3ª Simulação Clínica

A Torre de Hanói

 

Objetivo:

Exercício de medicina multidimensional na assistência a um paciente idoso com câncer de próstata que questiona a metodologia da ciência médica

 

James Fleck, Conexão Anticâncer, 3ª Simulação Clínica 

 

Capítulo 1: A Imprecisão diagnóstica do PSA

Teófilo tinha 75 anos quando chegou para a primeira consulta acompanhado da esposa Vilma. Ele era um senhor grisalho de estatura mediana, aparência hígida, com uma expressão facial simpática e serena. Olhava de forma fixa para o interlocutor e mostrava-se muito atento a todos os comentários. 

Vilma tinha 71 anos, elegante e educada, também demonstrava um temperamento tranquilo e olhava de forma afetiva e carinhosa para Teófilo, enquanto ele descrevia seus sintomas. 

Era um casal muito equilibrado, revelando bom entrosamento. 

Estavam naturalmente preocupados, pois esta era a primeira vez que Teófilo estava enfrentando uma doença. Ele fizera uma carreira militar e sempre fora cuidadoso com a saúde. Praticava exercícios com regularidade, estava dentro do peso ideal e nunca fumara. 

Vilma também era saudável e compartilhava com o marido a inexperiência com relação a qualquer situação prévia de doença. 

Tinham uma família grande, constituída por três filhos homens e duas mulheres, que já lhes haviam dado doze netos. Vilma sabia os nomes, idades e preferências pessoais de todos os netos. Teófilo era um pouco mais desatento e referia-se a eles de uma forma grupal, mencionando-os pela ordem de nascimento, sem especificar os nomes. 

Todavia, ambos expressavam muito afeto e boa integração familiar. 

Teófilo iniciara com dificuldade para urinar há seis meses. 

Percebera, inicialmente, um aumento do número de micções noturnas, que lhe interrompiam o sono, a cada duas horas. Durante o dia, observara que, ocasionalmente, ocorria urgência para urinar, o que vinha acompanhado de incontinência urinária, mais recentemente. 

Teófilo era um senhor esclarecido e sabia que após uma certa idade os homens poderiam ter estes sintomas. Embora, muitas vezes, fossem causados por uma doença benigna chamada hiperplasia prostática, eles também poderiam estar relacionados com o câncer. Ele fazia revisões médicas periódicas com seu clínico geral e ele solicitara um exame de sangue chamado PSA. Ao receber o resultado do PSA, o clinico o alertara que o valor estava elevado e que ele deveria consultar com um urologista.

O PSA é o antígeno prostático específico e como o nome indica é um marcador circulante do tecido prostático, que pode estar alterado tanto na hiperplasia prostática benigna como no câncer de próstata. 

Teófilo tinha um PSA de 19 ng / mL, o que poderia ser compatível com qualquer uma das duas hipóteses diagnósticas. Ele era engenheiro, prestava consultorias e dava aulas sobre cibernética e inteligência artificial. Revelou que teria ficado indignado com a imprecisão do PSA e questionado o clínico sobre o seu valor, pertinência e significado. O clinico respondera que isto seria esclarecido pelo urologista. 

Neste instante, Teófilo olhou mais fixamente para mim e perguntou: “Doutor, como vocês médicos convivem com esta imprecisão?”

Esta era a minha primeira oportunidade de intervenção naquela consulta. Percebera que o paciente já, precocemente, manifestara comportamento inquisitivo. Na minha ótica, um sinal favorável, especialmente para um senhor que nunca tivera experiência prévia em lidar com doença. 

Apressei-me em responder. 

Disse que na medicina as informações eram complementares e que o exame do urologista, associado com uma ecografia transretal poderiam ajudar no esclarecimento desta dúvida. Expliquei que o PSA tinha especificidade de diagnóstico baixa, mas que seria muito útil para o acompanhamento durante e após o tratamento de qualquer uma das duas hipóteses de doença prostática mencionadas. 

Comentei que na circunstância de permanecer indefinida esta situação, após todas as avaliações, ainda teria o recurso de um exame feito na urina chamado PCA3, que aumenta a chance de discriminar melhor entre a hiperplasia prostática benigna e o câncer da próstata.       

Teófilo sorriu e pediu que eu o entendesse, pois era difícil para um engenheiro e militar reformado conviver com inconsistências. 

Retribui o sorriso e disse que poderíamos conversar mais sobre esta questão, mas que eu gostaria de ouvir primeiro o restante de sua história clínica.

  

Capítulo 2: O desafio mútuo

Teófilo retomou sua história clínica.

Informou que consultara com o urologista, conforme recomendado. 

No toque da próstata, o urologista identificara que ela estava aumentada de tamanho e que havia um nódulo endurecido, na superfície do lobo direito. Solicitara uma ecografia transretal, que confirmou o achado do exame clinico, acrescentando a informação de ser um nódulo único, porém com discutível extensão extracapsular, ou seja, talvez não estivesse restrito a próstata. Adicionalmente, o urologista solicitara uma ressonância nuclear magnética da próstata.

Teófilo teria referido ao urologista que estava com dificuldade de entender por que para cada exame que realizava, na medida que se esclarecia algum aspecto, novas dúvidas também surgiam. Sem mesmo dar a oportunidade para que o urologista explicasse sua impressão e conduta, ele teria referido a intenção de obter uma segunda opinião. 

Seu urologista era um médico experiente e competente e sugeriu alguns nomes de colegas que o paciente poderia consultar. 

Foi assim que Teófilo chegou ao meu consultório. 

Ele não queria retardar a investigação, mas na medida em que contava sua história, ficava cada vez mais evidente sua insegurança e inconformismo com os métodos e resultados da investigação de seu problema. 

Naquele momento percebi que o paciente buscava entender o raciocínio médico, mas estava com muita dificuldade, pois olhava para a medicina sob a ótica das ciências exatas. Estava tentando extrapolar o tipo de racional que usara durante toda uma vida em sua atividade profissional. 

Estava quase desacreditando da medicina. 

Procurei ser enfático. 

Disse que seguramente a medicina iria ajudá-lo, mas que precisaríamos falar a mesma linguagem. Entendia que para ele o racional médico, possivelmente, era tão incompreensível como para mim seria tentar entender a matemática avançada, utilizada na linguagem de sistemas cibernéticos. 

Pedi que ele tentasse me explicar quais eram suas expectativas em relação a medicina. 

Pedi que me mostrasse a forma como ele pensava. 

Teófilo gostou da ideia e disse que iria me dar uma tarefa. 

Disse que eu deveria exercitar um jogo simples para entender sua maneira de pensar e depois eu poderia mostrar a ele onde estavam as incongruências entre o seu método de raciocínio e o pensamento médico. 

Eu sempre fora um curioso e o desafio parecia-me interessante. Todavia a motivação principal era poder chegar na cabeça do paciente e desta forma ter a chance de ajudá-lo.

Aceitei o desafio, mas propus a ele uma tarefa semelhante. 

Eu havia escrito um artigo para orientar os pacientes sobre a forma como os médicos investigavam e tratavam o câncer. Pedi que lesse o artigo e fizesse seus comentários críticos. 

Decidimos protelar a sequência daquela consulta por 48 horas. 

Eu entreguei o artigo para Teófilo e ele introduziu-me em um jogo pedagógico chamado a Torre de Hanói. 

  

Capítulo 3: Decifrando a Torre de Hanói

A Torre de Hanói é em um jogo pedagógico simples de complexidade crescente, ilustrativa de um importante campo da psicologia cognitiva chamado de resolução de problemas. Consiste em um método de raciocínio sequencial sustentado por um algoritmo.

A Torre de Hanói

François Édouard Anatole Lucas

Matemático Francês  

(1842 – 1891)

Ao terminar minhas atividades daquele dia, fui para casa estudar e praticar a Torre de Hanói. Teófilo havia me fornecido uma série de endereços eletrônicos onde eu poderia buscar a orientação. 

A Torre de Hanói consistia em um jogo simples composto por três pinos verticais e um número variável de arruelas, todas posicionadas em um dos pinos de baixo para cima na ordem decrescente de seus diâmetros, ou seja, da maior para a menor. 

O jogo consistia em mover todas as arruelas para qualquer um dos outros dois pinos, deslocando somente uma arruela por vez e nunca posicionando uma arruela de diâmetro maior sobre uma menor. O jogo podia ser bem simples quando composto apenas por três arruelas, mas adquiria complexidade crescente com o aumento progressivo do número de arruelas. 

O matemático francês François Lucas, desenvolvera uma fórmula simples [2n -1] para definir o número de movimentos necessários para solucionar o jogo, onde n representava o número de arruelas.  Na medida em que a complexidade aumentava, produzida pelo aumento do n, o processo decisório também se tornava mais complexo, exigindo algoritmos mais sofisticados. 

O jogo era semelhante ao do cubo articulado com lados de diferentes cores. No entanto, enquanto no cubo havia uma complexidade finita, na Torre de Hanói ela não tinha limites. 

Usando a fórmula de François Lucas, quando o jogo era feito com três arruelas, o calculo indicava que a solução mais ágil ocorreria com sete movimentos. Ao agregar apenas mais uma arruela, portanto partindo de um n igual a 4, como no desenho da figura 1, o cálculo conduzia para quinze movimentos e assim sucessivamente.

Teófilo tinha também fornecido um site onde eu poderia treinar a Torre de Hanói e passei a fazer o exercício até cinco arruelas. O jogo começara a ficar muito complexo, pois eu já estava trabalhando com 31 movimentos para solucioná-lo. 

Comecei a entender melhor como Teófilo pensava.

Embora parecesse simples, a Torre de Hanói exigia uma capacidade de abstração, antecipação de movimentos e visão contextual complexa, podendo ser representada por um algoritmos recursivo, conforme ilustrado na figura 2. 


O algoritmos recursivo, consistia em um artifício utilizado para a solução do problema, pois fragmentava uma decisão complexa em uma sequência de decisões mais simples, que no final culminavam com a solução do jogo.

Para entender o algoritmo recursivo, ilustrado na figura 2, era necessário atribuir para cada pino uma letra. Partindo do lado esquerdo de quem olha para a Torre de Hanói, o primeiro pino seria representado pela letra a, o segundo pela letra b e o terceiro pela letra c. Os círculos representariam as posições momentâneas ocupadas pelas arruelas nos pinos. Os traços que ligam os círculos indicariam os movimentos. 

O algoritmo da figura 2 fora construído para ilustrar a solução da Torre de Hanói com três arruelas. Usando a formula simples de François Lucas [2n -1] verificava-se que o número mínimo de movimentos para solucionar o jogo era de sete, justamente correspondendo ao número de traços encontrados em quaisquer um dos lados do triângulo maior. As letras dentro dos círculos eram indicativas das posições relativas ocupadas pelas arruelas nos pinos antes e após cada movimento. O algoritmo tornava-se ainda mais interessante, quando se observava que ele ilustrava o ponto de partida do jogo nos ângulos do triângulo maior.   

Este jogo ilustrava o processo decisório da psicologia cognitiva e potencialmente preparava os indivíduos para a resolução de problemas no mundo real. 

Passaram-se as 48 horas. 

Eu estava confiante por ter cumprido minha tarefa e aguardava com curiosidade os comentários de Teófilo. Tinha solicitado para minha secretaria agenda-lo para a último horário, pois assim não estaríamos pressionados pelo tempo e, portanto, com a disponibilidade necessária para estendermos o diálogo pelo período que fosse necessário. 

 

Capítulo 4: O processo decisório em medicina

Teófilo chegou rigorosamente no horário. 

Veio sozinho portando um rolo de cartolina. Após introduzi-lo na sala de consulta, iniciei descrevendo minha experiência com a Torre de Hanói. Disse que tinha progredido no jogo até cinco arruelas e descrevi minha visão sobre o algoritmo recursivo, salientando seu valor como recurso pedagógico. 

Ele surpreendeu-se com o meu desempenho e expressou seu contentamento. 

Passou, então a relatar sua impressão sobre o processo decisório em medicina. Disse ter gostado do material, especialmente porque a linguagem era clara e objetiva. Passara a entender melhor o raciocínio médico no diagnóstico e tratamento do câncer. Ficara entusiasmado com o tema a ponto de sugerir dois fluxogramas de decisões sequenciais. 

Naquele momento, eu percebi como era importante para aquele senhor de comportamento marcadamente crítico, compreender o que lhe estava sendo proposto pelos médicos, visando alcançar os objetivos de diagnosticar e tratar sua doença.

Teófilo abriu o rolo de cartolina que era composto por dois fluxogramas. 

O primeiro reproduzido na figura 3, ilustrava a integração de ações e profissionais médicos no diagnóstico e tratamento do câncer. Eu ficara agradavelmente surpreso com sua habilidade em decodificar a informação e solicitei que ele me explicasse o fluxograma.      


Teófilo revelou que teria baseado sua interpretação na leitura do tutorial e em sua recente experiência com o mundo da medicina. 

Apontando com uma caneta, foi mostrando as etapas do fluxograma. 

Começou dizendo que tudo iniciara com o médico assistente formulando uma hipótese diagnóstica e solicitando exames para fundamentá-la. Lembrou que seu clínico geral, ao suspeitar de câncer de próstata, pediu a dosagem de PSA. Quando o clínico percebeu que o exame estava alterado, fez o encaminhamento para um cirurgião urologista. Este, ao identificar o nódulo na próstata, solicitara uma biópsia. Ela consistia na retirada de material do nódulo prostático para enviá-lo a um patologista. Ele faria a identificação no microscópio de células alteradas na sua forma, por isso a denominação de diagnóstico morfológico.

Neste momento, Teófilo interrompeu sua explanação, olhou para mim e disse que lembrara de nosso primeiro encontro e da forma como eu havia conduzido o diálogo. Voltou a olhar para o fluxograma e apontou para o oncologista clínico, dizendo que entendera, o papel deste profissional. 

Disse que o oncologista, em conjunto com o cirurgião, iria revisar todos os exames e ao confirmar o diagnóstico, proceder o estadiamento. Este consistia fundamentalmente na avaliação da extensão do tumor, verificando se haveria condições de ressecabilidade, ou seja, se seria ou não possível retirar o tumor, cirurgicamente. 

Teófilo também entendera que outros profissionais médicos poderiam ser envolvidos no processo decisório, especialmente quando outras doenças estavam presentes (comorbidades). 

O conceito de operabilidade entrava justamente nesta fase, pois dizia respeito a avaliação do risco cirúrgico, em um paciente que estivesse fragilizado pela presença de outras doenças. 

Subitamente, Teófilo pressiona a caneta contra a cartolina e acompanha um trajeto ascendente, a esquerda de seu fluxograma, afirmando que as comorbidades poderiam reiniciar o ciclo com novas hipóteses e exames. 

Fizemos contato visual e Teófilo afirmou: “Doutor, não é fácil o seu trabalho. Ele pode ter um número imprevisível de variáveis.”

Aproveitando a oportunidade, respondi enfaticamente: “Este é o ponto central de distinção entre a ciência exata e a medicina.”

Continuei meu argumento, fazendo alusão a minha tarefa com a solução do jogo pedagógico da Torre de Hanói. 

Disse, que nós médicos, nunca sabíamos, no inicio de uma investigação diagnóstica, qual seria o valor do n. Consequentemente, não conseguíamos desenvolver um algoritmo recursivo como era proposto no jogo pedagógico. O máximo que se podia fazer era trabalhar com fluxos, exatamente como tinha sido sua proposta com a ilustração transcrita na figura 3.

Começáramos a aproximar nossas linguagens. 

Ele referiu que não ficara decepcionado com o pensamento médico. Ao contrário, passara a respeitar o desafio. Mostrara-se bastante motivado. 

Abriu uma outra folha de seu rolo de cartolina branca, onde estava representado o fluxograma ilustrado na figura 4. 

Afirmou, em um tom professoral, que ficara particularmente satisfeito em saber como os médicos classificavam o conhecimento. 

Sentira-se seguro ao constatar que existiam níveis de evidência e que as decisões de tratamento eram categorizadas. 

Circulou em seu fluxograma a importância do trabalho integrado de múltiplos profissionais, cada um em sua área de atuação, promovendo um esforço conjunto na busca do melhor plano de tratamento. 

Entendeu que tudo teria que passar pelo consentimento do paciente, o que implicava na necessidade de informá-lo com precisão. 

Finalizando, valorizou, enfaticamente, a visão abrangente do trabalho médico, pois além de reorientar a dinâmica familiar, abalada pela doença, considerava riscos futuros de suas intervenções, planejava a reabilitação e até orientava quanto ao aconselhamento genético.



Senti que havíamos entrado em sintonia. 

Eu havia decifrado o algoritmo da Torre e Hanói e Teófilo tinha desenvolvido um visão abrangente do trabalho médico.

 

Capítulo 5: Exames de diagnóstico e estadiamento

Aproveitei a oportunidade para retomar a investigação diagnóstica e prepará-lo para o enfrentamento do câncer. 

Disse que conforme ele já mostrara em seu fluxograma, haveria a participação de múltiplos profissionais médicos especializados. A integração deste grupo de trabalho de forma cooperativa e consensual seria fundamental para a obtenção dos resultados previstos na literatura. Todos exerceriam sua participação crítica em etapas sequenciais, que seriam igualmente importantes e indispensáveis. 

Idealmente, nenhum médico deveria investigar ou tratar o câncer sozinho. Habilidades e competências complementares eram necessárias para curar ou controlar a doença.

Constatamos que estávamos há cerca de duas horas conversando. 

Decidimos encerrar aquele encontro, compartilhando a satisfação de termos atingido sintonia de comunicação. 

Teófilo concordou em fazer a RNM da próstata solicitada pelo urologista e posteriormente marcaria com ele uma nova consulta.

Passara-se uma semana, portando a RNM da próstata, retornou a seu urologista. Ela havia confirmado a impressão previa da ecografia transretal, indicando que o tumor se estendera para além dos limites do tecido prostático. 

O urologista havia sugerido uma biópsia da próstata, que fora realizada com controle ecográfico. Explicara que iria aguardar o resultado da biópsia para fazer sua recomendação. 

Teófilo já entendera que os cirurgiões eram mais reservados em seus comentários e que ele teria que aguardar, apesar de estar ansioso para resolver o problema. 

Ele já tinha a informação de que o material da biópsia estava em um laboratório da confiança de seu cirurgião e que este material seria processado e analisado cuidadosamente por um patologista. 

O resultado do exame anatomopatológico foi encaminhado direto para o consultório do urologista, como é o habitual. O diagnóstico era de um adenocarcinoma, Gleason 8 (4+4). 

Esta escala de Gleason refere-se ao grau de diferenciação do tumor. Mostra, em escala crescente, o quanto as células do tumor alteraram sua forma, distanciando-se do aspecto normal das células da prostática. Um Gleason 8 indicava um tumor indiferenciado e, portanto, mais agressivo. 

O urologista havia chamado o paciente e explicado, detalhadamente, esta situação. Ele desaconselhara a cirurgia, pois o tumor encontrava-se em uma situação localmente avançada. 

Sugeriu que voltasse a conversar comigo.

Teófilo ligou-me naquele mesmo dia e eu solicitei que viesse ao meu consultório. 

Ele estava naturalmente preocupado, pois tinha a expectativa prévia de poder retirar cirurgicamente o tumor. Lembrando de seu fluxograma, conscientizou-se de que tinha uma doença irressecável. 

Expliquei que a cirurgia da próstata tinha seus riscos e que o beneficio era maior quando o tumor estava restrito ao tecido prostático. Disse que haveria a possibilidade de tratá-lo com radioterapia e que os resultados eram muito bons. 

Pedi permissão para examiná-lo. 

Ele concordou.

Tratava-se de um senhor de muito boa constituição física, com uma idade biológica que o remetia para dez anos menos, quando comparada a sua idade cronológica. Exceto pelo tumor na próstata, todo o restante de seu exame clinico era essencialmente normal. 

Cumprimentei Teófilo por sua condição clinica favorável. Disse que ele precisaria consultar com um colega meu especializado em radioterapia. Nós iríamos trocar informações e planejar seu tratamento conjuntamente. 

Aconselhei-o a fazer alguns exames adicionais, precedendo aquela consulta. Estes exames incluíam um RX de tórax, uma tomografia computadorizada do abdômen e uma cintilografia óssea. 

Retirei-me da sala de exame para que ele tivesse a privacidade necessária para vestir-se.

Quando retornei à sala de exame, questionou-me a respeito do objetivo dos exames. 

Expliquei que como ele tinha um tumor localmente avançado na próstata, um PSA de 19 ng/mL e um Gleason 8, teríamos que excluir a possibilidade de extensão do tumor da próstata para outras localizações. 

Interrompeu-me dizendo: “Eu entendo, isto faz parte do estadiamento do tumor. Precisamos ver o tamanho do problema. Precisamos excluir a possibilidade de metástases.”

Argumentei dizendo que era precisamente este o objetivo, mas que seu estadiamento já havia iniciado quando o urologista pedira a ecografia e a RNM da próstata. Estes exames já teriam nos dado informações muito importantes sobre a situação local do tumor. 

O que iríamos fazer com os exames adicionais seria avaliar os linfonodos que localizados no abdômen, junto aos grandes vasos, representavam a linha de disseminação linfática do câncer de próstata. Isto era proporcionado pela TC do abdômen. 

Adicionalmente, a cintilografia óssea era um exame muito sensível para detectar alterações no esqueleto. Expliquei que os ossos representavam a rota preferencial de disseminação do câncer de próstata por via sanguínea.

Informei que estes exames teriam que estar normais para podermos dar sequência ao plano de radioterapia. Solicitei que ele me trouxesse os exames assim que estivessem prontos para podermos discuti-los. 

 

Capítulo 6: O tratamento e a dinâmica familiar

Nesta etapa do atendimento, Teófilo já tinha mais intimidade comigo. Eu observara que ele teria vindo sozinho nas últimas consultas. 

Perguntei como estava sua família e se eles necessitavam de algum esclarecimento adicional. 

Teófilo fitou-me nos olhos e disse com uma atitude protetora: “Meu caro doutor, eu estou muito confiante na relação consigo e entendi, ao longo de nossos encontros, que existe um caminho a ser percorrido até termos uma definição do tratamento. Tem sido difícil, mas tomei a decisão de manter minha família fora desta fase de inseguranças. Eu já aprendi a conviver com esta doença e teria que promover este mesmo comportamento em uma família grande. Conversei longamente com Vilma e decidimos comunicar a família, somente quando tudo já estiver encaminhado. Acreditamos que isso irá poupá-los de um sofrimento desnecessário. Também achamos que seria muito desgastante para nós termos que explicar para eles cada etapa desta investigação. Sou um homem realizado, independente e amo minha mulher. Não quero interferir na vida de meus filhos e netos e nem quero que eles interfiram na minha.”

Eu passara a admirá-lo e aquela explicação era mais uma lição de vida que eu aprendera na convivência com meus pacientes. Concordei com Teófilo e reafirmei minha permanente disponibilidade para atendê-lo. 

Esta consulta fortalecera ainda mais a empatia e a cumplicidade na relação médico-paciente. Havia uma sintonia fina na relação entre duas pessoas com linhas de raciocínios muito diferentes, mas que buscaram, ativamente, o entendimento mútuo. 

Despedimo-nos, respeitosamente.

Alguns dias após, ao avaliar os exames, constatei que todos estavam normais. Comuniquei-o dos resultados e reiterei a necessidade da consulta com meu colega especializado em radioterapia. 

Teófilo não retardou em marcar a consulta. 

Eu tinha muita confiança no trabalho de meu colega e na qualidade técnica de seus equipamentos. Este sempre fora um aspecto crucial do relacionamento interdisciplinar. Toda a vez que eu indicava um colega, sabia que haveria corresponsabilidade e, portanto, eu precisava estar seguro da recomendação. 

Eu já havia enfrentado muitas situações semelhantes, conjuntamente com meu colega, orientando a radioterapia. Sempre conseguíramos conduzir bem os tratamentos de forma integrada.

Teófilo transferiu para o médico da radioterapia a mesma relação de confiança que desenvolvera comigo. 

Discutimos muitas vezes qual seria a melhor recomendação e concluímos por um tratamento combinado. O paciente faria um tratamento hormonal de bloqueio androgênico e iniciaria com a radioterapia. O tratamento teria uma intenção curativa. Comunicamos esta decisão ao cirurgião que concordou com a orientação e colocou-se a disposição para o atendimento de qualquer intercorrência urológica. 

O time estava escalado. 

Precisávamos orientar Teófilo sobre os riscos do tratamento. 

Ele já havia sido informado de como seria realizado o tratamento com irradiação. Fora explicado, detalhadamente, a necessidade de cumprir todas as sessões. A dose total seria fracionada em cinco sessões por semana em um total de sete semanas. O aparelho proporcionava a administração das doses de irradiação com uma técnica denominada de IMRT. Este era um recurso que proporcionava uma definição muito precisa dos campos de irradiação, diminuindo o risco de toxicidade sobre os tecidos sadios na pelve. Mesmo assim haveria a possibilidades de complicações como dermatite ou cistite de irradiação, inflamação dolorosa da mucosa do reto, incontinência urinária ou fecal e impotência sexual16.

Estes para-efeitos, normalmente, eram transitórios e cessavam com o término do tratamento. O médico da radioterapia havia solicitado que Teófilo voltasse ao meu consultório para conversar e programar o tratamento hormonal, antecipando que isso iria interferir no seu desempenho sexual.

Quando retornou ao meu consultório, veio acompanhado de Vilma. Ele solicitara que ela participasse desta consulta, pois teríamos que abordar um tratamento que dizia respeito a ambos.

Não tardei a explicar o bloqueio androgênico. 

Disse que o desenvolvimento do câncer da próstata era influenciado pela testosterona, o hormônio sexual masculino. A testosterona, por sua vez era produzida nos testículos sob a regulação de um eixo de controle hormonal constituído pelo hipotálamo e hipófise. Estas estruturas estavam localizadas no cérebro. O hipotálamo mandava sinais para a hipófise e esta para o testículo, determinando a síntese e secreção de testosterona. Quando os níveis de testosterona aumentavam muito, isto gerava uma inibição no estímulo hipotalâmico. 

Teófilo interrompeu-me e disse: “Eu compreendo, é um sistema de feedback, ou seja, a secreção destes hormônios funciona por autorregulação.”  

Eu compreendera que esta explicação era transparente, pois ele trabalhava com sistemas cibernéticos, onde estes controles são utilizados. Todavia tinha dúvida sobre o quanto Vilma nos acompanhava.

Passei a ser mais objetivo. 

Expliquei que a radioterapia iria destruir o tumor da próstata, na área delimitada pelos campos de irradiação. Embora estes campos englobassem todo o tumor visível, era necessário tratar as micrometástases, ou seja, células que, potencialmente, teriam se desprendido do tumor primário e migrado por via linfática ou sanguínea. Infelizmente, elas não eram visíveis pelos métodos de imagem disponíveis. Este objetivo seria atingido com a supressão da testosterona. 

Iríamos utilizar um medicamento chamado agonista LHRH, que iria produzir um bloqueio no eixo hipotalâmico-hipofisário, com consequente inibição da síntese de testosterona pelo testículo20. Ele seria administrado em associação com um medicamento anti-androgênico denominado flutamida21 por um período de dois meses antecedendo a radioterapia e durante todo o período de irradiação. Posteriormente, Teófilo continuaria apenas com o agonista LHRH. 

Vilma permanecera quieta, mas ouvindo com atenção. Teófilo, por sua vez, tinha acentuado seu comportamento inquisitivo. Olhou para mim, com uma certa indignação e afirmou: “Isto gera um problema sério, pois este tratamento funciona como se eu tivesse com a minha masculinidade ameaçada. Fico com a impressão que age como se eu não tivesse mais os testículos.” 

Expliquei que o agonista LHRH promovia uma orquiectomia química, ou seja, funcionaria precisamente como ele definira, produzindo o mesmo efeito da retirada dos testículos. Todavia, acrescentei que este efeito era totalmente revertido no momento em que pudéssemos parar a medicação. 

Disse que o tratamento consistiria em uma injeção subcutânea, administrada uma vez por mês por um período de dois anos. Em sequência, ela poderia ser suspensa e sua condição hormonal iria progressivamente voltando ao normal. 

Iríamos monitorar todo o tratamento utilizando o PSA, pois na medida em que deixasse de existir qualquer evidência de tecido prostático, normal ou tumoral, este marcador chegaria muito próximo do zero22.

Teófilo acompanhara o raciocínio com atenção e percebera que aquele era o momento oportuno para abordar a questão da sexualidade. Mantendo uma atitude de contrariedade e alternando o olhar entre mim e Vilma, afirmou: “Eu e minha mulher, apesar de vivermos cinquenta anos juntos, ainda mantemos uma vida sexual ativa. Não é tão frequente como quando éramos jovens, mas existe. Eu não me sinto bem com a ameaça de ficar impotente e acho que isto também tem a ver com Vilma.”

Neste momento, Teófilo fixou o olhar em Vilma, como que solicitando sua impressão. 

Vilma faz o seu primeiro e único comentário: “Nossa vida tem sido muito gratificante. Sempre tivemos um relacionamento saudável, afetivo e harmonioso. Meu amor por Teófilo é incondicional. Quando casamos eu sabia que iríamos conduzir nossas vidas juntos. Teófilo sempre soube disso e agora somente precisa da confirmação deste compromisso. Ele precisa entender que o sexo é para nós o resultado do afeto mútuo e que tudo o que fazemos juntos é sexual. Todo o carinho, consideração e cuidado que tem para comigo e vice-versa é sexual. Isto é algo que os homens demoram muito para entender, mas que as mulheres nascem sabendo e buscando. O conceito de sexo transcende o ato, ele faz parte do cotidiano das pessoas que se amam.” 

Teófilo transfigurou-se, sua agressividade inicial dera lugar a um sentimento de gratidão e conforto e com os olhos cheios de água e voz embargada olhou para mim e murmurou: “Vamos iniciar este tratamento.”

Eu testemunhara naquela consulta uma relação genuinamente afetiva e madura. Ambos expressavam amor, respeito e cumplicidade. Eu continuava aprendendo com aquele casal. Não tinha mais nada a acrescentar, Vilma teria resumido o objetivo daquele encontro. 

Encerramos a consulta.

Teófilo cumpriu rigorosamente todas as etapas do tratamento com uma intensidade de dose de 100%, ou seja, recebeu a totalidade da dose prescrita de irradiação, nas datas estipuladas. Isto permitia antecipar melhores resultados. 

Ele apresentou várias formas de toxicidade aguda, principalmente nas semanas finais da radioterapia. A pele do períneo ficou muito sensível e dolorosa, com algum grau de descamação. Teve irritação da bexiga e do reto, com dificuldade para urinar. Queixou-se de dor evacuatória e sentiu muita prostração durante todo este período. Porém, manteve-se sempre aderente ao tratamento, cumprindo todas as recomendações. 

Cerca de cinco semanas após o término da radioterapia, já estava praticamente assintomático. Sua dosagem de PSA avaliada três meses depois da radioterapia era de 0,01 ng/mL, confirmado o resultado esperado com a associação dos tratamentos.

Teófilo referiu impotência sexual, mantida pelo período de dois anos de utilização do agonista LHRH, mas enfrentou com resignação.

Hoje, passaram-se quatro anos e Teófilo está com a doença em remissão completa. Não faz mais uso de agonista LHRH. Continua saudável e aparentando uma idade biológica muito inferior a idade cronológica. Permanece com peso ideal, faz exercícios físicos regularmente, mantém o acompanhamento com todos os médicos envolvidos em seu tratamento e conserva seu comportamento inquisitivo. 

Vilma também se mantem saudável. 

Disseram ter retomado sua vida sexual ativa. 

Embora, eu não soubesse exatamente o que isto significava, optei por não questionar. 

O importante é que estavam felizes.

Teófilo continua colocando-me sob desafios matemáticos. 

Recentemente, apresentou-me os números de Fibonacci. Uma sequência de números definidos recursivamente por uma fórmula, que permite antecipar a distribuição dos galhos de uma árvore. 

Eu continuo explicando para ele a medicina. 

Nossos encontros são divertidos e descontraídos. 

Na última consulta, confessei que continuava exercitando a Torre de Hanói, mas que não conseguira passar do desafio das cinco arruelas.

Teófilo olhou para mim, com um ar debochado e disse: “Meu caro doutor, para resolver estas questões você precisa nascer amigo dos deuses.”

 

*  Todos os personagens são fictícios  

** Referências bibliográficas que podem ser encontradas no livro Conexão Anticâncer – as múltiplas faces do inimigo interno de James Freitas Fleck

 

Habilidades e Competências adquiridas na 3ª Simulação Clínica:

O Viés e a Cumplicidade

James Fleck: Conexão Anticâncer, Síntese da 3ª Simulação Clínica

Teófilo sempre olhara a vida sob o viés matemático. Era hígido e suas interfaces com a medicina tinham sido marcadas por dosagens laboratoriais, o que reforçara sua impressão de controle numérico da saúde. Subitamente, depara-se com uma dosagem de PSA alterada, mas de implicação diagnóstica imprecisa. Surpreende-se com a inconsistência do exame, tendendo a desacreditar da medicina. Felizmente, abre uma linha de diálogo com questionamentos objetivos, visando compreender o racional médico. 

Cria-se uma verdadeira disputa, marcada por visões distintas do mundo, mas não necessariamente conflitantes. Teófilo cria um desafio matemático, cuja solução está associada a um algoritmo recursivo. O médico percebe que precisa entender seu racional, mas exige que o paciente passe por um tutorial ilustrativo do raciocínio clínico. Ambos se empenham em suas tarefas e retardam a consulta por 48 horas. Um tempo que não comprometeria a saúde do paciente, mas que seria essencial para a aproximação das visões. 

Brota um respeito mútuo, gerando uma sintonia da comunicação. O médico, ingressa no mundo dos algoritmos que sustentam o racional das ciências exatas e Teófilo compreende a medicina como uma ciência de probabilidades, em que o jogo estatístico vem reforçado pelo trabalho cooperativo de múltiplos profissionais e é categorizado em níveis de evidência. 

A disputa inicial é convertida em uma atividade lúdica. Apesar de cada personagem ter um viés próprio e mantido, há uma identificação comportamental. Ambos são curiosos e abertos ao conhecimento. Embora sejam ciências distintas, há um compromisso permanente com o melhor encaminhamento e busca ativa pelo melhor desfecho. Surge a cumplicidade.

Percebe-se que a cumplicidade está fundamentada em admiração mútua. O médico tende naturalmente a buscar o vínculo com o paciente, avaliando sua condição física e perfil psicológico. Além de tecnicamente competente, precisa ser autêntico, despertando confiabilidade. O paciente precisa ser estimulado na construção do vínculo, o que é feito buscando pontos de identificação. Cria-se a empatia, que representa a base para o desenvolvimento da cumplicidade. 

A cumplicidade potencializa o resultado a ser obtido com a interferência médica sobre o curso da doença. O esforço passa a ser conjunto e sintônico. O mérito é compartilhado.