13ª Simulação Clínica

Recolhendo uma folha ao vento

 

Objetivo:

Exercício de medicina multidimensional na assistência a uma paciente com Câncer de colo uterino e transtorno bipolar 

James Fleck, Conexão Anticâncer, 13ª Simulação Clínica

 

Capítulo 1: O ensino médico 

Iniciara o mês de fevereiro. Era o mês de ingresso dos novos residentes no serviço de oncologia do hospital universitário. Tradicionalmente um mês tenso, pois os novos médicos estariam iniciando sua curva de aprendizagem. Recém-chegados, precisavam fazer uma rápida adaptação, conhecer a rotina assistencial, operar o sistema de prescrição e familiarizar-se com todo o gerenciamento eletrônico dos dados institucionais. 

Nós desfrutávamos de uma situação privilegiada, pois nossos residentes tinham como pré-requisito dois anos de experiência prévia em medicina interna, o que adicionado aos anos da graduação os colocava em uma condição de oito anos de formação. Eles já haviam sido expostos a todos os tipos de desafios assistenciais, incluindo trabalho em áreas de emergência e tratamento intensivo. Nos dois anos de treinamento em medicina interna, eles faziam rodízio por todas as especialidades clínicas, visando uma exposição abrangente.

O ingresso no serviço de oncologia era muito competitivo e todos passavam por criterioso processo de seleção, que julgava conhecimento, currículo e perfil comportamental. O programa envolvia três anos de formação adicional em oncologia e exigia tempo integral com dedicação exclusiva. Era um curso denso, pois além da carga assistencial, os residentes precisavam vencer um programa teórico de ensino especifico e apresentar uma monografia no final.

Laura, uma jovem médica de 27 anos, iniciara suas atividades como residente do serviço de oncologia há duas semanas. Possuía um perfil dinâmico, inteligente, atento, inquisitivo e profundamente humano. Ela tinha o compromisso de atender uma agenda de ambulatório diária e sete pacientes internados. Além disso, acompanhava nosso residente sênior nas avaliações de pacientes com câncer que chegavam a emergência do hospital.

Laura fizera uma adaptação rápida, pois embora sua formação em medicina interna tivesse ocorrido em um outro hospital da rede pública, ela tinha sido aluna de graduação em nossa universidade e já conhecia a rotina institucional. Estava autoconfiante e desempenhava suas funções com agilidade e precisão. 

Os professores do serviço funcionavam em um sistema de rodízio e eu era responsável pelo atendimento de todos os pacientes internados naquele mês. Fazia rounds diários com os residentes, onde discutíamos os casos clínicos, revisávamos exames diagnósticos, decidíamos tratamentos e manejávamos as intercorrências. Sempre fora um trabalho muito gratificante, pois sendo um hospital universitário público, aliava uma função social com uma atividade pedagógica. 

 

Capítulo 2: O atendimento na emergência

Estávamos em um round matinal quando fomos chamados na emergência do hospital. Interrompemos, temporariamente, aquela atividade eletiva e dirigimo-nos ao setor para falar com um dos médicos de plantão. 

A emergência sempre fora um setor muito tenso, pois o atendimento ocorria de maneira contínua nas 24 horas do dia e havia superlotação. 

Este era um problema de administração muito difícil, pois todos os pacientes, que ali chegavam, precisavam de atendimento imediato e a taxa de ocupação costumava ser, involuntariamente, extrapolada. Havia pacientes politraumatizados chegando em ambulâncias, paradas cardíacas sendo atendidas e medidas de suporte imediato sendo dispensadas em condições ainda precárias nas salas de consultas. 

Um segundo cenário era o grupo de pacientes que teriam sido mobilizados para uma sala de observação, onde em leitos ou cadeiras aguardavam a internação.

Ao chegarmos ao setor de emergência, fomos recebidos por um dos médicos plantonistas, que de uma forma sucinta, mas precisa nos passou o caso de Carol.

Tratava-se de uma jovem de 25 anos que ingressara na emergência há 12 horas com sangramento vaginal. Carol chegara em choque hipovolêmico, ou seja, uma situação clínica motivada por perda aguda de grande volume sanguíneo, em que a pressão arterial caíra a um nível que a colocara em situação de risco de vida. Ela recebera várias transfusões de sangue e havia sido transferida para a sala de observação, onde encontrava-se estável. Fora solicitada uma avaliação ginecológica que a despeito da condição inapropriada para o exame, havia constatado um tumor no colo uterino.

Carol viera para emergência acompanhada de uma vizinha de apartamento, que a socorrera por ocasião do sangramento. Ela não tinha vínculos com Carol e após introduzi-la no hospital, solicitara dispensa para tratar de sua vida. Havia sido deixado o número de um telefone para contato com um irmão de Carol, que morava em uma cidade próxima. Era o telefone de uma oficina de consertos de aparelhos eletrônicos. Fora deixado um recado, mas até o momento não houvera retorno. 

Fomos até a sala de observação. 

Carol ocupava o último leito, que ficava em um canto da sala. Uma cortina móvel isolava o pequeno espaço, o que lhe conferia boa privacidade. O médico plantonista introduziu-nos como a equipe que a iria cuidar, após a internação. 

Carol tinha um olhar graúdo, castanho claro, distante e indiferente. Era uma jovem com estatura mediana e constituição delicada, com proporções harmônicas e simetria quase perfeita. Tinha recebido um medicamento analgésico que continha codeína, um opioide oral, o que a deixara sonolenta. 

Ela não tinha conhecimento do tumor uterino e achamos que aquele não era o momento oportuno para abordar a questão. Lembrava vagamente do ocorrido e referiu de forma interrogativa que julgava ter sofrido um aborto. 

Laura tomou a iniciativa e explicou que a ecografia realizada há cerca de uma hora atrás não confirmava esta possibilidade, mas que mesmo assim fora colhido um exame de HCG para maior segurança diagnóstica. Tranquilizou-a dizendo que o sangramento cedera e que nós iríamos investigar melhor sua causa. 

Laura tinha feito a abordagem correta. 

Precisava mais tempo de contato com Carol para compreender melhor sua história, fortalecer a relação médico-paciente, bem como traçar seu perfil emocional, social e cultural. Posteriormente, Laura poderia escolher o melhor momento para informá-la sobre a doença. Embora fosse uma situação tensa, Laura teria que dominar sua ansiedade e respeitar o ritmo de ajuste adaptativo de Carol. Ambas eram muito jovens e com uma natural tendência ao imediatismo. Teriam que definir claramente seus papeis. Uma necessitava de cuidados e a outra seria a responsável por dispensá-los de maneira eficaz. 

Eu percebera que teria que ficar atento, monitorando esta relação. Embora não fosse o caso clínico ideal para Laura ter sua primeira exposição em oncologia, o destino as havia colocado frente a frente. 

Reforcei a Laura minha disponibilidade permanente para ajudá-la.

Ainda no setor de emergência traçamos um plano de diagnóstico para Carol. 

Programamos um nova avaliação com o setor de oncologia genital, visando um exame em condições mais favoráveis. Havendo confirmação da impressão inicial seria feita uma biópsia do tumor. Este material iria ser encaminhado ao laboratório para diagnóstico anatomopatológico e avaliação de expressão de papiloma vírus (HPV).

Carol era muito jovem e tinha um tumor localizado no colo uterino, sendo o HPV o principal fator de risco para o seu desenvolvimento. Sugeri fazer uma ecografia transvaginal, pois ela associada ao exame pélvico, daria uma ideia mais precisa da extensão local e regional do tumor. Adicionalmente, sugeri um RX de tórax, uma ecografia abdominal e um conjunto de exames de sangue. 

Eu havia tomado a precaução de não pedir exames que necessitassem de contraste radiológico, pois não dispúnhamos, ainda, naquele momento, do resultado da creatinina, um exame no sangue que permitiria julgar como estaria a função renal de Carol. 

O contraste iodado, usado na tomografia computadorizada, não é recomendado quando existe déficit de função renal. Um dos riscos de carcinoma do colo uterino localmente avançado é a invasão pélvica com obstrução ureteral bilateral, conduzindo a uma insuficiência renal obstrutiva. Carol havia urinado muito pouco naquelas últimas 12 horas. O mais provável é que isso fosse devido ao sangramento, mas parecia-me prudente considerar outras variáveis. 

Sugeri a Laura que considerasse incluir nos exames de sangue, além das contagens hematológicas e série bioquímica completa, uma avaliação para HIV. Um carcinoma do colo uterino em uma mulher tão jovem, sugeria uma vida sexual ativa com múltiplos parceiros e talvez imunidade diminuída. 

Sugeri que Laura explorasse esta questão na história clínica de Carol.   

Tínhamos algumas previsões de alta em leitos femininos e Laura tentaria, com a maior brevidade, transferir Carol da área de emergência para um leito na internação da oncologia. 

Voltamos para o round eletivo. 

 

Capítulo 3: A avaliação clínica e psicossocial de Carol

Passaram-se 72 horas. 

Carol já havia sido transferida para a internação e realizado todos os exames programados. Laura tivera o tempo necessário para colher a história clínica, fazer um exame físico completo e julgar os resultados dos exames. 

Iniciamos o round daquela manhã com caso de Carol. 

Laura tomou a palavra e começou a descrever a história clínica. 

Estava sensibilizada com o que ouvira. 

Carol teria abandonado a casa dos pais aos 16 anos. Eles viviam em uma cidade pequena e sua economia era baseada em agricultura familiar de subsistência. Carol tinha dois irmãos e todos ajudavam na atividade de plantio e colheita. Naquela ocasião, ocorrera uma grande enchente que destruíra toda a plantação e vitimara a família, pois sua casa teria sido inundada, obrigando-os a deslocar-se para um abrigo público. O irmão mais novo, com 13 anos, teria morrido por leptospirose na sua forma ictérica, chamada doença de Weil, o que produziu um sofrimento, descrito por Carol como insuportável. A família tentou recompor-se, mas lhes faltavam condições financeiras. O pai ainda tinha alguns créditos da venda da produção do ano anterior e comercializou com uma empresa de factoring, indicada por uma cooperativa. O dono desta empresa chamava-se Gustavo, um homem de 35 anos, bem-apessoado e de comportamento gentil, pelo qual Carol havia nutrido afeto. O pai não conseguira pagar a divida que tinha com Gustavo e Carol interferira favoravelmente naquela negociação. 

Gustavo tinha uma vida intensa e glamorosa. Na visão de Carol, era uma combinação de independência e aventura, pois viajava muito por vários centros urbanos, cidades que Carol desejava conhecer. Gustavo a convidara para ir ao Rio de Janeiro e Carol aceitara, abandonando a casa paterna sem nunca mais retornar. 

Logo, Gustavo revelara-se um homem sem escrúpulos, lidava com jogo e drogas e sua empresa de factoring era apenas de fachada. Carol fora introduzida no mundo das drogas, incluindo várias formas de perversidades, que ela não quisera detalhar. Passara a desfrutar daquele estilo de vida, pois considerava-se livre. Gustavo a havia apresentado para várias pessoas influentes no submundo do crime, porem Carol afirmara nunca ter participado em qualquer dos seus negócios. Ela apenas queria divertir-se e desfrutar dos benefícios que aquela vida lhe proporcionava. 

Quando Carol completara 20 anos, Gustavo fora preso em São Paulo, fazendo com que ela rompesse a relação. Carol havia guardado algum dinheiro. Embora usasse drogas, disse nunca ter sido viciada. Passara a relacionar-se com outros homens. Disse ter sempre de três a quatro parceiros fixos que a ajudavam financeiramente. Nunca se considerou uma prostituta, mas aceitava aquela situação de troca, pois lhe parecia cômoda e conveniente. 

Ela novamente sentira-se livre, pois seus parceiros eram casados e não opinavam em seu estilo de vida. Por duas vezes ficara grávida e submetera-se a abortamentos clandestinos. Paradoxalmente, parecia ter uma vida saudável, pois alimentava-se bem e fazia exercícios físicos. Era vaidosa e sonhava com a possibilidade de vir a ser modelo fotográfico. Um de seus companheiros era publicitário e a estimulara neste sentido. Todavia, este sonho nunca se concretizara. Carol não era persistente. Não tinha objetivos definidos. Como ela mesma expressara, iria para onde a vida a levasse, como uma folha ao vento. 

Há dois anos, envolvera-se com um empresário do sul e mudara para Porto Alegre, onde mantinha o mesmo estilo de vida. Ela não estava vinculada afetivamente, a mudança ocorrera por conveniência. Ele a entendia, aceitava sua maneira solta de viver e proporcionava-lhe conforto. Ela usava o sexo como instrumento de troca.

Interrompi o relato e perguntei a Laura como teria conseguido colher esta história com tantos detalhes.

Laura informou que fora procurada pelo irmão de Carol. Ele havia sido localizado por uma assistente social e ambos a ajudaram a ter esta visão mais compreensiva da situação. Disse também ter estabelecido uma boa relação com sua paciente e que Carol relatava sua história de uma forma bastante descontraída e transparente. Laura afirmou ter, em alguns momentos, a impressão de que Carol orgulhava-se de seu comportamento, especialmente porque pensava exercer plena liberdade na condução de sua vida.

Perguntei a Laura como era a relação de Carol com a família.

Laura informou que Carol mantinha contato eventual com o irmão e tinha boa relação com ele. Todavia, nunca mais procurara os pais e solicitara que eles não fossem comunicados de seu problema atual.

Pedi que Laura relatasse os resultados dos exames. 

Informou que as contagens hematológicas se mantiveram estáveis após as transfusões e que a bioquímica do sangue era normal. Sua creatinina era de 1,1 mg/ dL, o que indicava uma função renal preservada. Também não havia alteração no RX de tórax e o HCG excluía gestação. 

A oncologia genital confirmara a presença de um tumor no colo uterino, também identificado na ecografia transvaginal. Era um tumor de aproximadamente 5 cm de diâmetro, que se estendia para a cúpula vaginal e comprometia o paramétrio, uma estrutura de sustentação do útero. A combinação dos achados do exame clínico e da ecografia revelaram que o tumor, apesar de grande não estava fixado a parede pélvica. A biópsia mostrara um carcinoma epidermóide e havia sinais indicativos de contaminação por HPV. 

A ecografia abdominal indicara que o fígado estava normal e as cavidades renais não estavam dilatadas, sugerindo não haver sinais obstrutivos urinários, provocados pelo tumor. Laura mencionou não estar disponível o exame de captação hibrida para avaliar o subtipo do HPV e que a avaliação para HIV fora negativa.

Expliquei a Laura que os subtipos mais frequentes de HPV associados ao câncer do colo uterino seriam o 16 e o 18, mas que, neste momento, a captação híbrida não iria interferir na nossa tomada de decisão, uma vez que a doença já se estabelecera e tinha inclusive uma característica localmente avançada. 

Nosso próximo passo seria uma tomografia computadorizada do abdômen e da pelve. Como Carol tinha função renal preservada, estávamos autorizados a usar um exame contrastado que proporcionaria melhor condição de definição. Precisávamos avaliar os linfáticos da pelve e os da região para-aórtica.

Perguntei a Laura o que ela havia informado para Carol.

Laura respondeu que a havia comunicado sobre a existência de um tumor no útero. Disse que Carol reagiu com uma certa indiferença, não fazendo comentários. Todavia, com uma atitude de agressão contida, pedira para que a deixasse sozinha por um tempo. 

Laura concordou.

 

Capítulo 4: O planejamento da intervenção oncológica

Era uma situação difícil. Uma doença grave, um uma jovem mulher de 25 anos que tinha passado, prematuramente, por grande sofrimento emocional. Havia sinais de desagregação e conflito familiar, problemas com autoestima, inversão de valores e desajuste social. 

Sugeri a Laura uma consultoria com a psiquiatria. 

Expliquei que a indicação da avaliação psiquiátrica não era motivada pela presença do câncer, mas, fundamentalmente, pelo contexto em que este diagnóstico estava sendo feito. 

Laura, olhou-me aliviada e concordou. 

Pediu-me que após o round eu a acompanhasse em uma visita ao leito de Carol.

Quando chegamos ao leito de Carol ela estava sentada, com uma expressão vazia, lendo uma revista. Usava uma camisola translúcida, inapropriada para um ambiente hospitalar e expressava uma atitude sutilmente sedutora. Nos recebeu com cortesia, mas havia uma barreira afetiva. Não tinha constrangimento em falar sobre qualquer assunto relacionado a sua doença ou condição de vida, mas a impressão era de que tudo ocorria num nível muito superficial. 

Eu ficara com a sensação de que Carol ligara o piloto automático na condução de sua vida. Tudo fluía no mesmo ritmo e intensidade, não se permitindo variações de humor. 

Carol havia absorvido o diagnóstico do câncer. 

Comentou que seu estilo de vida sempre envolvera riscos. Estava aliviada por não ter SIDA, o que na sua ótica conduziria a um sofrimento maior do que o do câncer. 

Perguntou se valia a pena tratar sua doença ou se ela deveria preparar-se para morrer.

Laura estava chocada com a forma direta e impassível com que Carol fizera esta abordagem e deixou que eu respondesse. 

Disse que precisaríamos, ainda, fazer alguns exames, mas que eu me comprometia a fornecer esta resposta para ela assim que tivesse os resultados. 

Expliquei que nós iríamos lutar pela vida e que ela deveria fazer o mesmo. A doença era grave e precisávamos juntar forças. Todos os recursos disponíveis na medicina iriam ser usados para salvá-la. Expliquei que Laura e eu trabalharíamos juntos. 

Informei que tomara conhecimento de todo o seu sofrimento passado, mas que ela sendo jovem e recuperando sua saúde, poderia repensar a vida. 

Carol sensibilizou-se e pela primeira vez seus olhos lacrimejaram. 

Mesmo assim engoliu as palavras e disse simplesmente: Está bem!

Recebemos os resultados das tomografias. 

Não havia sinais de comprometimento dos linfonodos pélvicos ou para-aórticos. Os rins estavam bem, não demonstrado sinais de invasão pélvica dos ureteres. O tumor media 5.6 cm no maior diâmetro e comprometia o paramétrio. Todos os demais órgãos da pelve e abdômen estavam livres de tumor. 

A doença de Carol foi classificada como estádio IIB pelo critério da FIGO (Fédération Internationale de Gynécologie et d’Obstétrique).

Pedi que Laura convocasse uma reunião interdisciplinar, envolvendo as equipes de oncologia genital, oncologia clínica e radioterapia para planejarmos o tratamento de Carol. 

Orientei Laura para a leitura de cinco estudos clínicos cooperativos internacionais, seguida de uma metanálise, o que daria embasamento para nossas decisões. 

A reunião ocorreu em 48 horas. 

Laura havia revisado e tabulado os dados dos seis estudos internacionais. 

Houve concordância de que a doença de Carol era localmente avançada e que ela não deveria ser tratada com cirurgia exclusiva. 

Optamos por tratamento combinado com radioterapia e quimioterapia. 

A intenção seria curativa e a probabilidade de sucesso estaria na casa dos 70%. 

A administração concomitante de quimioterapia e radioterapia aumentaria a chance de controle local e de sobrevida. O tratamento seria ambulatorial e Carol teria que submeter-se a ciclos semanais de quimioterapia, durante todo o período de duração da irradiação pélvica. Seria um tratamento tóxico e exigiria de Carol forte adesão e disciplina. Ela teria que ser mantida sob supervisão continuada, não podendo ausentar-se de qualquer uma das sessões programadas.

Eu temia pela condição emocional e social de Carol. 

Reforcei com Laura a necessidade de apoio do serviço social do hospital e a importância da avaliação psiquiátrica. O serviço social ajudaria a promover a melhor condição de instalação domiciliar de Carol. Iria envolver a família no suporte logístico, garantindo o cumprimento da programação de tratamento e acompanhamento. A avaliação psiquiátrica permitiria julgar com mais precisão as condições emocionais para o enfrentamento agudo da doença e do tratamento.

Fomos ao quarto de Carol para comunicá-la das decisões tomadas. 

Ela sentia-se melhor. Havia recebido a visita de um residente do serviço de psiquiatria e informou que teriam conversado pelo período de duas horas. Mostrou-se satisfeita com a consulta psiquiátrica, mas disse que precisava saber se iria sobreviver ao câncer. 

Laura explicou detalhadamente o tratamento e disse que Carol teria uma boa chance de cura. Mas, mencionou a importância da sua colaboração e disciplina.

Carol manifestara-se surpresa. 

Embora ela tentasse expressar permanente autocontrole, eu percebia uma instabilidade subjacente. Eu já havia notado uma certa imprevisibilidade quanto ao comportamento esperado. Eu tinha a sensação de que ela vivera, até aquele momento, uma sentença de morte e a enfrentara com uma alternância de revolta e resignação. 

A perspectiva de um tratamento curativo interferira com sua visão prévia. Parecia haver uma indefinição interna sobre qual seria a verdade. Sua reação imediata sugeria que havia prevalecido a perspectiva curativa, pois Carol, desta vez, mostrara-se mais receptiva e cooperativa. 

Teríamos que aguardar a resposta da avaliação psiquiátrica.

Laura fez contato e combinou uma reunião com o residente e com o professor da psiquiatria responsável pela consultoria. 

 

Capítulo 5: A abordagem biopsicossocial 

Chegamos no serviço de psiquiatria na hora combinada e ambos já nos esperavam. 

Laura relatou novamente o caso de Carol, acrescentando as definições mais recentes sobre a extensão do câncer, intenção curativa do tratamento e prognóstico. Descreveu, detalhadamente, o esquema de combinação de quimioterapia e radioterapia e deu-lhes uma ideia da toxicidade e duração esperada do tratamento. 

Eu já conhecia, há muitos anos, meu colega consultor da psiquiatria, respeitava seu conhecimento e habilidade na condução de situações difíceis. Ele havia conversado longamente com seu residente e formulara uma hipótese diagnóstica. 

Julgara que Carol tinha um transtorno bipolar e assumira como pertinente e oportuna a participação da psiquiatria. Disse que a história pregressa daquela jovem mulher representava uma ameaça ao sucesso do tratamento. Manifestou a intenção de acompanhar o residente na próxima entrevista, visando buscar mais elementos para confirmar sua hipótese. Sugeriu que não retardássemos o início do tratamento do câncer, pois eles permaneceriam vigilantes sobre o equilíbrio emocional de Carol e a eventual necessidade de interferência medicamentosa.

O transtorno bipolar manifesta-se por oscilações cíclicas de humor. O paciente passa de um quadro depressivo, desinteressado e triste para uma condição de humor oposta, definida como maníaca, caracterizada por euforia, elevação de autoestima e agitação psicomotora. A duração de cada fase costuma ser variável, desde uma semana até meses. Podem ocorrer períodos de relativa normalidade entre as fases. 

O transtorno bipolar não deve ser confundido com as oscilações normais de humor que todas as pessoas apresentam frente a situações de gratificação ou adversidade. A mudança de humor ocorre sem causa aparente e mantém-se por um tempo prolongado. As fases maníaca e depressiva podem ter intensidade variável, tornando o diagnóstico mais difícil quando as manifestações de alteração do humor são muito sutis. 

Trata-se de um transtorno que pode não comprometer o livre arbítrio quando leve ou adequadamente tratado, porém em situações extremas de mania ou depressão há necessidade de interferência familiar.

Comentei estes aspectos com Laura e decidimos contatar o serviço social. 

Fomos recebidos por uma jovem assistente que já fizera várias entrevistas com Carol e que localizara o irmão. O irmão chamava-se Marcus e tinha 30 anos. Era casado e sua esposa esperava o primeiro filho. Trabalhava como técnico em eletrônica e morava em uma cidade próxima. Tanto ele como a esposa, já haviam visitado Carol e colocaram-se a disposição para apoiá-la em todas as suas necessidades. Segundo a assistente social, a relação entre os irmãos era boa, embora Carol nunca tivesse permitido, previamente, muita proximidade. Marcus mantinha o vínculo com os pais, que através dele obtinham notícias sobre a vida de Carol. Ele informara que a despeito da ruptura precoce ocorrida na relação de Carol com os pais, estes não guardavam rancor, mas respeitavam o distanciamento determinado pela filha. Carol reiterara à assistente social que não comunicasse nada aos pais, mas aceitava a participação e interferência de Marcus. 

Havia algo traumático e não resolvido na relação de Carol com os pais, que até aquele momento, ninguém conseguira avaliar. Todavia, eu me sentia aliviado em saber que Carol aceitara a interlocução com o irmão. 

Marcus manifestara o desejo de conversar com os médicos para inteirar-se da situação clínica de Carol. 

O serviço social incumbira-se de viabilizar este encontro.

Normalmente, o tratamento combinado do câncer do colo uterino com quimioterapia e irradiação pode ser feito de forma totalmente ambulatorial. Mas, no caso de Carol havia agravantes. Ela tinha apresentado um sangramento intenso, associado a instabilidade hemodinâmica e havia indefinição de seu quadro emocional. Combinei com Laura de mantermos a paciente internada pelo tempo que fosse necessário para planejar e iniciar o tratamento, bem como completar a avaliação psiquiátrica e o programa de assistência social.

Carol fora encaminhada ao serviço de radioterapia, onde iniciara o planejamento. Consistia em uma série de exames de imagem, combinados a um programa de software para a definição dos campos e doses de irradiação. Adicionalmente, passaria por um simulador que iria avaliar a adequação da programação, antecedendo o efetivo inicio da radioterapia. 

A primeira fase de seu tratamento consistia em irradiação externa, dirigida a pelve com frações diárias, cinco dias por semana por um período de seis semanas. Nesta fase, Carol receberia quimioterapia com uma droga derivada de platina, semanalmente. 

Em uma segunda fase, Carol teria que ser tratada com braquiterapia, onde a irradiação seria administrada pela colocação interna de um material radioativo em contato direto com o tumor.

Paralelamente, mantinha-se o acompanhamento psiquiátrico. 

Foram feitas mais duas entrevistas com Carol. 

Meu colega consultor da psiquiatria chamou-nos para nova reunião. 

Eu já tinha consciência do quanto era desafiador e trabalhoso lidar com pacientes que apresentavam distúrbios psiquiátricos. Reiterei a Laura a necessidade de permanecermos sempre disponíveis para a atividade interdisciplinar no caso de Carol. 

Era uma jovem mulher, com câncer localmente avançado no colo uterino e com antecedentes de desajuste psicossocial. Seu tratamento oncológico era complexo na logística, precisava de suporte familiar e nós teríamos que conhecer detalhadamente o diagnóstico emocional de Carol. Esta era uma situação em que as variáveis orgânicas e psíquicas estariam completamente imbricadas. 

Fomos para a reunião com a psiquiatria.

Nossos colegas da psiquiatria já tinham uma opinião diagnóstica. 

A impressão inicial fora confirmada. Carol apresentava um distúrbio afetivo bipolar do tipo I, chamado distimia, em que predominava o comportamento maníaco. Era uma situação grave, que iria requerer interferência medicamentosa, associada a um atendimento abrangente biopsicossocial. Isto implicaria em supervisão médica, controles laboratoriais e participação em um programa educativo psicológico voltado para a paciente e familiares. Haveria necessidade de conscientizar a paciente e a família sobre os cuidados e riscos associados ao diagnóstico do distúrbio bipolar. 

A história de Carol tinha mais uma agravante. 

Era algo constrangedor, que ela nunca havia revelado antes. Carol havia sofrido abuso sexual por parte do pai. O irmão menor, que morrera de leptospirose, também sofrera abuso sexual paterno. Segundo Carol a mãe tinha conhecimento desta situação, mas se mantivera conivente com o comportamento do marido. Por ocasião da morte do irmão, Carol revoltara-se e abandonara definitivamente os pais, nunca mais permitindo reaproximação. Ela também responsabilizava o pai pela morte do irmão. Justificava dizendo que o pai nunca fora provedor das necessidades mínimas dos filhos e que as más condições em que viviam eram o resultado do descaso paterno. Ela sabia que a leptospirose era transmitida por roedores e que havia risco em situações de enchentes. Porém na sua ótica, o pai era pior do que o rato. 

Segundo os psiquiatras, Carol contara esta história com uma atitude eufórica, revoltada e vingativa. Dissera que, por muito tempo, ela guardara esta informação, pois teria vergonha de falar. Dissera que agora que poderia morrer de câncer, ela perdera a inibição. Reiterara que não iria perdoar os pais e não permitiria a intervenção dos mesmos. Explicara que Marcus, o irmão mais velho, passara ileso por tudo isso e que também nunca tivera conhecimento do comportamento doentio dos pais. Porém, em uma de suas mais recentes visitas, Carol revelara esta situação para Marcus.

Concluímos aquela reunião com a decisão conjunta de iniciar, imediatamente, o tratamento psiquiátrico medicamentoso de Carol, reforçando a necessidade de contato com Marcus.

Quando se viabilizou o encontro com Marcus, ele estava nitidamente comovido com tudo que tomara conhecimento nos últimos dias. Manifestou seu desejo de ajudar Carol. Revelou uma certa ambivalência afetiva ao falar dos pais, mas sugeriu que não os envolvêssemos naquela situação. Sentia-se despreparado para lidar com tantas variáveis ao mesmo tempo. Ele tinha o seu trabalho, a mulher esperava um filho e a irmã estava seriamente doente. Ele era a única interface familiar plausível. Assumira a responsabilidade e era genuíno no seu afeto para com a irmã.  

Laura explicou a Marcus a doença orgânica de Carol, a intenção curativa do tratamento e os cuidados domiciliares necessários. O residente da psiquiatria descreveu as consequências psicológicas e sociais do transtorno afetivo bipolar, tanto para a paciente como para a família. Disse que além de Carol receber um tratamento medicamentoso, haveria uma abordagem psicológica e pedagógica destinada tanto à paciente como aos familiares. 

Era importante que tanto Carol como seu irmão entendessem que o transtorno afetivo bipolar poderia ser recorrente. A estratégia do tratamento medicamentoso estaria voltada para o controle da fase aguda. Em sequência, o foco seria a estabilização do humor e as medidas voltadas para evitar a recorrência, independentemente, de ser maníaca ou depressiva. Teria que haver uma abordagem biopsicossocial, através de uma programação colaborativa. 

A recomendação da psiquiatria sintonizava perfeitamente com a forma como eu costumava conduzir os cuidados destinados aos pacientes com câncer. Na verdade, esta era uma tendência que deveria se estender para todas as especialidades médicas. A abordagem dita colaborativa, envolvia o paciente e a família e os retirava da posição de contemplação passiva. 

Tanto o paciente como os familiares teriam que buscar informação e participar ativamente no processo de tratamento e reabilitação. Evidentemente, no caso do transtorno bipolar, a participação ativa do paciente ficaria restrita aos momentos adequados para o exercício do livre arbítrio, isto é, fora das fases agudas. Da mesma forma, no diagnóstico e tratamento do câncer, a participação efetiva do paciente era determinada por sua volição e estabilidade emocional. 

 

Capítulo 6: Atendimento interdisciplinar

Carol estaria ingressando no tratamento oncológico e psiquiátrico simultaneamente. Curiosamente, ambos eram guiados pela mesma visão colaborativa biopsicossocial. O médico desempenharia uma função técnica e de orientação. O paciente precisaria conhecer sua doença e respeitar as recomendações, agindo com disciplina e responsabilidade. A família teria um papel fundamental na vigilância sobre a adequação comportamental do paciente e resultados efetivamente alcançados.   

O caso de Carol era também um desafio técnico, pois havia a necessidade de vigiar a interação medicamentosa. Carol estaria recebendo, associada a radioterapia, uma droga potencialmente nefrotóxica chamada cisplatina, que poderia eventualmente interferir com os níveis plasmáticos das medicações necessárias para o tratamento do transtorno bipolar. 

A necessidade de controle seria permanente. 

O tratamento do câncer não poderia sofrer redução de dose, considerando sua intensão curativa. Paralelamente, os medicamentos usados no controle do transtorno bipolar eram indispensáveis, pois somente com estabilidade emocional, Carol poderia manter-se aderente ao tratamento. Felizmente, o hospital dispunha de todos os recursos laboratoriais para monitorarmos esta situação.

Todos estes aspectos foram detalhadamente explicados para Carol e para o irmão. 

Marcus entendeu perfeitamente. 

Embora Carol mantivesse uma atitude coerente e cooperativa, tínhamos dúvidas sobre o seu nível de compreensão. 

Ela apresentava sinais de hiperatividade, estava dispersiva e tinha insônia. 

Manifestava, reiteradamente, sua revolta e superestimava sua capacidade de superação do sofrimento. Sua autocrítica permanecia distorcida e mantinha um comportamento sedutor inadequado. Porém, havia sinais subjacentes de bom entrosamento com a equipe multidisciplinar responsável por sua assistência.

Iniciamos todos os tratamentos programados.  

Carol seria mantida hospitalizada durante o tratamento da fase aguda do transtorno bipolar. Paralelamente, iniciaria com a combinação de quimioterapia e irradiação pélvica. 

Fora administrada uma dose oral de 900 mg de carbonato de lítio, buscando a estabilização do humor. A expectativa era de que conseguiríamos superar a fase aguda em um período de aproximadamente dez dias. Estavam programadas dosagens séricas de lítio, para ajustar as doses. Cuidados especiais de enfermagem e nutrição permitiriam avaliar permanentemente a condição de hidratação de Carol. O lítio poderia conduzir a desidratação, o que representaria um risco adicional de toxicidade renal com o uso da quimioterapia baseada em cisplatina. Dosagens eletrolíticas, avaliação de função renal e provas funcionais da tireoide seriam colhidas com regularidade.

Carol mostrara-se aderente a todas as recomendações e fora progressivamente melhorando em sua condição emocional. Foram necessários alguns ajustes na dosagem do lítio, como consequência das interações medicamentosas. O parâmetro era a dosagem de lítio no sangue, mantida no valor de 1.0 mEq/L. Embora procurássemos minimizar o uso de outros medicamentos, Carol estava sendo submetida a um tratamento oncológico tóxico e os para-efeitos exigiam tratamento de suporte. 

Três semanas após sua internação, Carol estava em uma nova condição de equilíbrio. Apresentava um humor mais estável, diminuíra a hiperatividade, melhorara seu nível de atenção em vigília e tinha um sono de melhor qualidade e duração. 

Revelara para Laura que lembrava de tudo que acontecera desde sua chegada ao hospital, porém tinha dificuldade de organizar os fatos na sequência temporal. Havia uma sensação de distanciamento em relação a sua vida passada. 

Sentia-se diferente, mais leve. 

O serviço de psiquiatria iniciara o preparo de Carol para a alta hospitalar. 

Ela seria mantida com a mesma dose de carbonato de lítio por oito semanas. Após iniciaria a fase e manutenção, fazendo a profilaxia da recaída. Para esta fase seria sugerida uma associação de lítio com carbamazepina. Esta associação, além de ser sinérgica, permitiria uma redução de doses, diminuindo a frequência dos controles laboratoriais. 

O tratamento do câncer teria uma duração total de oito semanas. A fase esperada de maior toxicidade corresponderia as quatro ultimas semanas. A razão era devida ao efeito acumulativo da dose de irradiação, potencializada pela quimioterapia. Estávamos nos aproximando deste período e felizmente iriamos enfrentá-lo com maior segurança. Carol já estaria desfrutando de uma condição emocional mais favorável. Poderia entender melhor os riscos e manter-se aderente as recomendações.

Promovemos uma reunião interdisciplinar. 

Laura fez um relatório da evolução clínica de Carol e o residente da psiquiatria, utilizando um sistema multiaxial, mostrou uma visão compreensiva sobre o diagnóstico do transtorno bipolar, valorizando componentes pessoais, familiares e sociais. Achamos que aquela era a oportunidade de iniciar a abordagem colaborativa biopsicossocial. 

A reunião contava com a participação dos serviços de enfermagem, assistência social e psicologia. Meu colega, professor de psiquiatria, descreveu sua experiência em lidar com um grupo de pacientes que superaram a fase aguda do transtorno bipolar. Valorizou a importância de um programa psicopedagógico destinado aos pacientes e familiares. Disse haver uma significativa diminuição das recaídas, quando os pacientes e familiares eram conscientizados da instabilidade do quadro afetivo e da necessidade de manter aderência a medicação. Tanto o paciente como a família eram estimulados a conhecer a expressão clínica da doença, as limitações quanto ao estilo de vida e os sinais sugestivos de recidiva. Ressaltou a necessidade de manter vigilância e disponibilidade permanente. 

Soava como música nos meus ouvidos. Nós iriamos trabalhar em sintonia, pois esta era exatamente a conduta recomendada no acompanhamento de pacientes com câncer. Não bastava curarmos o câncer do colo uterino de Carol, tínhamos que orientá-la para uma mudança comportamental. 

Desenvolvemos um programa de educação para afastá-la dos fatores de risco, promovendo autocuidado e melhorando a autoestima. Conscientizamos Carol da necessidade de estabelecer e manter vínculos, com a equipe assistencial. Marcus assumira seu papel e convidara Carol para morar em sua casa, pelo menos durante o período de maior fragilidade física e emocional de suas doenças. A esposa de Marcus compreendera a situação e estava motivada para ajudar. Foram orientados a atribuir tarefas simples para Carol, como manter sua higiene pessoal, arrumar suas roupas, compartilhar com eles das atividades rotineiras da casa. Marcus e sua esposa deveriam checar com Carol, diariamente, a tomada das medicações, porém sem subestimá-la no exercício da autodeterminação. 

Precedendo a alta de Carol, combinei com Laura a confecção de um calendário que continha todas as datas agendadas para as consultas nas diferentes especialidades e encontros com o grupo de apoio a pacientes com transtorno bipolar. Salientamos para Carol e Marcus, que independente das datas agendadas, o serviço de oncologia mantinha um atendimento diário às intercorrências e que eles deveriam recorrer a esta possibilidade em qualquer situação de insegurança.

Carol recebeu alta hospitalar com o humor estável e essencialmente assintomática no que se referia ao tumor do colo uterino. Estava na quarta semana de tratamento e com boa tolerância.  

Terminara o mês de fevereiro. 

A preceptoria do hospital universitário funcionava em sistema de rodízio e eu iria trocar de atividade. Laura permaneceria, sob nova orientação, atendendo os pacientes internados. 

Antes de transferir esta responsabilidade para meu colega, programei uma reunião com Laura para fazer um feedback. 

 

Capítulo 7: Neutralidade e Sensibilidade

Conversamos sobre todos os casos atendidos no período, repassamos o racional das condutas e programamos o acompanhamento ambulatorial dos pacientes que teriam alta hospitalar. 

Eu supervisionava uma agenda ambulatorial que ocorria regularmente nas quintas-feiras pela manhã. Laura iria manter o acompanhamento de nossos pacientes, programando seus atendimentos para esta agenda sob minha supervisão direta. Este formato, idealizado pelo serviço de oncologia, visava manter os vínculos e referenciais dos pacientes. 

Fora um mês particularmente tenso e trabalhoso. Laura mantivera sob sua responsabilidade uma média de dez pacientes internados, o que a colocara um pouco acima do teto programado. Cumprira um programa assistencial e educacional de doze horas por dia, que incluíra o atendimento a pacientes internados, acompanhamento de uma agenda ambulatorial, frequência as atividades teóricas, rounds e reuniões interdisciplinares para discussão de casos clínicos. 

Laura tivera um excelente rendimento apesar dos vários desafios enfrentados. Ela era uma jovem médica, genuinamente vocacionada, que cumprira suas funções com o esperado comprometimento técnico e humano. 

Desabafou dizendo ter sido o período mais estressante de sua vida profissional. Porém, sentira-se gratificada. Tínhamos formado um bom time e o diálogo fora contínuo e proveitoso. Havíamos compartilhado da responsabilidade assistencial aos pacientes, o que consolidara nosso entrosamento. 

Laura valorizou, especialmente, o aprendizado pelo exemplo. Este sempre fora um dos fundamentos no ensino da medicina. Não bastava ter e divulgar o conhecimento. Era necessário agir, participar diretamente no cuidado do paciente e compartilhar os desafios, criando modelos assistenciais. 

Eu estava por encerrar a reunião, quando Laura solicitou para falar sobre sua experiência com Carol. 

Disse ter sido o caso clínico mais desafiador do período. 

Laura já tinha bastante liberdade de comunicação comigo e sentia-se confiante para expressar suas inseguranças e fragilidades. Revelou que sofrera com um sentimento de identificação. Elas tinham idades próximas e enfrentavam as mesmas expectativas e pressões sociais. Laura fora tocada pelo sofrimento de Carol. Manifestou que reconhecera através de Carol a hipocrisia da sociedade. Carol fora vitimada desde a infância. Manifestara uma doença emocional grave, sendo usada como objeto de expurgo social. Carol negara seu sofrimento, entregando-se a um falso conceito de liberdade, que na visão crítica de Laura, dissimulava sua escravidão à história de maus tratos e perda da autoestima. 

Laura expressou um sentimento de revolta, que me lembrou a atitude dominante identificada em Carol, por ocasião dos nossos primeiros contatos assistenciais. Eu já havia antecipado este risco e teria, naquele momento, a oportunidade de modelar em Laura a neutralidade necessária e indispensável ao adequado exercício da medicina. 

Expliquei a Laura que o que ela sentira era legítimo e que não deveria censurar seu afeto. A prática da medicina vinha sempre associada ao exercício da sensibilidade. Porém, o médico precisava filtrar este sentimento para poder beneficiar o paciente. Esta habilidade implicava em expor-se afetivamente, deixando-se permear pelo sofrimento alheio, expressando empatia e trabalhando a informação com maturidade e segurança emocional. No exercício da neutralidade profissional era permitido ao médico sentir, porém seria vedado sofrer. O exercício da neutralidade permitiria ao médico usar sua sensibilidade para mitigar o sofrimento do paciente.

Infelizmente, alguns médicos confundiam neutralidade com indiferença afetiva e desenvolviam um perfil defensivo, escudado em um comportamento rígido, sustentado exclusivamente pelo conhecimento técnico. Este era um modelo profissional indesejável, frequentemente marcado pela própria insegurança emocional. 

O exercício da sensibilidade é um valor humano inestimável que precisa ser sustentado pela estabilidade emocional do médico. A medicina é uma profissão sublime. Nós médicos somos indivíduos falíveis como todos os demais, porém no exercício profissional algo de mágico acontece. Exercemos nossa sensibilidade para melhor perceber o sofrimento do paciente. Identificamos e processamos este sofrimento em nossa natureza humana. Racionalizamos este sentimento com nossa habilidade em interferir positivamente no diagnóstico e tratamento das doenças. Utilizamos esta competência no desenvolvendo uma visão compreensiva, voltada às necessidades do paciente.  

Laura justificou que embora tivesse se identificado com a revolta social de Carol, nunca revelara este sentimento à paciente. Processara a informação e optara por não expressar seu juízo crítico. Sofrera por não trabalhar a neutralidade, mas, definitivamente, aprendera a incorporar esta nova habilidade ao seu perfil profissional. 

Embora nenhuma das duas jovens percebesse claramente, meu desafio fora duplo. Carol precisava ter suas doenças diagnosticadas e devidamente tratadas dentro de uma visão colaborativa biopsicossocial. Laura precisava aprender a trabalhar técnica e afetivamente a situação de Carol. Eu conduzira estas duas situações, paralelamente. Em meu último encontro com Laura fiquei com a sensação de que ela atingira minhas expectativas. Quanto a Carol, ela havia superado a fase aguda, porém sua condição física e emocional permanecia sob observação.

 

Capítulo 8: O follow up de Carol

Passaram-se dois meses. 

Laura e eu continuávamos atendendo Carol em sistema ambulatorial. 

Costumávamos revisá-la, no mínimo uma vez por semana, para supervisionar a toxicidade do tratamento combinado de quimioterapia e irradiação. 

Carol cumprira integralmente o tratamento proposto. 

Sua condição emocional estava estável e o serviço de psiquiatria já havia reduzido a dose de lítio e iniciado o tratamento de manutenção com a adição de carbamazepina. 

Tanto Carol como o irmão, acompanhado da esposa, aderiram firmemente ao programa de assistência colaborativa. Participavam conjuntamente de todos encontros programados para o grupo de pacientes com transtorno bipolar. Motivados pelo modelo da psiquiatria, Marcus e a esposa também acompanhavam Carol nas consultas oncológicas e procuravam inteirar-se de todas as etapas que compunham o protocolo assistencial. Fizeram uma verdadeira imersão nos dois serviços. 

O programa de assistência colaborativa biopsicossocial proporcionou informação sobre as duas doenças, permitiu orientá-los quanto aos riscos e necessidade de supervisão continuada. Tanto a paciente como a família perceberam a motivação e disponibilidade do grupo interdisciplinar e sabiam quando e como reportar-se a cada um de seus componentes.

Carol sentira-se integralmente acolhida e atendida tanto no ambiente hospitalar como domiciliar. Conscientizara-se de suas doenças e da necessidade de supervisão continuada. Sabia que sua vida dependeria da compreensão e adesão aos tratamentos. Apresentara os para-efeitos esperados. Mas, fora previamente orientada quanto a intensidade e duração das complicações. Aprendera a reconhecê-las e a comunicá-las. Sabia que era uma fase difícil de sua vida, porém passageira. 

Os exames de controle, realizados seis meses após o diagnóstico do câncer do colo uterino, revelaram uma remissão clínica completa. 

Carol sentira-se recompensada em seu esforço e capaz de conduzir seu destino, como nunca fizera antes. 

Desenvolvera um novo senso crítico. 

Em vários encontros mais recentes com o grupo assistencial revelara uma forte determinação para mudança em seu estilo de vida. Os medicamentos usados no tratamento do distúrbio bipolar permitiram que ela saísse do quadro de indiferença afetiva, distanciamento da realidade e distorção da autoimagem.  

Entendera que sua alteração comportamental fora desencadeada, precocemente, pelo abuso na infância, o que contribuíra para o desenvolvimento de um perfil de risco, motivado pelo deslocamento da resposta agressiva contra si mesma. Qualificara suas atitudes passadas como autodestrutivas. Passara a acreditar novamente nas pessoas e voltara a estabelecer e valorizar as relações afetivas. 

A condição de estabilidade emocional de Carol fora essencial para o enfrentamento do diagnóstico e tratamento do câncer. A precoce interferência psiquiátrica permitira modelar suas atitudes. Sem o tratamento do distúrbio bipolar não haveria motivação para viver. Ao estabilizar o afeto, Carol assumira um comportamento de comprometimento, coragem e disciplina. Estas qualidades fundamentaram o sucesso das interferências de múltiplos profissionais. Carol experimentara a autodeterminação, criando para si um novo conceito de liberdade, nunca mais se sentindo como uma folha solta ao vento. 

Assim é a vida. Não existe o perfeito ou o imperfeito. Todos temos fragilidades, precisamos reconhecê-las e administrá-las, criando um equilíbrio harmônico, embalado pela sinfonia de nossos sentimentos. Cedo ou tarde aprendemos a tornar a alma leve o suficiente para soprar o próprio destino.

  

*  Todos os personagens são fictícios  

** Referências bibliográficas que podem ser encontradas no livro Conexão Anticâncer – as múltiplas faces do inimigo interno de James Freitas Fleck

 

Habilidades e Competências adquiridas na 13ª Simulação Clínica:

A recuperação da autoestima

James Fleck: Conexão Anticâncer, Síntese da 13ª Simulação Clínica

Carol, ainda criança, sofrera abuso paterno com agravante conivência da mãe. O irmão menor morto por leptospirose passara pelo mesmo sofrimento. A morte parecia um desfecho esperado ou buscado sob esta condição de vida tão adversa. Carol embarcara em um estilo de vida autodestrutivo. Negara seu sofrimento, entregando-se a um falso conceito de liberdade, que dissimulava sua escravidão à história de maus tratos e perda da autoestima. Sua vida fora marcada por um sentimento de desvalia, sendo usada como objeto de expurgo social. Ainda muito jovem, desenvolveu um tumor do colo uterino associado ao vírus HPV, consequente a multiplicidade de parceiros. Tinha ideação de morte, mas seus sentimentos eram obscurecidos por um transtorno afetivo bipolar. Embora tentasse expressar permanente autocontrole, havia uma instabilidade subjacente. O comportamento era imprevisível com alternância de revolta e resignação. O tumor do colo uterino seria tratado com intensão curativa, porém o sucesso dependeria, essencialmente, do manejo psiquiátrico. 

Optou-se por uma abordagem multiprofissional colaborativa biopsicossocial. Nela tanto o paciente como os familiares teriam que buscar informação e participar ativamente no processo de tratamento e reabilitação. O médico continuaria a desempenhar uma função técnica e de orientação. O paciente precisaria conhecer sua doença e respeitar as recomendações, agindo com disciplina e responsabilidade. A família teria um papel fundamental na vigilância sobre a adequação comportamental do paciente e resultados efetivamente alcançados. 

Os medicamentos usados no tratamento do distúrbio bipolar permitiram que Carol saísse do quadro de indiferença afetiva, distanciamento da realidade e distorção da autoimagem. Ela mudou seu estilo de vida, passou a acreditar nas relações interpessoais e a valorizar a vida. Experimentou o exercício da autodeterminação e entendeu que tinha o direito de fazer escolhas, recuperando sua autoestima. 

A autoestima é um valor essencial suscetível, cuja fragilidade é proporcional à sensibilidade. A crise de autoestima está associada às agressões físicas ou emocionais. A autoestima é construída desde a primeira infância sobre uma plataforma genuína de amor. Precisa ser preservada e cultivada, quotidianamente, sobreposta a relações afetivas verdadeiras e bem estruturadas. O resgate da autoestima é essencial ao enfrentamento de todas as crises vivenciais.