudesse evoluir em sua linha de raciocínio, antecipei-me em interrompê-lo. Expliquei que nós não estávamos ali para fazer julgamento moral. Bem ou mal, Edmar já havia sido julgado, condenado pela sociedade e cumpria pena. Sob a ótica médica, ele não era diferente de qualquer outro paciente. Estava severamente doente, sofria e nossa missão era atendê-lo. 

 

Capítulo 4: Trabalhando sem Preconceito

Para o médico a cor, religião, convicção politica, orientação sexual, condição econômica ou social e até mesmo o perfil moral do paciente não poderiam interferir nos cuidados demandados pelo destino. Nossa função era preservar a vida e aliviar o sofrimento. Os julgamentos deveriam restringir-se ao contexto técnico e ético de nossas interferências médicas. 

Lidar com dilemas sempre fora muito difícil. Costumavam envolver decisões polêmicas e multifatoriais. Não era infrequente que conduzissem a raciocínios redundantes e inconclusivos, que poderiam alimentar a ambivalência. 

O teatro explorava, há muitos anos, esta fragilidade em dramas como Fausto de Johann Wolfgang Von Goethe e Dilema do Médico de George Bernard Shaw. 

 

Doctor’s Dilemma

George Bernard Shaw

(1856 – 1950)

Ridgeon era um médico reconhecido que descobriu um método para curar a tuberculose. Todavia, o tratamento estava disponível em um número limitado. Ridgeon precisava selecionar os pacientes que iriam receber o tratamento. Surgiram duas possibilidades. A primeira chegou através de Jennifer, uma belíssima mulher, casada com um famoso artista plástico, chamado Louis Dubedat. Jennifer solicitara que Ridgeon tratasse seu esposo. Ridgeon, subitamente, apaixonara-se por Jennifer e descobrira que Dubedat tinha mau caráter. A segunda possibilidade era Blenkinsop, um médico honesto e pobre, que sendo amigo de Ridgeon e sofrendo de tuberculose, solicitara os seus cuidados. Ridgeon optou por tratar do pobre médico e Dubedat passou aos cuidados de outro colega. Dubedat morreu e sua esposa Jennifer acusou Ridgeon de assassinato.

 

Eu os lera várias vezes. 

Aprendera que a vaidade e o medo eram incompatíveis com o exercício da medicina. Aprendera que o conhecimento tinha que ser universal e que as decisões precisavam ser compartilhadas. Na medida em que o mundo evoluiu no entendimento dos direitos humanos, o posicionamento ético passou a ser o pilar fundamental na sustentação de nossas intervenções profissionais. Surgiram as comissões de ética nas instituições, monitorando as atividades de pesquisa e orientando na resolução dos dilemas assistenciais. O médico apreendeu a respeitar seus conflitos internos e limitações humanas. A sensibilidade passou a ser valorizada tanto quanto a habilidade técnica. O paciente, independente de seu nível de escolaridade aprendeu a buscar ativamente a informação e a questioná-la. O médico despiu-se da onipotência e onisciência, uma forma de vaidade podre, incompatível com a fragilidade humana. Passou a exercer sua arte e técnica consciente de suas limitações e aprendeu a lidar com a neutralidade no julgamento dos valores morais.    

Todas as vezes que um paciente necessitava de meus cuidados, eu os prestava com o melhor de minha técnica, sustentado pelo maior nível de evidencia disponível na literatura e pelo consentimento informado. Havendo qualquer tipo de insegurança, buscava aconselhamento na comissão de ética da instituição.

Pedro tinha expressado livremente suas ideias e eu respeitara sua posição. O dilema somente poderia ser resolvido na intimidade de sua origem. Pedro desenvolvera uma visão preconcebida sobre Edmar. Ao optar por expor-se passivamente ao contato com o paciente, teve a oportunidade de amadurecer sua decisão em um plano mais objetivo. Pedro tinha pouco mais do que cinco anos de exercício da medicina e suas decisões ainda eram muito passionais. Eu precisava conduzi-lo para um comportamento mais isento, em que seus problemas ou experiências traumáticas não fossem transferidos para a assistência médica. A neutralidade somente era conquistada com o advento da maturidade profissional e segurança afetiva. 

A residência também servia para trabalhar estes atributos. 

Expliquei meu raciocínio para Pedro.

Pedro reconheceu que precipitara um julgamento e que durante todo o período em que vivenciara a ambivalência, sentira suas mãos amarradas nos mesmos grilhões que prendiam os punhos de Edmar. Ao libertar-se da ambivalência livrara-se do imobilismo. Compreendera, claramente, que enquanto não resolvesse aquele dilema não poderia exercer a corresponsabilidade pelos cuidados de Edmar. 

Durante a consulta, Pedro refletiu sobre seus sentimentos, desfez as associações de ideias preconcebidas e com uma postura vocacionada e isenta assumiu seu papel de médico. Sentiu-se bem e afirmou estar pronto para iniciar o trabalho assistencial de Edmar.

Senti que podia contar com Pedro. A transparência com que expressara seus sentimentos e o racional que empregara na solução do dilema geravam confiança. Embora parecesse muito rápida, a mudança comportamental de Pedro passara por uma profunda reflexão e suas atitudes guardavam coerência.

 

Capítulo 5: Trabalhando em Sintonia

Marcado por respeito mútuo, iniciamos o trabalho assistencial conjunto.

Conforme já havia sido antecipado pelo RX, a tomografia computadorizada do tórax de Edmar, revelara um extenso tumor comprometendo a pleura costal e diafragmática, com infiltração do lobo inferior do pulmão esquerdo. 

Com o auxilio de um radiologista intervencionista, procedeu-se uma punção biópsia que transcorreu sem intercorrências9. Foram realizados outros exames de imagem visando excluir achados de disseminação tumoral.

Pedro assumira a rotina diária de assistência e eu supervisionava o trabalho.

Recebemos o resultado do exame anatomopatológico. 

Ele demorara um pouco mais do que o habitual, pois tratava-se de uma situação incomum. O diagnóstico histológico fora de uma neoplasia maligna epitelióide. Lançando mão de um painel de anticorpos monoclonais, o exame imuno-histoquimico associado aos achados morfológicos e clínicos concluiu pelo diagnóstico de um mesotelioma maligno difuso epitelióide10.

Este era um tumor raro de origem pleural. 

Nos EUA onde os registros de câncer conseguiam atingir 95% da população, eram descritos apenas 3000 casos novos por ano. Porem, sua incidência no mundo vinha aumentando devido a um fator ambiental já identificado e parcialmente controlado. O mesotelioma tinha relação com exposição prévia ao asbesto ou amianto, uma denominação genérica para um conjunto de substâncias minerais usadas em produtos comerciais, especialmente em construção civil e naval.

Curiosamente, o tempo de latência entre a exposição primária ao asbesto e o surgimento de mesotelioma é muito longa, variando de 20 a 40 anos. Apesar do uso do asbesto ter sido proibido na maior parte do mundo industrializado, os efeitos da exposição ocupacional permaneceram, com uma previsão de redução da mortalidade mundial por mesotelioma prevista somente para o ano de 2016. 

Havia uma hipótese alternativa para o surgimento de mesotelioma, associada a exposição ao vírus SV40. Trabalhos em laboratório mostraram que o SV40 podia produzir modificações genéticas celulares que conduziam ao surgimento de mesotelioma em ratos hamsters. Em 1960, os investigadores Benjamin Sweet e Maurice Hilleman identificaram a presença do vírus SV40, contaminando vacinas para poliomielite. Desde aquele momento, um grande esforço internacional fora feito, transformando a vacina da poliomielite em uma forma livre de contaminação por SV40 a partir de 1963. 

Pedro investigara a possível relação causal. 

Edmar não lembrava ou tinha qualquer tipo de documentação que remetesse para sua história de vacinação infantil. Todavia, até os 14 anos de idade ele acompanhara o pai em sua atividade de construção civil. Lembrava que serrava telhas de amianto e que teria participado desta atividade por um período de aproximadamente cinco anos.

A avaliação de extensão da doença mostrara que o tumor estava restrito ao tórax. 

O tratamento de Edmar teria intensão curativa. 

A revisão da literatura mais recente, indicava a necessidade de associar cirurgia, radioterapia e quimioterapia15. Era um tratamento complexo, com alto índice de complicações. A chance de cura dependeria da extensão local do tumor e da possibilidade de remove-lo completamente. A cirurgia era denominada de pleuropneumonectomia e consistia na remoção em bloco da pleura, pulmão, diafragma e pericárdio. A irradiação seria associada a quimioterapia e realizada no pós-operatório. 

Nós dispúnhamos de um excelente serviço de cirurgia torácica que concentrava o referencial de pacientes com mesotelioma. A radioterapia desfrutava de uma tecnologia de ponta e a oncologia clinica já havia coordenado várias intervenções conjuntas com bom entrosamento multiprofissional. 

Pedro promoveu uma reunião dos três serviços para discutirmos o caso de Edmar. 

O ponto central da reunião fora a discussão da ressecabilidade, ou seja, a possibilidade de retirada completa do tumor, pois este era o fator dominante no prognóstico de Edmar. Optamos por fazer uma ressonância nuclear magnética16 visando avaliar o grau de invasão tumoral da parede torácica e do diafragma, um músculo que separa o tórax do abdômen. Adicionalmente, a cirurgia do tórax seria precedida de uma laparoscopia17. Iriamos olhar o diafragma na sua face abdominal para excluir a extensão do mesotelioma para o peritônio.

O resultado da ressonância nuclear magnética não revelou invasão da parede torácica pelo tumor, mas permaneceu incerta quanto ao comprometimento do pericárdio e diafragma. 

Fomos ao quarto de Edmar. 

Ele estava tranquilo. A dor permanecera controlada. Com a diminuição da ansiedade, as manifestações da síndrome de Tourette foram amenizadas. Pedro o mantinha informado de todos os resultados de exames. 

Explicamos a Edmar o plano de tratamento e os riscos associados. 

Ele ouvira com atenção. 

Era um homem solitário, nunca havia casado, não tinha filhos e seus pais já estavam mortos. Não tinha com quem compartilhar suas decisões, com exceção de seus médicos. Isto aumentava nossa responsabilidade ética. Sob nossa ótica, estávamos oferecendo o que havia de melhor, mas a decisão era de Edmar.

Expliquei que estávamos a disposição para esclarecer suas dúvidas e que ele deveria se sentir livre para perguntar. 

Para uma pessoa que vivera por tanto tempo em sistema carcerário, a inibição poderia ser um fator impeditivo para o consentimento informado. 

Edmar já havia estabelecido um vinculo de confiança conosco e começou a questionar sobre a natureza da doença, riscos do tratamento e possibilidade de cura.

Explicamos que era um tumor maligno, mas que os exames mostravam a doença restrita ao tórax. Sua cirurgia teria intensão curativa, mas isso somente poderia ser decidido no transoperatório. A cirurgia era grande e o risco de morrer pela operação ficava na faixa dos 10%. A curabilidade geral, quando todos os casos eram incluídos, independente da extensão do tumor, não ultrapassava 15%. Todavia, sua possibilidade de cura era ainda indefinida, e poderia chegar a 45%, se todo o tumor estivesse restrito a pleura, pudesse ser retirado integralmente e os gânglios linfáticos fossem negativos. 

Edmar nos olhava com atenção e apesar de ter escolaridade baixa, era inteligente e dava a nítida impressão de entender perfeitamente o que falávamos. 

Mesmo assim, insisti e questionei se ele havia compreendido. 

Edmar respondeu que sim, exceto o que se referia aos gânglios linfáticos. 

Explicamos que eram como se fossem ínguas. Quando a doença chegava neles, costumavam inchar e a gente constatava o aumento de tamanho no exame da tomografia. Mesmo quando estavam de tamanho normal, como era o seu caso, estes gânglios seriam removidos e examinados no microscópio. Se não apresentassem células do tumor, sua chance de cura era maior.

Edmar perguntou como o cirurgião iria saber que teria retirado todo o tumor.

Explicamos que a cirurgia era predominantemente feita por fora do tumor. O cirurgião procurava evitar que o bisturi tocasse na doença, fazendo com que o corte ocorresse em tecido saudável. Mesmo assim todo o material iria para o laboratório e um médico chamado patologista iria, adicionalmente, examina-lo. 

Edmar perguntou se teria que fazer quimioterapia ou radioterapia.

Respondemos que sim, pois o mesotelioma era um tumor muito infiltrativo. 

Mesmo com todo o cuidado e habilidade cirúrgica, poderia ficar doença microscópica residual, que seria tratada pela associação de quimioterapia e radioterapia no pós-operatório. 

Edmar concordou com a proposta de tratamento.

Foi necessária a participação de duas equipes cirúrgicas. 

A primeira realizou uma laparoscopia. Fazendo uma pequena perfuração na parede abdominal, o cirurgião introduziu um aparelho tubular fino, cuja ótica permitia examinar o diafragma na sua face peritoneal. Foi constatado que o mesmo se encontrava livre de tumor, encerrando o procedimento. 

Em sequência, entrou em campo o grupo da cirurgia torácica. Edmar foi reposicionado na mesa cirúrgica e aproveitando o mesmo ato anestésico, foi submetido a uma pleuropneumonectomia esquerda. Consistia em uma cirurgia de grande porte e foram necessários vários dias de cuidados intensivos no pós-operatório. Edmar teve uma evolução muito favorável, saindo da ventilação mecânica em 48 horas. Os cirurgiões procuraram mantê-lo seco, com um volume de hidratação venosa restrita ao indispensável. Isto facilitava a recuperação respiratória e a monitoração cardíaca e renal auxiliava nos controles19. Exames de sangue antecipavam as medidas de reposição e interferências medicamentosas. 

Superada a fase mais critica, Edmar foi transferido para o quarto, iniciando precocemente com fisioterapia respiratória e deambulação. 

Em cerca de três semanas estava plenamente recuperado.

Todo o material fora encaminhado para o laboratório. 

O patologista recebera em monobloco, o pulmão esquerdo, as pleuras visceral e parietal, uma porção do pericárdio e outra do diafragma. 

Adicionalmente, foram encaminhados linfonodos hilares e mediastinais. 

O exame anatomopatológico revelara um mesotelioma maligno difuso epitelióide. Havia comprometimento da pleura visceral e parietal e invasão tumoral do pulmão. Com exceção de uma invasão tangencial sobre o diafragma, todas as demais estruturas estavam livres de tumor.

Pedro ficara insatisfeito com o laudo anatomopatológico. Era a primeira vez que acompanhava um caso de mesotelioma e esperava um relatório mais descritivo.

Sugeri que fossemos juntos ao laboratório para conversar com o patologista.

Ao chegarmos ao laboratório, fomos cordialmente recebidos pelo patologista que se prontificou a mostrar as pecas cirúrgicas e as lâminas obtidas para o exame microscópico. 

Olhamos com atenção todos os materiais. 

A peça extraída na cirurgia estava embebida em formal, cuja volatilização irritava quimicamente nossos olhos e narinas. O uso de uma máscara cirúrgica amenizava o desconforto, permitindo acompanhar atentamente a descrição do patologista, já mais familiarizado com aquele odor. Ele era um colega experiente, que com excelente habilidade didática, foi mostrando para Pedro as alterações identificadas. Mostrou a origem do mesotelioma na pleura. Havia tumor na pleura visceral que ficava colada no pulmão e também na pleura parietal que revestia por dentro a caixa torácica. O tumor partindo da pleura, invadia o pulmão com aspecto brancacento e firme. A porção da membrana que envolvia o coração, chamada pericárdio, estava livre de tumor e no segmento retirado do diafragma, o tumor restringia-se a pleura diafragmática, não invadindo este músculo que separa o tórax do abdômen. O tumor, grosseiramente, havia sido completamente ressecado, porem por tratar-se de uma doença infiltrativa, as margens eram mínimas. Quando passamos para a avaliação no microscópio, foi possível ver claramente a expressão das células tumorais tanto no exame convencional, como na imuno-histoquimica. Todas as técnicas empregadas para avaliação dos linfonodos, mostraram ausência de tumor.

Pedro deu-se por satisfeito e posteriormente comentou comigo a importância de visualizar os materiais. Isto gerava maior segurança na avaliação de estadiamento, um critério usado para classificação da extensão do tumor.

Usando-se o critério internacional de estadiamento para mesotelioma do American Joint Committee on Cancer Staging System, o tumor de Edmar fora classificado como estádio II. Sua chance de sobreviver cinco anos ficaria na faixa dos 25%. 

Comunicamos estas informações para Edmar, que as recebeu com surpreendente serenidade. 

Comoveu-nos ao afirmar que sua vida era um jogo de azar. Nascera em condições adversas, tivera desde a infância um defeito físico pelo qual fora ridicularizado, usara drogas, ingressara no crime, fora preso, discriminado e agora surgira o tumor. Não tinha medo e apesar de tudo queria viver. Pediu que continuássemos com o tratamento. Ele não sabia para onde o destino iria leva-lo, mas resolvera deixar rolar.

O tratamento combinado com radioterapia e quimioterapia era muito tóxico, porem indispensável. Se a intervenção ficasse restrita apenas a cirurgia sua chance de cura seria quase nula. Edmar entendera esta limitação e concordara em enfrentar o sofrimento induzido pelo tratamento complementar, pois suas chances seriam maiores. Como seu tumor estava localizado no lado esquerdo do tórax, havia um risco maior de toxicidade cardíaca. Apesar da radioterapia ser planejada com uma técnica chamada IMRT, que permitia uma definição mais precisa dos campos de tratamento, alguma irradiação secundária atingiria o músculo cardíaco e esta toxicidade seria potencializada pelas drogas da quimioterapia. Todavia, o índice terapêutico, nome usado para avaliar a relação risco-benefício era claramente favorável a intervenção com a terapia multimodal. 

Pedro havia solicitado todas as provas de avaliação funcional e Edmar apresentava boa função cardíaca, renal e hepática. Com exceção do Tourette, ele não tinha outras doenças e estava em condições de iniciar o tratamento com quimioterapia e irradiação. 

Edmar teve alta, pois todo o tratamento complementar seria feito de ambulatório. Fora uma situação de administração delicada, pois estando sob responsabilidade do sistema prisional, tinha que ser transportado algemado, sob escolta policial armada. Os horários foram programados para períodos em que não houvesse exposição a outros pacientes, evitando constrangimento mútuo. Havia momentos do tratamento em que as algemas tinham que ser removidas por motivos técnicos. Havia períodos durante a administração da radioterapia em que Edmar precisava ficar sozinho na sala, pois os guardas não poderiam ser expostos a irradiação. Em algumas situações, as manifestações neurológicas do Tourette, exigiram sedação adicional para não prejudicar o ajuste dos campos de tratamento.

Edmar comportou-se de forma exemplar. Lutava pela vida. Mantinha sua atitude original de resignação, aliada a uma forte determinação de aderência ao tratamento. Enfrentou a toxicidade esperada com um comportamento estoico. Houve momentos de prostração, náuseas, vômitos, dificuldade e dor para deglutir. Perdeu peso. Ocorreram dois episódios de leucopenia febril severa23, em que a contagem de glóbulos brancos atingiu valores muito baixos, acompanhados de infecção oportunista, o que requereu hospitalização e tratamento com antibióticos por via venosa. Em uma destas ocasiões Edmar teve que ser transferido para a unidade de cuidados intensivos. Estava com uma pneumonia intersticial provocada por um agente infeccioso chamado pneumocystis carinii24. Edmar tinha pulmão único e voltara a ventilação mecânica, saindo somente depois de resolvido o quadro infeccioso. 

A despeito das dificuldades, Edmar completou o tratamento com excelente intensidade de dose e não ficaram sequelas. 

Programamos seu acompanhamento com revisões trimestrais. 

Nos contatos subsequentes que tivemos com Edmar a impressão fora sempre favorável. Os exames não mostravam evidência de doença residual em atividade. Ele mantivera remissão completa após dois anos de acompanhamento. Permanecera com bom comportamento. Havia solicitado revisão de sua pena, mas ainda não tivera retorno. Dentro da prisão, passara a ser respeitado como um sobrevivente do câncer, tanto pelo staff como pelos detentos. Buscou, espontaneamente, contato com o serviço médico e de psicologia do sistema prisional, solicitando sua intervenção na divulgação da síndrome de Tourette, buscando maior compreensão e adequação comportamental, sendo atendido em sua demanda.

Edmar estabelecera um forte vínculo de confiança com Pedro. Reiteradamente, manifestava seu agradecimento pelo cuidado e atenção continuada. Sentira-se integralmente atendido em suas necessidades assistenciais. Atribuíra a Pedro os resultados favoráveis obtidos, tanto no tratamento do mesotelioma, como no entendimento da síndrome de Tourette. 

Pedro completara sua formação e iniciara um projeto de doutorado, visando contribuir na prevenção do mesotelioma. Seu plano envolvia a identificação   de uma região geográfica, onde a legislação ainda não proibira a utilização industrial do asbesto. Seu projeto Identificaria cinco tipos de uso industrial do asbesto e faria uma amostragem aleatória de trabalhadores com mais de vinte anos de exposição profissional. Estes trabalhadores constituiriam o grupo teste e seriam submetidos a exame clinico e a RX de tórax. O grupo controle seria formado por trabalhadores da mesma região geográfica, porem com atividade profissional de mais de vinte anos em indústrias livres de asbesto. O grupo controle seria submetido a mesma avaliação proposta para o grupo teste. Sua hipótese buscava demonstrar por meio de um estudo aleatório e prospectivo a correlação entre a incidência de mesotelioma e a população exposta ao fator de risco. Ambos os grupos excluíam movimentos migratórios. Uma análise de subgrupo iria avaliar a correlação de mesotelioma e tabagismo. Paralelamente, seu projeto contemplaria uma ação em escolas de ensino fundamental. Na área classificada como de alta exposição profissional ao asbesto, seria desenvolvido um programa educacional, associado a um questionário voltado para a identificação da exploração do trabalho infantil em atividades de risco. Os casos identificados seriam notificados ao serviço de saúde pública local. Esta medida faria a prevenção primordial, pois as crianças seriam protegidas da exposição precoce ao fator de risco. A prevenção primária ocorreria pela demonstração da correlação entre asbesto e mesotelioma em cada atividade industrial especifica, proibindo sua utilização subsequente e, portanto, removendo o fator de risco. A prevenção secundária ocorreria pela busca de diagnóstico mais precoce do mesotelioma na população exposta ao asbesto.

Pedro expressou que Edmar havia sido a inspiração para a criação e desenvolvimento de seu projeto. Revoltara-se ao constatar que Edmar fora, ainda criança, submetido ao risco de exposição ao asbesto, provocado por sua situação familiar adversa, associada a ignorância ou indiferença da sociedade. Seu estudo, sendo aleatório poderia produzir resultados com maior nível de evidência, o que iria auxiliar na obtenção de medidas administrativas e legais visando acelerar o processo de industrialização livre de asbesto.

Eu, mais uma vez, me encontrava admirado com o poder que a medicina tinha de aproximar as pessoas, romper as barreiras de comunicação e fazer o resgate humano. 

Este era o verdadeiro sentido desta profissão.

Vidas cruzadas pelo destino. 

Uma sofrida e deformada, outra imatura e em formação. 

O beneficio fora mútuo. 


*  Todos os personagens são fictícios  

** Referências bibliográficas que podem ser encontradas no livro Conexão Anticâncer – as múltiplas faces do inimigo interno de James Freitas Fleck 


Habilidades e Competências adquiridas na 4ª Simulação Clínica:

O Enfrentamento dos Dilemas Éticos

James Fleck: Conexão Anticâncer, Síntese da 4ª Simulação Clínica

Pedro, ainda jovem, com apenas cinco anos de exercício da medicina, enfrenta seu primeiro dilema ético. Pensa em esquivar-se, mas, em tempo, compreende que aquele desafio fazia parte de sua formação. Escuda-se em um profissional mais experiente e como observador passivo faz um julgamento autocrítico. Ele transferira para Edmar o ódio reprimido pelo agressor do irmão. Teve que desconstruir esta impressão inicial. Percebeu que Edmar fora vítima de incompreensão social desde a infância, passara por maus tratos, tentara refugiar-se na droga e cometera um crime em estado alterado de consciência. Fora julgado e condenado. 

Edmar sofria com um tumor, cuja dor ultrapassara seus limites físicos e emocionais. Buscara ativamente o atendimento. Ao ser acolhido, rapidamente tornou-se aderente às recomendações e estabeleceu vínculos de confiança. 

Pedro superou a ambivalência e assumiu o desafio assistencial. Sua decisão foi espontânea, elaborada e consciente. Pedro refletiu sobre seus sentimentos, desfez as associações de ideias preconcebidas e com uma postura vocacionada e isenta assumiu seu papel de médico. Sentiu-se bem e conquistou o equilíbrio necessário para conduzir o trabalho assistencial de Edmar. Evitou tornar-se um prisioneiro dos dilemas éticos.

O preconceito, a indiferença, a arrogância e o medo são incompatíveis com o exercício da medicina. Na medida em que o mundo evoluiu na compreensão dos direitos humanos, o posicionamento ético passou a ser o pilar fundamental na sustentação das intervenções médicas.

A história de Pedro e Edmar ilustra como a resolução de um dilema ético contribui para a qualidade assistencial. Mostra como duas personalidades tão distintas podem conviver, superar as diferenças e juntar esforços no resgate à vida. 

A medicina tem esta transcendência. Rompe as barreiras e chega na essência da natureza humana. Neste nível, todos somos muito parecidos, temos os mesmos valores e limitações. Existe uma linha tênue separando direitos e deveres. Por maior que seja o esforço, o entendimento não é somente racional. O julgamento precisa estar fundamentado no afeto. Existe uma linha tênue que separa a razão da emoção e sobre ela é que encontramos o ponto de equilíbrio que direciona as decisões éticas.