11ª Simulação Clínica

Mobilizando a sociedade

 

Objetivo:

Exercício de medicina multidimensional na assistência a uma paciente com melanoma Clark IV – Breslow 1.2 mm, submetido a tratamento com intenção curativa

James Fleck, Conexão Anticâncer, 11ª Simulação Clínica

 

Capítulo 1: A tríade da invulnerabilidade

Hamilton sempre fora muito sociável e comunicativo. Preferia que o chamassem de Ton. Achava que os nomes monossilábicos facilitavam as relações. Tinha 39 anos e fizera uma carreira brilhante na atividade administrativa social. Nascera no Rio de Janeiro, mas sua história fora marcada por experiências multiculturais. Filho de mãe brasileira com pai australiano, vivera toda a infância e adolescência em Sydney. Seu pai trabalhava com comércio internacional e sua mãe, que falava sete línguas, fizera formação em arqueologia. Em consequência da vida profissional dos pais, Ton viajara muito e aprendera precocemente a conviver com as desigualdades. Acompanhara o pai em viagens de negócios em vários países europeus, Estados Unidos e Canada. Visitara, em companhia da mãe, sítios arqueológicos das civilizações pré-colombianas na América Latina, cultura sumeriana no Iraque, bem como escavações no Líbano, Egito e Turquia. Fora alfabetizado em inglês, porém devido a exposição internacional aprendera a comunicar-se em várias línguas. Devido às viagens frequentes, sua escolaridade, durante o ensino médio, fora em grande parte informal. Muitas vezes estudava sob a supervisão dos pais e submetia-se a provas de avaliação de conteúdo. Influenciado pela cultura australiana e brasileira, Ton sempre desfrutara de atividades ao ar livre. 

Ton era culto, versátil, inteligente e criativo. Optou por fazer formação universitária em sociologia em uma reconhecida universidade francesa. Passou por um treinamento em MBA na Inglaterra e dirigia uma ONG internacional voltada para a erradicação da desnutrição infantil em países do terceiro mundo. Casou-se com Vera, uma médica catarinense que trabalhava com epidemiologia clínica para a mesma organização. Tiveram dois filhos que se encontravam, ainda, em fase pré-escolar, demandando cuidados quotidianos.

Os pais de Ton estavam aposentados e decidiram mudar-se para Florianópolis, onde Ton fixara sua residência. Iriam ficar próximo dos netos e desfrutar da convivência familiar em uma cidade litorânea de excelente qualidade de vida. Os trabalhos, tanto de Ton como de Vera, exigiam viagens frequentes, períodos em que deixavam as crianças sob os cuidados dos avós. 

Harry, o pai de Ton comprara um pequeno veleiro e divertia-se com os netos em passeios e pescarias. Sônia, a mãe de Ton dividia sua atenção entre a família e um livro que passara a escrever sobre cultura inca. 

Os pais de Vera moravam em uma pequena cidade próxima e de colonização portuguesa. Apreciavam boa culinária e costumavam receber todos os familiares para encontros gastronômicos nos finais de semana. 

Havia bom entrosamento familiar, mesmo sendo multicultural. Todos estavam bem e a vida transcorria com alegria e descontração. Ton estava um pouco obeso, mas costumava dizer que faltava muito para chegar ao peso sugerido por seu nome. 

Era uma ensolarada manhã de domingo quando toda a família fora desfrutar de um passeio de barco. Ton estava sem camisa e Vera chamara-lhe a atenção para o surgimento de uma mancha escura na pele de seu ombro direito. Apesar de ter cerca de 1.5 cm de diâmetro, Ton não havia notado, pois a lesão estava localizada na região dorsal, próxima da linha axilar posterior. 

Ton tinha uma pele clara e fina, própria da imigração proveniente do norte europeu. Embora seu pai fosse australiano, sua origem era inglesa e, portanto, com uma pele inadequada para as condições solares tanto da Austrália, como do Brasil. Sua mãe era brasileira, filha de imigrantes poloneses e também de pele clara. 

Ton passara sua vida, desde a infância sob uma condição de exposição solar inadequada. Usara protetor solar apenas nos últimos vinte e cinco anos e mesmo assim de forma eventual. Anteriormente, durante a infância e adolescência, nunca se protegera contra o sol. Frequentava a praia, diariamente, sem camisa. 

Sua pele apresentava uma pigmentação irregular, com diversos nevos melânicos, porém nenhum com o aspecto daquele que chamara a atenção de Vera. 

Ton não valorizara muito este achado, até porque não conseguia visualizá-lo, mas comprometeu-se em consultar com um dermatologista recomendado por Vera. 

Ela mostrara-se preocupada. 

Vera, sendo médica, já havia mencionado, inúmeras vezes, a suscetibilidade da pele de Ton, provocada tanto por sua hereditariedade, como por seu estilo de vida. Chamara a atenção para os horários de maior risco de exposição solar e sobre o uso compulsório do protetor solar para irradiação UVA e UVB. 

Ton sentia-se bem e negligenciava a orientação de Vera. Ele estava no que eu costumava chamar de tríade da invulnerabilidade. Era homem, ainda jovem e saudável.

 

Capítulo 2: A consulta dermatológica

Vera acompanhou Ton na consulta com o dermatologista. 

Ele fora professor de Vera, durante seu curso de graduação na faculdade de medicina em Porto Alegre. Na ocasião, ele liderara o desenvolvimento e implementação de um grupo nacional de estudos em melanoma, tendo mais de trinta anos de experiência em tumores de pele. Porto Alegre também dispunha de uma dermatopatologista de reconhecimento internacional, o que justificava o deslocamento do casal.

Ton encontrava-se essencialmente assintomático. 

O exame dermatológico constatara uma lesão de pigmentação e bordas irregulares, localizada junto a região posterior da axila direita. À inspeção não havia ulceração ou sangramento, mas a hipótese diagnóstica fora de uma lesão muito suspeita de melanoma. 

Um exame de dermatoscopia, proporcionado pelo uso de um aparelho que ampliava a imagem, permitiu demonstrar a presença de vasos sanguíneos anômalos. A imagem obtida no dermatoscópio fora importada para um banco de dados em um computador, proporcionando o estudo comparativo com outros modelos de neoformação vascular muito característicos de melanoma. 

A palpação das áreas de potencial drenagem linfática da lesão não mostrava alterações. No restante do exame da pele foram identificados vários nevos melânicos de aspecto benigno, sendo mapeados e fotografados para controle posterior.

O diagnóstico clínico foi de melanoma, um tumor maligno originado em melanócitos, que são células da pele associadas com a pigmentação. A exposição continuada a irradiação solar, especialmente na infância e adolescência produzira dano ao DNA destas células, conduzindo a instabilidade genômica e desenvolvimento do câncer.

O dermatologista comunicou sua impressão clínica ao casal. 

Vera já suspeitava desta possibilidade, porém Ton reagiu com uma certa displicência e impulsividade, perguntando se o médico poderia queimar a mancha e então ele já ficaria livre do problema, naquela mesma consulta. 

Meu colega dermatologista explicou que a fulguração era um procedimento estético usado somente em lesões comprovadamente benignas e que para o caso de Ton este método estaria definitivamente contraindicado. 

Ton teria que fazer uma cirurgia, removendo toda a lesão. 

Era um trabalho que envolveria múltiplos profissionais.

Meu colega dermatologista pediu que o casal consultasse comigo para orientá-los quanto aos encaminhamentos necessários. 


Capítulo 3: A consulta oncológica

No dia seguinte, o casal procurou-me no consultório. 

O dermatologista já fizera contato comigo e passara sua impressão clínica. 

Ton estava naturalmente ansioso, manifesto por um temperamento de sutil irritabilidade. Vera, alternando um papel de esposa e médica, tentava contemporizar a situação dizendo que tudo estava sendo encaminhado em tempo hábil e que o problema seria resolvido.

Reforcei a postura de Vera e expliquei a Ton que o diagnóstico definitivo seria feito com uma biópsia excisional. 

Tratava-se de uma cirurgia que retiraria toda a lesão com boa margem de segurança. Este material seria encaminhado para um laboratório, onde uma médica, especializada em alterações microscópicas das doenças de pele, faria o diagnóstico anatomopatológico. 

Ton perguntou quem faria a biópsia.

Expliquei que teria que ser um cirurgião oncológico, ou seja, um médico habituado a operar melanoma. 

Seria uma cirurgia de muita responsabilidade, pois não poderia haver comprometimento de margem. O tecido supostamente tumoral precisaria ser retirado sem ser seccionado, ou seja, o plano de dissecção cirúrgica teria que ser extra-tumoral. O bisturi cortaria longe da lesão, onde houvesse somente tecido normal. 

Senti que deveria limitar a informação neste nível. 

Tomei a iniciativa de explicar ao casal que a continuidade dependeria do resultado da biópsia e que deveríamos esperar por ele para discutirmos as próximas etapas. Neste momento, eu iniciara a abordagem sequencial. Sob minha ótica, uma conduta essencial para minimizar o sofrimento e construir um perfil adequado de enfrentamento do câncer. 

Embora eu tivesse muita confiança no diagnóstico de meu colega dermatologista, sua hipótese teria que ser confirmada pelo exame histológico do material da excisão cirúrgica. 

Expliquei a Ton que a segurança diagnóstica aumentava pela convergência dos achados clínicos e laboratoriais. Disse que o manejo do câncer exigia precisão nas informações. Era uma construção feita de forma estruturada. Não se partia para a fase seguinte, enquanto permanecesse qualquer dúvida ou instabilidade na fase imediatamente anterior. Por enquanto, o que tínhamos era uma impressão clínica. Ela teria que ser confirmada no laboratório. 

Solicitei a Ton sua permissão para examiná-lo. 

Ele concordou e começou a tirar parcialmente a camisa, mostrando o ombro direito, onde se encontrava a lesão. 

Expliquei a Ton que eu faria um exame clínico completo e não apenas da lesão cutânea. A enfermeira iria ajudá-lo, fornecendo um avental descartável. Ele deveria vesti-lo, após retirar toda a roupa. 

Ton olhou para mim e comentou com uma certa contrariedade: Isto parece um pouco mais complicado do que eu imaginava

Embora não fosse uma pergunta, eu percebera que Ton subestimara a importância daquela lesão e estava, perifericamente, buscando informação adicional. Este comportamento não era incomum e indicava que o paciente sinalizava para uma abordagem indireta, sensível e gradual. 

Iniciei o exame físico. 

Ton tinha uma constituição física de aspecto saudável. Estava cerca de 20% acima do peso ideal. A lesão no ombro direito tinha bordos e pigmentação irregulares, com aspecto sugestivo de melanoma. A palpação das cadeias linfáticas cervicais e axilares não evidenciavam linfonodos aumentados. Sua tireoide era palpável, com dimensões normais e sem nódulos. Embora houvessem múltiplos nevos, distribuídos irregularmente na pele de todo o corpo, nenhum outro era suspeito. A inspeção do couro cabeludo, pele das mãos e pés e da região perineal estava normal. Ton tinha uma história cardíaca de prolapso da válvula mitral, sem repercussão no exame clínico. Este achado, não era infrequente e seu diagnóstico fora feito há cinco anos por uma ecocardiografia associada a um ECG por ocasião de uma consulta de prevenção com um clínico geral. Ton não era tabagista e ingeria álcool socialmente. A medida da pressão arterial era normal. Não usava medicamentos com regularidade. Sua ausculta cardíaca e pulmonar não revelava alterações. Não havia massas palpáveis no abdômen. O fígado e o baço tinham tamanho e forma normais. Os testículos eram levemente assimétricos, mas sem nódulos palpáveis. A próstata tinha dimensões normais, superfície anatômica e lisa. Seus reflexos neurológicos estavam preservados, bem como o exame dos nervos que compõem os pares craneanos. A sensibilidade, a força e os testes de equilíbrio estavam preservados. Não havia assimetrias ou dor em todas as estruturas ósseas e articulares examinadas. 

Utilizando um aparelho chamado oftalmoscópio, expliquei a Ton que iria examinar o fundo do olho e que isto seria precedido da dilatação da pupila com um colírio contendo um medicamento que produziria este efeito. Ton tinha olhos azuis claros e tanto a íris como a coroide, estruturas pigmentadas do olho contendo melanócitos, seriam possíveis locais de surgimento de melanoma. O exame do fundo do olho além de não mostrar lesões de pigmentação anômala, permitiu verificar uma vascularização normal, excluindo sinais de hipertensão ou diabete. 

Dei por encerrado o exame físico e saindo da sala pedi que minha enfermeira ajudasse Ton a vestir-se, pois a dilatação da pupila gerava uma visão borrada, o que persistiria por pouco mais de uma hora. Vera já sabia disso, mas reforcei a ela para não deixar Ton dirigir, imediatamente após a consulta.

O exame físico durara 40 minutos. Quando retornei à sala, Ton estava surpreso com a abrangência do exame. Disse que nunca havia sido submetido a uma avaliação médica tão extensa e estava preocupado com a gravidade de seu problema. 

Embora o exame clínico tenha uma sensibilidade diagnóstica menor que os métodos de imagem atualmente disponíveis, ainda é uma etapa indispensável da avaliação médica. O conjunto das informações orienta o médico na solicitação de exames complementares. 

Expliquei ao Ton a razão do exame físico prolongado e aproveitei a oportunidade para tranquilizá-lo, pois com exceção da lesão no ombro, todo o restante de sua avaliação clínica estava, essencialmente, normal.

Ton percebera minha preocupação e perguntou se a doença poderia estender-se da pele para outras partes do corpo. 

Respondi dizendo que o melanoma era um tumor maligno da pele e que a diferença de outros tumores cutâneos, tinha possibilidade de comprometimento sistêmico, podendo, precoce e aleatoriamente, disseminar-se para outros órgãos. 

Embora fosse, naquele momento, apenas uma hipótese eu estava comprometido em proporcionar a ele o máximo de segurança possível dentro da visão sequencial da assistência. Após o exame clínico eu já podia antecipar que nada grosseiro estava ocorrendo em seu corpo. 

Neste momento, Ton percebera que estava lidando com uma situação potencialmente grave. Ele era um homem inteligente e sensível, olhou para Vera e mudou subitamente sua atitude. 

Assumiu que precisava enfrentar aquele problema de forma cooperativa e que tanto eu como a esposa estávamos ali para ajudá-lo, embora tivéssemos que previamente exercer o papel de arautos da desgraça. 

Eu permanecera contemplativo. 

Ton, tomou a iniciativa e segurando a mão de Vera disse: Doutor, acho que já entendi o problema. Por enquanto, estamos trabalhando com uma hipótese. Porem, ela é muito provável. Temos que esperar pela biópsia para confirmação. Mas, fico um pouco mais tranquilo em saber que o exame físico não mostrou nada grosseiro no resto do meu corpo.

Respondi a Ton que era precisamente este o ponto em que nos encontrávamos. 

Ton ingressara em uma fase do manejo oncológico no qual a razão e o afeto somam esforços, resgatando a cumplicidade na relação médico-paciente. Tom passara a demostrar um comportamento de maior comprometimento e adesão. 

 

Capítulo 4: A visão epidemiológica e social de Ton

Até aquele momento, ele não tivera muita exposição à medicina como paciente, pois era jovem e saudável. Todavia Ton e a esposa lidavam com uma ONG de controle da desnutrição infantil. Recuperando seu temperamento habitual e expressando sua visão administrativa em saúde, Ton procurou situar-se estatisticamente na doença. 

Perguntou-me quantos casos de câncer eram notificados anualmente no mundo.

Respondi que informações globais sobre incidência e mortalidade em câncer eram proporcionadas pela International Agency for Research on Cancer (IARC), monitorando cerca de 25% da população mundial. Infelizmente, poucos países tinham registros nacionais de câncer. Muitas vezes os dados eram obtidos em registros regionais. Nos EUA os registros de câncer com base populacional eram obtidos pelo Surveillance, Epidemiology, and End Results (SEER) coordenado pelo National Cancer Institute (NCI) e pelo National Cancer Registries of the Center for Disease Control (CDC) que conjuntamente monitoravam 95% da população norte-americana. Expliquei que o câncer era uma doença muito frequente, mesmo havendo subnotificação e falhas metodológicas de avaliação na sua epidemiologia internacional. Uma organização denominada GLOBOCAN classificava os diferentes tipos de tumores malignos, segundo sua localização anatômica. Seus registros internacionais apontavam para cerca de doze milhões de casos novos de câncer por ano. Em uma estimativa populacional para 2050, extrapolavam-se números globais alarmantes para o câncer, como 24 milhões de novos casos e 16 milhões de mortes. O risco acumulativo de desenvolver câncer até os 65 anos ficava em torno de 15%, porém esta proporção tornava-se progressivamente maior com o envelhecimento da população. A curabilidade variava conforme o avanço tecnológico de cada país. Nos Estados Unidos e em alguns países europeus com dados fidedignos, um aspecto favorável era de que 65% dos pacientes sobreviviam mais de cinco anos sem evidência de recidiva, o que na maior parte das vezes indicava cura da doença.  

Ton ficou impressionado com estes dados e manifestou interesse em explorar um pouco mais a epidemiologia do câncer. Questionou-me sobre quais eram os tumores mais frequentes e como estavam se comportando as curvas de incidência e mortalidade.

Expliquei que havia muita variação geográfica, mas que no mundo ocidental a maior incidência era composta por tumores de pulmão, mama, próstata, cólon e reto. Disse que era uma doença associada ao envelhecimento e que o aumento da longevidade, relacionado a instabilidade do DNA era o principal fator de risco.

A medicina estava fazendo seu papel tanto na prevenção como no tratamento. Os mais recentes dados epidemiológicos mostravam redução na incidência e mortalidade dos principais tumores malignos. Dentre os mais frequentes, o único tipo de câncer que permanecia aumentando em incidência era o de pulmão nas mulheres e a razão relacionava-se com o fato de terem iniciado o hábito do tabagismo mais tardiamente do que o homem. 

Ton interrompeu-me, perguntando sobre a estatística do melanoma.

Expliquei que nos EUA, o melanoma correspondia a 4% de todos os tipos de tumores malignos. No mundo eram comunicados cerca de cento e sessenta mil casos novos por ano, mas isto possivelmente subestimava a verdadeira incidência. Somente nos EUA, cerca de sessenta mil casos novos de melanoma eram reportados anualmente. 

Informei que o melanoma vinha aumentando em incidência, pois no início do século XX, o risco acumulativo de desenvolver melanoma ao longo da vida era de 1/1500 indivíduos. Hoje, este número subira para 1/49 homens e 1/73 mulheres. Felizmente, o índice de curabilidade também estaria aumentando. 

Após refletir um pouco sobre estes números, Ton comentou que mesmo lidando com administração em saúde nunca fora tocado pela magnitude do problema oncológico e que achava indispensável que estes dados fossem melhor divulgados e trabalhados dentro de uma visão social. 

Ton e Vera expressavam uma visão social muito interessante sobre a saúde. Achavam que a administração pública e privada da saúde tinha fortes limitações. 

Na administração governamental havia dificuldades com relação as prioridades no direcionamento dos recursos e fortes interferências políticas. 

Na administração privada, o conflito era de viabilidade financeira. O custo da assistência aumentara muito, tornando-se incompatível com um empreendimento voltado para fins lucrativos. 

Ambos os sistemas estariam em crise. 

Sob a ótica do casal, a solução estava no terceiro setor, as organizações não-governamentais (ONGs) sem fins lucrativos. 

Eu percebera a forte motivação daquele casal para lidar com saúde pública. Expressei minha preocupação com a administração da saúde no mundo e a necessidade de promover informação, adequação nos encaminhamentos técnicos e suporte administrativo. Reforcei a importância da internet na gestão da saúde, considerando sua universalidade e disponibilidade de acesso a todas os dados em tempo real.  

Ton era o diretor administrativo da ONG, onde Vera trabalhava e tinha sob sua supervisão um grupo de profissionais altamente qualificados nos seus programas de desenvolvimento, implantação e execução. 

Ton revelou que ao assumir a liderança da ONG fizera contato com as personalidades internacionais mais comprometidas com a ideia da responsabilidade social sobre a desnutrição infantil. 

Ficara, na época, particularmente impressionado como este modelo de participação social era subutilizado e negligenciado. Entusiasticamente, Ton defendia a ONG como a única forma de ir ao encontro dos direitos da população, pois as demandas originavam-se diretamente das necessidades genuínas do grupo a ser beneficiado.

Lembrou que havendo objetivos específicos, formalizados em programas bem estruturados, a administração tornava-se simples e transparente. 

Ressaltou que tudo passava, periodicamente, por auditorias internas e externas, que progressivamente davam maior credibilidade aos programas e os consolidavam. 

Os resultados eram graduais, mas sempre eficientes. 

Ton concluiu disponibilizando os serviços de sua ONG para uma visita de orientação, visando o desenvolvimento de uma organização social de suporte para a assistência dos pacientes com câncer.

Coincidentemente, Diego era meu aluno na pós-graduação e trabalhava com registro de câncer. Sob minha supervisão direta, ele estava desenvolvendo um projeto de doutorado sobre um modelo de gerenciamento assistencial ao câncer. 

Nós já havíamos chegado a uma conclusão semelhante à de Ton. 

Sabíamos que era um desafio complexo, composto por múltiplas doenças, com características epidemiológicas, formas de expressão clínica e necessidades individualizadas. 

O setor público conseguia exercer parte deste controle administrativo, porem era imprescindível a participação da população diretamente interessada, gerando massa crítica e dando sustentação pública aos projetos. 

Adicionalmente, eu também já o havia alertado de que esta massa crítica teria que ser formada não somente por pacientes e familiares, mas também por múltiplos profissionais ligados a diferentes áreas de suporte técnico, voltado à assistência e administração do câncer.   

Aceitei a oferta de Ton. 

Revelei o interesse de Diego no assunto e disse que oportunamente iriamos visitar sua organização.

Ton e Vera mostraram-se muito lisonjeados com minha demonstração de reconhecimento às ONGs. Imediatamente, entregaram-me seus cartões profissionais e reiteraram a disponibilidade de todos os setores de sua organização. 

A conversa sobre ONGs ajudara a aumentar o grau de empatia entre mim e aquele jovem e entusiasta casal. A consulta passou a fluir mais descontraída e Ton estava novamente autoconfiante e cooperativo. Refletimos mais alguns minutos sobre a importância do trabalho social...


Um privilégio característico do homem é que seu vínculo não é físico.  Ele é moral e social. O homem não é governado pelo ambiente material que lhe é brutalmente imposto, mas por uma consciência que ele reconhece como superior à sua. A maior e melhor parte de sua existência transcende o corpo e está subordinada à consciência social.

De la Division du Travail Social

Émile Durkheim

(1858 - 1917)



Capítulo 5: A cirurgia do melanoma

Solicitei um conjunto de exames complementares, que incluíram uma avaliação das contagens hematológicas, bioquímica de sangue, tomografias computadorizadas de tórax e abdômen total, bem como ressonância nuclear magnética do sistema nervoso central. 

Expliquei a Ton que estes exames aumentariam nossa segurança quanto a ausência de metástases. 

Encerrei a consulta solicitando que ele me trouxesse o resultado dos exames com a máxima brevidade. 

Passados alguns dias, recebi o resultado de todos os exames.

Conforme esperado, estavam todos normais e eu encaminhei Ton para um colega com experiência concentrada em cirurgia oncológica de melanoma. 

No dia agendado para a cirurgia, acompanhei Ton ao bloco cirúrgico, onde nos aguardavam o anestesista, o cirurgião e a médica especializada em patologia da pele. 

Explicamos que ele seria submetido a anestesia geral. 

O cirurgião faria a excisão ampla da lesão primária e a patologista examinaria o material por um método chamado de congelação. Havendo confirmação do melanoma, seria explorado o linfonodo sentinela. 

Não tínhamos, naquele momento, ainda condições de dizer qual seria a abordagem final, pois a localização da lesão primária poderia comprometer diferentes rotas de drenagem linfática. 

A semelhança do que já era praticado em câncer de mama, usava-se um material radioativo, injetado junto ao local do tumor primário e com o uso de um probe, identificava-se e retirava-se o primeiro linfonodo marcado. Este era chamado linfonodo sentinela e seria submetido também a exame anatomopatológico transoperatório. 

Sendo positivo, o cirurgião faria a dissecação linfonodal eletiva, retirando todos os linfonodos da área anatômica de drenagem identificada.

Eu havia iniciado o uso de antibiótico profilático, pois Ton tinha prolapso da válvula mitral e embora remoto, haveria o risco de endocardite bacteriana. 

A monitoração de Ton no transoperatório manteve-se normal. 

Houve a confirmação do diagnostico de melanoma na lesão primária, que foi excisada com amplas margens de segurança. O linfonodo sentinela estava localizado na região axilar direita e fora positivo para melanoma. O cirurgião procedeu a dissecação axilar eletiva, promovendo a retirada de todos os linfonodos da axila direita. O material foi apropriadamente acondicionado em formalina, rotulado e encaminhado para avaliação definitiva no laboratório de patologia.

Ton permaneceu hospitalizado pelo período de quarenta e oito horas, não havendo complicações cirúrgicas imediatas. 

Ao receber alta, seu exame definitivo já estava pronto. 

Tratava-se de um melanoma de espalhamento superficial com 1.4 cm de diâmetro, Clark IV, Breslow com 1.2 mm de espessura. 

A classificação Clark IV, indicava que o melanoma de Ton havia ultrapassado a epiderme, camada mais superficial da pele e atingido a parte mais profunda da derme papilar, chamada reticular, onde o risco de disseminação tumoral é maior. O Breslow indicava, milimetricamente, a profundidade de invasão da pele (1.2 mm). 

Mas o fator de maior preocupação era o comprometimento por melanoma do linfonodo sentinela. Felizmente, não fora observado comprometimento por melanoma nos demais linfonodos obtidos pela dissecação linfonodal eletiva da axila. 

Expliquei a Ton que seu tratamento fora feito com intensão curativa. 

Sua chance de cura estaria entre 60% e 70%. 

 

Capítulo 6: O tratamento adjuvante do melanoma

Precisaríamos manter um rigoroso controle sobre a recidiva local e sistêmica da doença. 

Expliquei que o risco de disseminação já existia mesmo antes do diagnóstico, quando, por ocasião do desenvolvimento do melanoma, algumas células tumorais poderiam ter migrado por via sanguínea ou linfática. A disseminação linfática ficara, aparentemente, restrita ao linfonodo sentinela. A possibilidade de disseminação sanguínea ocorria de forma micrometastática e ainda não podia ser totalmente excluída, razão pela qual seu índice de curabilidade não era total.

Vera participava ativamente desta conversa. 

Ton alternou o olhar entre mim e Vera e perguntou se havia algum tipo de tratamento que poderia ser feito para diminuir o risco de recidiva do melanoma e aumentar sua chance de cura.

Eu já tinha um bom tempo de convivência com o casal e percebera a forma clara e objetiva com a qual buscavam a informação. Embora eu já antecipasse a necessidade de abordar esta questão, estava esperando o momento ideal para fazê-lo. 

Eu teria que compartilhar com o casal o processo decisório. Não era uma decisão simples, pois sobre esta questão havia opiniões conflitantes na literatura. Eu teria que explicar o tipo de intervenção, seus potenciais benefícios e toxicidade, bem como a forma como os médicos avaliavam metodologicamente os desfechos.

Respondi, objetivamente, dizendo que existia uma droga chamada interferon a-2b que promovia apoptose, ou seja, interferia com a imortalidade frequentemente observada nas células tumorais. O interferon a-2b promoveria morte celular programada nas células do melanoma, eventualmente presentes na forma de micrometástases. 

Embora o racional fosse atraente, era necessário considerar que seria um tratamento toxico. Além disso os dados da literatura, apesar de mostrarem uma significativa redução no risco de recidiva do melanoma, não eram totalmente consistentes quanto a diminuição da mortalidade. 

Ton interrompeu argumentando que não entendia como um tratamento podia reduzir o risco de recidiva, sem que isso resultasse em aumento de cura.

Expliquei que poderia ser devido a toxicidade tardia do tratamento. O uso de interferon a-2b, mesmo reduzindo o risco de recidiva do melanoma, poderia conduzir a aumento de mortalidade por outras causas induzidas pelo próprio medicamento. 

Todavia, isso continuava sob avaliação, mesmo após terem se passado mais de dez anos do primeiro estudo controlado. 

Além disso os melhores resultados teriam sido obtidos com doses altas de interferon a-2b, o que naturalmente também agregaria maior toxicidade. 

Havia uma certa indefinição no ar. 

O casal buscava todas as possibilidades existentes na medicina para aumentar as chances de Ton, que ficara naturalmente preocupado com a toxicidade do tratamento. 

Vera tomou a iniciativa e perguntou como seria este tratamento e que tipos de limitações ou para-efeitos poderiam ocorrer.

Expliquei que a primeira fase, correspondia a quatro semanas de doses altas de interferon a-2b, frequentemente associadas com febre, calafrios, perda de apetite, emagrecimento e sensação de prostração. A segunda fase, iria estender-se por um ano, com administrações de doses semanais mais baixas de interferon a-2b e, portanto melhor toleradas. 

Ton teria que submeter-se, durante todo este período, a avaliações periódicas de função hepática, renal, contagens hematológicas, provas de função da tireoide e testes cardíacos. 

Haveria, ainda, um risco de mudança de humor, com aparecimento de um quadro depressivo, cujo tratamento medicamentoso dependeria do nível de depressão induzido pelo interferon a-2b.  

Estariam contraindicadas viagens na primeira fase de seu tratamento, mas que esta condição poderia ser mais flexível na fase subsequente. 

Ton ficaria sob meu acompanhamento clinico, com uma periodicidade média semanal.

Ton fitou-me nos olhos e com uma postura confiante disse que entendera a dificuldade da decisão, mas considerava o melanoma o seu maior inimigo. Queria fazer tudo que fosse possível para livrar-se, definitivamente, daquela maldita doença. 

Perguntou-me qual seria a minha recomendação.

Reforcei que esta era uma decisão individualizada. 

Disse que refletira muito sobre todos as variáveis prognósticas de seu melanoma e que minha conclusão era favorável ao tratamento adjuvante com interferon a-2b. O racional estava baseado nas características de extensão de penetração do melanoma na camada reticular da pele, a positividade do linfonodo sentinela e um dado novo, indicado por um exame chamado PCR, que apontara para o comprometimento de mais um linfonodo da dissecação axilar. 

Ton já estava com um mês de pós-operatório e essencialmente assintomático, quando iniciamos o tratamento adjuvante com interferon a-2b.

A primeira fase, como fora antecipado, foi muito difícil. 

Ton apresentou febre e calafrios já na primeira dose de interferon a-2b. Na sequência, teve dores musculares, articulares, fraqueza intensa, apatia e depressão. Houve necessidade de uso de paroxetina, um antidepressivo essencial para manutenção do programa de tratamento. 

Felizmente, seus controles laboratoriais mantiveram-se normais. 

Aos poucos, os para-efeitos passaram a ser melhor controlados, com o uso preventivo de medicações que minimizavam os sintomas. Ton manteve-se aderente e corajoso. Vera o acompanhava permanentemente. 

Ao passar as quatro primeiras semanas, Ton revelou ter sido o pior período de sua vida e que somente o suportara devido ao desejo de ficar curado, associado ao apoio da família. 

Apesar dos filhos serem pequenos, Vera explicou a eles a doença de Ton dentro de uma abordagem adequada e afetiva. Disse que o pai estaria mais ausente em função do tratamento, mas que tudo retornaria ao normal depois de algum tempo. Vera contou com o apoio diário dos avós no suporte emocional e supervisão das crianças e dedicou-se quase que integralmente aos cuidados de Ton.       

Quando iniciou a segunda fase do tratamento, Ton aprendera a lidar com as limitações impostas pelo medicamento e organizara suas atividades dentro de uma periodicidade que fazia coincidir com os momentos em que se encontrava mais disposto. Curiosamente, seu organismo desenvolvera um ritmo previsível de para-efeitos frente ao uso do interferon a-2b, gerando um ajuste adaptativo.

Encontrei com Ton e Vera semanalmente pelo período de mais de um ano. 

Fora uma convivência agradável, que extrapolava o trabalho médico, pois conversávamos muito sobre planejamento de saúde. 

Quando Ton já estava melhor adaptado ao tratamento e retomando a suas atividades, reforçou o convite para visitar sua organização.

 

Capítulo 7: A importância do terceiro setor na sociedade

Juntamente com Diego, fizemos várias visitas a organização de Ton. 

Tivemos a oportunidade de conviver com pessoas de grande experiência na implantação, desenvolvimento e condução de uma ONG voltada para a erradicação da desnutrição infantil. 

Nossa primeira impressão foi muito gratificante. 

Várias pessoas eram voluntárias e demonstravam expressiva motivação e entusiasmo para com seu trabalho. Cada pequena conquista representava a retribuição pelo esforço empregado. Era um ambiente saudável em que a maior motivação estava na contribuição humanitária. 

A principal gratificação que o médico tem em sua atividade profissional é o resultado bem-sucedido. Sempre que ocorre cura ou alívio de sofrimento, o médico é recompensado em seu trabalho e revigora-se para o enfrentamento de novos desafios. Da mesma forma, os resultados atingidos pela ONG compensam todos os esforços técnicos e administrativos, dispendidos em sua obtenção.

Há muito tempo eu já havia compreendido que lidar com câncer era um processo de aprendizagem. O melhor resultado somente seria atingido quando o paciente estivesse completamente informado. 

Esta informação não deveria se restringir a busca de conhecimento sobre a história natural de sua doença, orientação diagnóstica e tratamento. O paciente deveria, adicionalmente, fazer uma avaliação crítica de suas necessidades e direitos e participar ativamente na obtenção dos resultados. Pacientes e familiares estariam envolvidos na identificação da magnitude do problema, na definição de seus objetivos e nas metas a serem atingidas. Seria interessante o desenvolvimento de um modelo de organização que permitisse a troca contínua de informações dos pacientes e familiares com um grupo técnico de apoio, tanto assistencial como administrativo. 

Somente as organizações não governamentais sem fins lucrativos seriam capazes de atingir este grau de interface produtiva. 

Diagnosticar e tratar câncer deveria ser uma responsabilidade social. 

Neste momento, milhões de pessoas no mundo estão sofrendo com este problema. A solução não se restringe a intervenção médica. Ela necessita de um esforço cooperativo multiprofissional. 

Da mesma forma que a fome e a desnutrição infantil costumam repercutir socialmente, o câncer gera perdas e custos públicos incontroláveis se não for administrado de forma responsável e isenta. 

Tudo deveria começar com a criação de ONGs. 

Sob minha ótica, as ONGs deveriam surgir para atender as necessidades e direitos de grupos específicos de pacientes. No câncer a doença sempre fora classificada conforme sua distribuição anatômica e este poderia ser o modelo para o desenvolvimento das ONGs destinadas ao enfrentamento do câncer. 

Não seria factível uma ONG que englobasse todos os tipos de câncer, pois há características próprias e específicas, inerentes a cada tipo anatômico de tumor. 

A sociedade deveria estimular e facilitar a aproximação de grupos de pacientes que tivessem o mesmo tipo de câncer e que vinculados a uma estrutura de apoio multiprofissional promovessem, ativamente, a busca de suas necessidades e direitos. Isto retiraria os pacientes e seus familiares de uma posição passiva, contemplativa e muitas vezes ineficiente. Pacientes e familiares informados e organizados tem mais chances de atingir suas expectativas. A organização também costuma suscitar um racional bem estruturado no direcionamento de recursos públicos e privados. 

Diego sempre olhara para a medicina sob o viés social. Estudava epidemiologia clínica, trabalhava com rigor metodológico e dedicava-se a modelos de intervenção sobre a saúde pública. 

Eu tinha uma visão mais assistencial do câncer na relação com os paciente e seus familiares, mas valorizava a importância da participação social. 

Apesar das diferenças, formávamos uma boa parceria, potencializando esforços. 

Após colhermos muita informação e aprendermos sobre ONGs, chegamos a conclusão que nossa participação no enfrentamento social do problema câncer deveria restringir-se ao apoio técnico para as múltiplas ONGs já existentes e outras que naturalmente iriam emergir da necessidade coletiva de pacientes, identificados por objetivos comuns. 

Nesta ocasião, eu já havia registrado o domínio anticancerweb (ACW) e desenvolvido uma plataforma eletrônica visando proporcionar informação e interatividade assistencial para pacientes com câncer. Certamente, uma base técnica de apoio para ONGs complementaria os objetivos deste projeto.

A iniciativa foi denominada projeto ACW-ONG.

Descrevi detalhadamente o projeto ACW-ONG para Diego, que manifestou forte entusiasmo e motivação para avançarmos na interatividade social. 

Compartilhamos o projeto com Ton e Vera, que nos indicaram profissionais qualificados para ajudar no desenvolvimento daquelas ideias. 

Ton encontrava-se na metade da segunda fase de seu tratamento adjuvante com interferon a-2b. Trabalhava com dedicação parcial. Apesar de ainda ter que conviver com para-efeitos, sua tolerância era boa e o tratamento vinha sendo mantido com adequada intensidade de dose. 

Apesar do uso da paroxetina, Ton permanecia com um humor levemente depressivo e não conseguia expressar seu habitual entusiasmo e dinamismo. Porem, sabia que isso era devido ao interferon a-2b e desapareceria em seis meses quando o tratamento estivesse concluído. 

Mesmo assim, Ton sentira-se gratificado com o projeto ACW-ONG, pois havia sido o mentor de sua imbricação no suporte social à pacientes com câncer.

Iniciamos o desenvolvimento do projeto. 

Achamos que o projeto deveria estar alicerçado nas necessidades e direitos dos pacientes com câncer. Precisávamos gerar uma organização de base que proporcionasse suporte técnico qualificado, auxiliando os pacientes e familiares no encaminhamento adequado ao atingimento de seus objetivos.

As necessidades do paciente teriam que ser compreendidas dentro de um modelo abrangente biopsicossocial. Consistiria em uma abordagem integrada, visando interferir sobre as repercussões físicas, psicológicas e sociais que ocorriam com o paciente e seus familiares, por ocasião do diagnóstico e tratamento do câncer. 

Esta visão holística estaria diretamente associada aos valores intrínsecos do paciente, aspirações pessoais e profissionais, interação social, limitações físicas, qualidade de vida, intenção do tratamento, probabilidade de cura e possibilidades futuras. 

Este modelo ampliaria a visão do paciente e do médico, produzindo uma maior sintonia de comunicação, fundamentada em objetivos comuns. A visão do médico costumava estar, predominantemente, voltada para o resultado e avaliação crítica dos estudos clínicos mais recentes, visando proporcionar ao paciente a melhor recomendação. A visão do paciente consistia em uma aspiração mais ampla, buscando completa recuperação física, psicológica e reintegração social. Compartilhar estas expectativas, garantiria maior chance de sucesso no processo decisório. 

Os direitos do paciente com câncer são dependentes de legislação própria de cada país. Seria necessário proporcionar informação global de direitos adquiridos, associada ao respectivo respaldo legal. 

Alguns direitos são universais como o respeito a diversidade cultural e religiosa, privacidade e confidencialidade, consentimento informado para tratamentos, tanto rotineiros como experimentais, participação no processo decisório técnico e ético, acesso irrestrito a todas as informações contidas no prontuário assistencial, livre escolha profissional e direito de resposta a todos os questionamentos, garantia de assistência em serviços de emergência, independente das condições financeiras, acesso permanente aos custos do tratamento e amparo legal na relação com as empresas de seguro saúde.

O projeto ACW-ONG fora desenvolvido para viabilizar a inclusão social no processo decisório associado à assistência dos pacientes com câncer. Ele fora criado para dar suporte técnico a todas as organizações não-governamentais vinculadas de combate ao câncer.

O suporte proporcionado pelo projeto ACW-ONG, representava um grande esforço de simplificação na organização da mobilização social. Consistira em uma sugestão de mobilização do terceiro setor, cuja implementação dependeria essencialmente da participação de todos os segmentos da sociedade, direta ou indiretamente motivados para o enfrentamento do desafio epidemiológico do câncer. 

Lidar com sociedade sempre fora um exercício de percepção de massa crítica e de desprendimento. Nossa ideia fora lançada e sentíamo-nos recompensados pela possibilidade de poder contribuir. A interatividade era a ferramenta de base e a informatização a condição indispensável para sua implementação. 

Transferimos o projeto para um grupo de pacientes sobreviventes do câncer que juntamente com seus familiares iriam dar seguimento a organização. 

Diego utilizou a experiência como base para o desenvolvimento de seu projeto de doutorado e eu voltei novamente o foco para a assistência de meus pacientes. 

Passaram-se mais alguns meses e Ton completara o tratamento adjuvante. 

Seus exames de controle foram essencialmente normais. 

Poucas semanas após a interrupção do uso do interferon a-2b, Ton já havia recuperado sua habitual disposição, entusiasmo e dinamismo. 

Iniciei a progressiva retirada da paroxetina, o medicamento usado como apoio antidepressivo. Não houve intercorrências e Ton manteve uma condição de humor favorável. 

Ele retomou integralmente as suas atividades. Havia perdido peso durante o tratamento adjuvante e conscientizou-se de que deveria assumir um estilo de vida saudável. Programou uma dieta fracionada e de adequado aporte calórico, retomou seu programa de exercícios físicos, assumiu o compromisso de adesão às revisões médicas periódicas e passou a proteger-se da irradiação solar. 

Ton e todos os seus familiares adotaram a ideia ACW-ONG e juntamente com outros pacientes sobreviventes do câncer, assumiram o compromisso de viabilizá-la.    

  

*  Todos os personagens são fictícios  

** Referências bibliográficas que podem ser encontradas no livro Conexão Anticâncer – as múltiplas faces do inimigo interno de James Freitas Fleck

 

Habilidades e Competências adquiridas na 11ª Simulação Clínica:

Visão social

James Fleck: Conexão Anticâncer, Síntese da 11ª Simulação Clínica

Ton e Vera olhavam para a medicina sob o viés social. Reconheciam fortes limitações na administração pública e privada da saúde. No governo havia dificuldades com relação a avaliação das prioridades no direcionamento dos recursos e interferências políticas. Na administração privada, o conflito era de viabilidade financeira. O custo da assistência aumentara muito, tornando-se incompatível com um empreendimento voltado para fins lucrativos. Ambos os sistemas estariam em crise. 

Tom e Vera enxergavam as organizações não-governamentais (ONGs) como o principal elemento moderador das expectativas da população na área da saúde. Elas seriam sustentadas em um modelo abrangente biopsicossocial, no qual as necessidades e direitos dos pacientes e seus familiares envolveriam aspectos físicos, emocionais e sociais. 

Na escala social a visão é holística, o paciente precisa ser recuperado no contexto físico e psicológico e em sequencia, reintegrar-se plenamente em sua função. A sequela orgânica ou emocional precisa ser trabalhada para que o paciente volte a sentir-se útil e capaz de contribuir para o bem comum. Esta visão ultrapassa o objetivo meramente assistencial da medicina. Exige esforço multidisciplinar na mobilização de valores humanos que extrapolam o indivíduo e atingem as relações interpessoais.  

Na saúde, as ONGs nascem de grupos de pacientes que compartilham a mesma doença e que na escala social identificam necessidades genuínas, gerando demandas. Surge uma massa crítica, que defende direitos básicos comuns. Ao buscar suporte técnico estes direitos adquirem maior consistência agregando força política. Os resultados são a consequência da legitimidade das demandas.

Somos seres sociais e a medicina tem que aceitar esta imposição. A escala social está presente no inconsciente das pessoas. Sempre que a doença ocorre, o primeiro instinto é de sobrevivência individual, porém o sofrimento é social. O atendimento a saúde precisa identificar estes dois componentes e orientar o tratamento tanto do paciente como de suas relações.

A escala social vincula-se a universalidade. Não há mais espaço ou tempo para barreiras geográficas, étnicas, políticas ou culturais. A visão é global. As intervenções regionais têm repercussões no todo e a saúde precisa ser planetária. Esta é uma visão de futuro indispensável para a sobrevivência humana.