O mito da Caverna de Platão
Objetivo:
Exercício de medicina multidimensional na assistência a uma paciente idoso com câncer de cólon K-ras selvagem e M1 (fígado) submetido a tratamento de conversão
James Fleck, Conexão Anticâncer, 10ª Simulação Clínica
Capítulo 1: A interferência familiar
Eram onze horas de uma noite de domingo e uma senhora ligou-me pelo celular. Desculpou-se pelo horário, mas disse ser urgente.
Seu nome era Heloisa e estava angustiada.
Seu esposo, Artur de 71 anos estava muito deprimido. Há dois dias tinha parado de comunicar-se. Fechara-se no quarto, não se alimentava e respondia as perguntas de forma monossilábica.
Informou que Artur tivera um sangramento retal há um mês e que há duas semanas um exame de colonoscopia teria diagnosticado um tumor no intestino. Ela teria falado com o médico examinador e solicitado que nada fosse dito a Artur, pois temia por sua reação. O médico era um gastroenterologista conhecido da família, que aparentemente teria concordado em manter sigilo, mas que gostaria de reavaliar a situação em uma próxima consulta.
Artur nada perguntara sobre o resultado do exame, mas progressivamente foi demonstrando um comportamento de desinteresse em relação a vida. Diminuiu o ritmo de trabalho. Permanecia a maior parte do tempo sentado ou deitado, vendo televisão com um olhar distante. Tinha um sono agitado e despertava várias vezes à noite.
Heloisa havia marcado consulta com o médico gastroenterologista por duas vezes, mas Artur negara-se a comparecer, alegando uma indisposição momentânea. Eles tinham dois filhos, mas a atitude indiferente e refratária de Artur imobilizara a família.
Heloisa fazia revisões médicas periódicas com seu cardiologista, era diabética e tinha colocado dois stents coronarianos há cinco anos. Seu cardiologista era meu colega no hospital universitário e ao tomar conhecimento da situação de Artur, sugeriu que Heloisa contatasse comigo.
Perguntei a Heloisa se Artur tivera alguma história de atendimento psiquiátrico prévio.
Ela disse que não.
Afirmou que até o episódio do sangramento retal ele estava bem. Nunca fora deprimido, tinha entusiasmo com o trabalho e ótimo relacionamento familiar. Ela não conseguia entender o que estava acontecendo.
Perguntei se gostaria que eu fosse até sua casa para examinar o marido.
Respondeu que não.
Artur teria que concordar. Naquele momento ele já estava dormindo e julgava não ser adequado despertá-lo.
Coloquei-me a disposição de Heloisa para contatar comigo a qualquer momento, se houvesse necessidade. Sugeri que ela me procurasse pessoalmente no dia seguinte para traçarmos um plano de abordagem da situação. Aconselhei que ela viesse acompanhada dos filhos, pois eles provavelmente também estariam preocupados.
Heloisa concordou.
No dia seguinte, Heloisa e os dois filhos compareceram ao consultório.
Heloisa tinha 68 anos, era uma senhora de compleição emagrecida, compatível com sua situação de diabete e doença coronariana. Luis, o filho mais velho tinha 42 anos, era advogado e expressava-se de uma maneira excessivamente formal. Em contraponto, a filha Márcia de 38 anos era calma, descontraída e comunicativa.
Todos estavam nitidamente apreensivos com a condição de Artur.
Ambos os filhos eram casados e Artur tinha uma ótima relação com os três netos pequenos. Eram três meninos pré-adolescentes. Artur apreciava o contato com a natureza e costumava divertir-se com os netos em pescarias, acampamentos e passeios ao litoral. Era muito afetivo e os netos o chamavam de cacique, uma forma carinhosa de colocá-lo na posição de chefe da tribo.
Heloisa tomou a iniciativa e referiu que estava chocada com a súbita mudança de comportamento do marido. Ele sempre fora muito saudável, embora não costumasse fazer qualquer avaliação médica preventiva. Como ela já antecipara na conversa com o gastroenterologista, Artur, definitivamente, não estava sabendo conduzir a atual situação de doença.
Ele tinha assumido uma atitude de introspecção e bloqueado a comunicação com a família. As várias tentativas de resgate, conduzidas por Heloisa tinham sido frustradas. Artur não era agressivo de uma forma explícita, mas seu comportamento atual gerava uma sensação de temor e instabilidade em todos os familiares.
Márcia sempre fora muito ligada ao pai, mas disse que ele a havia desestimulado em sua busca de aproximação nos últimos quinze dias.
Luis, escutava o diálogo calado, mas apreensivo.
Enquanto a família expressava sua ansiedade e insegurança, minha intuição sinalizava para algum tipo de associação de ideias que poderia estar ocorrendo na cabeça de Artur.
Perguntei se ele havia perdido recentemente um familiar ou amigo mais próximo.
Heloisa refletiu um pouco e disse que achava que sim. Artur era engenheiro eletrônico e recentemente teria comparecido a uma festa de comemoração de 45 anos de formatura. Ele surpreso constatara a ocorrência da morte de dois colegas com os quais tivera muita convivência no passado. As perdas teriam ocorrido há cerca de seis meses e Artur lastimara somente ter tomado conhecimento delas, ironicamente, por ocasião da comemoração da formatura. Heloisa não sabia referir as causas das mortes, pois Artur não as havia comentado.
Pedi que a família descrevesse um pouco mais o perfil comportamental prévio de Artur.
Heloisa referiu que ele era um profissional dedicado e competente. Havia assumido uma posição de direção em uma empresa multinacional de alta tecnologia e que sua função, neste momento da vida, era a de um conselheiro sênior, com flexibilidade em seus horários. Mantinha uma convivência saudável com a família, não havendo conflitos ou desafetos. Relacionava-se carinhosamente com os netos e participava de uma forma lúdica na construção de suas personalidades. Era muito organizado e até um pouco obsessivo com limpeza e horários. Artur não era religioso, mas participava de campanhas de apoio social a crianças e idosos carentes.
Márcia interrompeu dizendo que acompanhara o pai em algumas destas campanhas benemerentes e percebera que ele se sentia gratificado em doar seu tempo e habilidade administrativa. Afirmou que o pai sempre fora um homem desprendido, gentil, cortes e magnânimo. Tinha o perfil de um líder, pois pensava de uma forma coletiva, tanto no ambiente familiar, como na vida profissional e social. Tinha o vício de colocar o bem coletivo acima de suas necessidades pessoais.
Luis, que até então apenas ouvia, interferiu lembrando que há cerca de poucas semanas atrás o pai tivera com ele uma conversa que lhe pareceu estranha. Luis viajava com frequência por motivos profissionais e Artur que nunca havia interferido em suas atividades, solicitara que o filho repensasse sua rotina de trabalho. Achava que Luis deveria passar mais tempo com a família e desfrutar da convivência com a esposa e com os filhos. Luis disse não ter valorizado muito, na ocasião, o comentário do pai, mas agora o achava pertinente. Artur nunca mais tocara no assunto e Luis também não tentara retomar este diálogo.
Havia transcorrido uma hora e curiosamente esta família em nenhum momento manifestara qualquer tipo de questionamento sobre o câncer.
Apesar de incomum, parecia-me um comportamento totalmente adequado, pois o foco estava na pessoa e não na doença. Eles precisavam resgatar Artur para depois pensar no câncer. Era uma família muito unida, mas sentiam que isto não bastava. Sabiam que o enfretamento teria que partir de Artur. Eles já tinham tomado a iniciativa e estariam disponíveis e prontos para ajudá-lo. O problema era como chegar em Artur, como motivá-lo, como romper a barreira de isolamento que ele havia construído em torno de si mesmo.
Olhei para a família e sugeri que o resgate deveria ser feito por Luis.
A razão era a conversa interrompida de algumas semanas atrás.
Orientei que Luis deveria procurar o pai dizendo ter refletido sobre o que ele havia lhe falado. Tranquilizei Luis de que a interrupção daquela conversa não teria sido a causa do bloqueio de comunicação ocorrido com Artur. Todavia, tentar retomá-la parecia-me ser o melhor estímulo para trazê-lo de volta. Sugeri que Luis fizesse esta abordagem sozinho com o pai, sem qualquer tipo de interferência dos demais familiares.
Luis já havia se descartado daquele comportamento defensivo e formal do início da consulta. Parecia ter compreendido bem sua responsabilidade familiar naquele momento critico de suas vidas.
Sugeri a Luis que buscasse uma cumplicidade maior com o pai, expressando genuinamente seu afeto. Luis deveria agradecer ao pai o exemplo demonstrado ao longo de sua vida, imprimindo valores e moldando o caráter dos filhos e dos netos. Deveria valorizar seu papel central na família e sensibilizá-lo da necessidade que todos tinham de tê-lo de volta. Não deveria esconder seu sofrimento, bem como dos demais membros da família, provocado pelo sentimento de desvalia pessoal que o pai vinha manifestando nas últimas semanas.
Luis poderia mencionar que procurara juntamente com a mãe e a irmã um médico que estava disposto a atendê-lo e a ajudá-lo a sair daquela situação indesejável.
Eu ainda conhecia pouco sobre aquela família e muito menos sobre Artur, mas havia sinais subjacentes de uma atitude favorável à vida e eu teria que resgatá-la.
Artur tinha uma família estruturada, era bem-sucedido profissionalmente. Sua vida fora fundamentada em sólidos valores humanos, tinha desprendimento e determinação para ajudar pessoas necessitadas e tivera uma forte influência na modulação do caráter dos filhos e netos.
No entanto, havia um viés. Eu tinha consciência de que estas informações tinham chegado a mim de forma indireta, sob uma ótica familiar. Elas teriam que ser confirmadas no contato direto com Artur.
Capítulo 2: A primeira consulta de Artur e a ideação de morte
Passaram-se dois dias.
Ao chegar ao consultório observei que Artur marcara uma consulta.
Eu havia orientado minha secretária para fazer o agendamento imediato de Artur quando houvesse contato. Observei que ela o tinha agendado para o último horário daquela tarde, o que não me colocaria sob pressão no tempo disponível para o atendimento.
Lembrei-me da expressão urgente usada por Heloisa, quando me contatou ao telefone. Curiosamente, embora o câncer seja uma doença que normalmente necessita muitos anos para desenvolver-se, ele é sempre visto pelo paciente e pela família como uma urgência, por ocasião do diagnóstico.
A situação de Artur ainda tinha a agravante da forma distorcida e inadequada com que ele estava enfrentando o problema.
Artur compareceu ao consultório acompanhado da mulher e dos filhos.
Eu já havia atendido toda minha agenda daquela tarde e eles estavam sozinhos na sala de espera do consultório.
Fui ao encontro deles.
Cumprimentei a família, que me apresentou a Artur.
Perguntei a todos se haveria algum inconveniente se eu conversasse sozinho com Artur.
Todos concordaram e eu coloquei a mão no ombro de Artur, conduzindo-o para dentro da sala de atendimento.
Sentamos um em frete ao outro. Fizemos contato visual. Artur tinha uma expressão de sofrimento no olhar e estava visivelmente deprimido. Passou-me uma impressão de desesperança e de um certo constrangimento frente aquela situação.
Mesmo assim, Artur tomou a iniciativa e perguntou: Por onde devemos começar?
Eu respondi que a ordem não era importante, porque teríamos que falar sobre tudo e que no final as questões iriam se ajustando como em uma montagem de um quebra-cabeças. Disse que estava disposto e motivado para ajudá-lo e sugeria começar com o que mais lhe preocupava naquele momento.
Artur encheu os olhos de água e disse em voz embargada: Doutor, eu não estou preparado para morrer.
Perguntei de onde surgira a ideia de morte.
Artur respondeu que sempre tinha enfrentado bem todas as dificuldades na vida, mas que nunca havia considerado a possibilidade de ficar doente. Disse que se sentia muito mal em conviver com limitações físicas e especialmente constrangido com a possibilidade de gerar incômodo para a família, pela qual ele tanto zelara e preservara ao longo de toda sua vida.
Achava que seus familiares também não estavam preparados para a perda.
Disse que tentara há algumas semanas atrás conversar com o filho sobre sua morte. Todavia, percebeu que não conseguira abordar a questão e acabara por expressar-se de uma forma dúbia e pouco compreensível.
Referiu que se sentiu melhor quando Luis voltou a procurá-lo, tentando resgatar o diálogo, mas que, mesmo neste momento, não conseguira falar sobre suas inseguranças. Todavia, no contato com o filho, percebera que sua atitude descrente e refratária também estava gerando sofrimento para a família e aceitou a sugestão de procurar o médico.
Interrompi o relato de Artur, dizendo que entedia seu sofrimento, mas que julgava dois aspectos infundados.
Primeiro ele estava partindo da premissa de que iria morrer, o que não necessariamente era verdadeiro. Segundo ele estava subestimando a capacidade de enfrentamento da família.
Disse-lhe que teríamos que explorar ambas as situações.
Voltei a insistir na pergunta da qual ele se desviara, anteriormente, fazendo comentários mais circunstanciais e periféricos.
Expliquei a Artur que a questão central era a sua ideação de morte.
Reformulei a pergunta de uma forma mais direta: Artur, por que você tem tanta convicção de que vai morrer?
Artur acusou o golpe.
Disse que estava certo disso, pois já tinha uma idade avançada e muitos de seus conhecidos já haviam morrido.
Achava que tinha chegado a sua vez.
Revelou que nunca imaginara viver tanto, pois seu pai morrera aos trinta e cinco anos com tuberculose e o primeiro sinal havia sido um sangramento pequeno no escarro. Lembrou, que ainda pequeno, estava junto do pai quando o viu tirar um lenço do bolso e no lenço havia manchas de sangue. Lembrou que depois deste episódio, o pai morrera no hospital em poucas semanas. Artur nunca falara sobre isso com a mãe, tios ou irmãos, guardando esta experiência para si e, desta forma, poupando o sofrimento da família.
Na sua versão da história ninguém teria tido conhecimento da doença do pai, exceto ele por um mero descuido ou acidente involuntário. Lembrou que o pai, na ocasião, escondera o lenço e solicitara que ele não comentasse o assunto, pois era apenas um pequeno ferimento no nariz.
Artur obedeceu.
Artur não suportara ver o sangue em suas fezes.
Disse que quando olhou para o vaso sanitário, por ocasião do episódio de sangramento intestinal, lembrou, involuntariamente, da situação do pai.
Naquele momento foi tomado pela convicção de que iria morrer.
Achou que a morte seria em breve e que semelhante a situação do pai, a família somente iria ter conhecimento disto quando tudo já estivesse consumado.
Voltei a interromper.
Disse a Artur que a experiência vivenciada na sua infância teria sido traumática e que na época as pessoas eram efetivamente menos abertas ao diálogo.
Possivelmente, o compromisso de sigilo assumido com o pai fora a causa de sua dificuldade em lidar com a doença atual. Assumir com o pai a cumplicidade em ocultar da família o episódio de sangramento, poderia ter gerado culpa.
Expliquei que ele poderia estar fazendo uma associação de ideias e que a culpa magnificava o problema.
Era necessário esclarecer que a doença do pai não tinha nada a ver com a sua doença atual e que mesmo que tivesse, os tempos eram outros. Os recursos de tratamento atuais permitiriam curá-la.
Disse que qualquer sentimento de culpa que pudesse eventualmente estar acontecendo, deveria ser removido. Quando obedeceu ao pai e manteve sigilo, ele não se tornou responsável pela morte do pai, apenas respeitou a sua vontade ou determinação.
Não caberia, neste momento, e talvez nunca fosse possível descobrir porque a doença do pai teve aquele desfecho tão rápido e trágico. Mas, definitivamente, não era sua culpa. Ele como criança, nada poderia ter feito para modificar o curso dos acontecimentos.
As pessoas adultas são responsáveis por seus atos.
Artur interrompeu e disse: É precisamente esta a razão pela qual eu não queria discutir a doença com minha mulher e filhos. Eu agora lembro que durante muitos anos venho sofrendo por ter sido a única pessoa a testemunhar a doença de meu pai. Eu não queria que minha família atual também passasse por isso.
Expliquei a Artur que entendia seu ponto de vista, mas que aquele teria sido o trauma de uma criança. Sua mulher e filhos eram pessoas adultas que tinham muito afeto e consideração por ele e que privá-los da oportunidade de ajudá-lo é que estava gerando imobilidade e sofrimento.
Artur sentiu-se aliviado.
Concordou em assumir uma postura mais permeável. Disse que iria conversar com a família e compartilhar com eles sua assistência.
Revelei a Artur que eu me sentia gratificado com esta atitude e que provavelmente sua família também sentiria o mesmo. Disse que o resgate de uma atitude positiva não significava que o trauma infantil estaria instantaneamente resolvido. Era apenas uma visão compreensiva do problema que o removia, temporariamente, do cenário da doença atual. Expliquei que se fosse necessário poderia ser trabalhado analiticamente no futuro, com um profissional especializado.
Eu não era psiquiatra, mas já tinha ao longo do exercício da clínica médica acompanhado várias situações semelhantes à de Artur.
Sempre que ocorria o diagnóstico do câncer, ele vinha acompanhado de uma crise pessoal e familiar. A vida era passada a limpo e várias experiências traumáticas do passado eram revividas. Talvez isso fosse motivado pela associação de câncer com morte.
Sempre lidei com estas situações com uma abordagem direta e intervencionista. Eu não poderia esperar o tempo de um tratamento psicanalítico, nem sequer o de um atendimento psiquiátrico breve, buscando remover estas fantasias. O foco consistia em desfazer as associações de ideias da forma mais rápida possível, para poder conduzir o enfrentamento do câncer. Isto era particularmente verdadeiro em pacientes que não tinham indícios de doença psiquiátrica prévia e que apresentassem motivação para viver.
Buscar o auxilio psiquiátrico para remover estes entraves assistenciais, desgastaria adicionalmente o paciente, justamente no momento em que sua vida estaria sendo ameaçada pelo câncer. Parecia-me inadequado que no momento em que se buscava resgatar a vida, paralelamente, fosse feito uma abordagem analítica das feridas do passado.
O foco teria que ser o tratamento da doença orgânica.
Se houvesse necessidade, no futuro, as experiências traumáticas do passado poderiam voltar a ser avaliadas e tratadas de forma sequencial. O que eu precisava, naquele momento critico, era uma mudança de comportamento, favorecendo uma atitude de enfrentamento. Eu tentara promover, com o resgate da autoestima em Artur, um perfil favorável ao diálogo médico-paciente, com busca ativa de empatia e confiabilidade.
Encerramos a primeira consulta.
Capítulo 3: Saindo da Caverna de Platão
Solicitei que Artur deixasse comigo todos os seus exames. Não eram muitos, pois recém havia iniciado sua investigação. Disse que iria revisá-los, cuidadosamente, e pedi autorização para entrar em contato com os demais médicos, até então, envolvidos em seu atendimento.
Artur concordou.
Curiosamente, ele não manifestou muita curiosidade sobre o resultado de seus exames, naquele momento. Eu também não achei oportuno antecipar comentários. A impressão que eu ficara era de que Artur havia tirado um peso de sua consciência. Estava começando a retomar seu comportamento original e autoconfiança. Concordamos, tacitamente, de continuarmos a conversa em uma próxima consulta.
Artur parecia ansioso para falar com a mulher e os filhos, expressar seus sentimentos, derrubar as barreiras de comunicação e liberá-los para opinar em sua doença. Estava pronto para compartilhar seu atendimento com a família e com isso sentir-se mais fortalecido.
Mesmo antes de iniciar aquela consulta, eu já havia percebido uma mudança na atitude de Artur. Embora ele referisse não ter conseguido dialogar com Luis, eu acreditava ter sido aquele o momento do resgate.
Muitas vezes na vida, o mais importante não é o que se fala, mas o que se sente. Artur sentira na aproximação do filho, o desejo genuíno da família em ajudá-lo. Ele não expressara claramente este sentimento no momento do contato com Luis. Porém, aceitara, por solicitação da família, procurar o auxilio médico.
Aquele contato o removera do imobilismo.
A consulta fora a continuidade natural do resgate. Artur era um homem inteligente, mas sua visão estava obscurecida pela ideia associativa de doença e morte. Vivera algumas semanas em um mundo de sofrimento dominado pelas fantasias.
Seu principal objetivo na consulta fora atingido, quando desfez as associações, provocadas pelo trauma infantil e sentimento de culpa. Na sua visão anterior a morte era iminente. Agora ele passara para a condição de sobrevivente de suas próprias fantasias.
Elas eram o motivo da incomunicabilidade.
Artur voltara ao mundo real. Um mundo com o qual ele aprendera a lidar como adulto. Um mundo que não o atemorizava. Voltara a expressar o desejo de viver.
Quando Artur e sua família retiraram-se do consultório, naquela noite, permaneci um pouco sozinho, refletindo sobre a situação.
Aquela consulta tinha sido algo inusitado, pois eu não tivera sequer a oportunidade de examinar o paciente. No entanto, eu me sentia satisfeito pelo que havia testemunhado naquele encontro. Consistia no resgate da vida. Isto teria sido tão gratificante para Artur, que toda a preocupação natural e esperada com relação a sua doença atual fora relegada para um plano secundário.
De uma certa forma, a busca ativa pela sobrevivência confere as pessoas uma capacidade de enfrentamento que minimiza os riscos e as inseguranças.
A impressão inicial era favorável. Porem, eu precisava sair do terreno das suposições e observar os resultados comportamentais. Eu teria esta oportunidade no próximo encontro, quando iria colher de Artur as informações sobre sua doença atual e ter a chance de examiná-lo.
Poucos dias após, Artur retorna para nova consulta.
Veio acompanhado de Heloisa.
Ela tomou a iniciativa e disse que a família teria conversado muito nos últimos dias e que Artur fora muito receptivo às sugestões. Havia ocorrido uma importante mudança comportamental. Artur não estava mais deprimido e dialogava com naturalidade sobre sua doença atual. Sentia-se autoconfiante e acreditava que o problema poderia ser resolvido.
Heloisa não sabia explicar a razão daquela transformação, mas estava mais segura e satisfeita com o rumo que a situação havia tomado.
Lembrei-me da caverna de Platão:
Na Alegoria da Caverna de Platão, os prisioneiros, que nunca haviam tido contato com o mundo externo, estavam fortemente imobilizados e somente enxergavam imagens projetados contra uma parede.
Ouviam vozes e as associavam com as visões fantasiosas, acreditando ser aquele o mundo real.
Platão: A República – Livro VII
(427 -327 a.C.)
Felizmente, contrário a alegoria da caverna, Artur já tivera contato gratificante com o mundo real, durante toda sua vida adulta. Todavia, manteve reprimida uma fantasia infantil. Ao revivenciá-la, por ocasião da doença, ficara imobilizado a semelhança dos prisioneiros na caverna de Platão. Saíra com sucesso, pois seus referenciais no mundo real eram mais fortes, permitindo superar a visão fantasiosa.
Solicitei a Artur que me relatasse detalhadamente o histórico de sua doença atual.
Desta vez, ele mostrava-se descontraído e fluente, mesmo estando na presença de Heloisa. Tive a nítida impressão de que eles já haviam conversado, longamente, sobre toda a expressão clínica de sua doença.
Artur relatou que há cerca de seis meses tinha iniciado com um quadro de alternância de hábitos intestinais. Havia episódios de diarreia intercalados com constipação. Não era infrequente o aparecimento de dor em cólica abdominal, precedendo as evacuações. Sentia que seu abdômen havia distendido um pouco, mas que ele não ganhara peso. Voluntariamente, promovera uma mudança alimentar, dando preferência a vegetais e frutas. As refeições passaram a ser mais pastosas ou líquidas, mas isso não provocara mudança no quadro. Seu apetite estava mantido, mas havia sempre uma sensação de desconforto tardio após a alimentação, manifesto por uma certa sensação de peso no abdômen. Também referiu um pouco de dificuldade para iniciar o sono e que algumas vezes este era interrompido por uma necessidade súbita de evacuar. Não tinha dor evacuatória, mas notara que quando suas fezes eram sólidas, elas apresentavam-se afiladas.
Procurei explorar a existência de sintomas em outras partes do corpo, mas Artur revelou não ter tido outras queixas, exceto fraqueza muscular e cansaço. Disse que atribuíra, na época, os sintomas a problemas digestivos.
Referiu que sua preocupação aumentou, quando teve um sangramento nas fezes. Procurou um médico gastroenterologista que recomendou um exame por endoscopia. Informou que teve que ficar em jejum e fazer um preparo com uma substância laxativa, precedendo o exame. Revelou não ter tido muita noção do que ocorrera no exame, pois estava anestesiado. Lembra que o médico teria comentado sobre o encaminhamento de um material para o laboratório. Disse que discutira esta situação com Heloisa nos últimos dias e que sabia estar com câncer.
Solicitei a Artur que ele se preparasse para o exame físico. A enfermeira iria orientá-lo como proceder com a roupa e vestir um avental. Pedi que Heloisa aguardasse na sala de espera.
Ao exame clinico, Artur não apresentava alterações em sua ausculta cardíaca ou respiratória. Sua pressão arterial estava normal. Um exame neurológico sumário não revelava alteração de forca, sensibilidade, reflexos ou equilíbrio. Ele estava com o estado nutricional mantido, mas tinha sinais de anemia. Não estava ictérico. Seu abdômen mostrava-se levemente distendido e doloroso, o que dificultava a palpação profunda. O tumor descrito no exame endoscópico não era identificado nem na palpação abdominal nem no toque retal. A próstata estava levemente aumentada de tamanho, mas não havia nódulos palpáveis.
Comuniquei-lhe minha impressão sobre o exame clinico. Artur perguntou como este tumor poderia estar tão escondido a ponto de não poder ser detectado no exame médico.
Pedi que ele se vestisse que eu retornaria em poucos minutos para esclarecer suas duvidas. Perguntei se ele gostaria que Heloisa retornasse à sala de consulta e ele disse que sim.
Enquanto Artur se vestia eu olhava em outra sala para o resultado dos exames realizados previamente. Havia no exame de sangue uma forma de anemia, típica daquela provocada por deficiência de ferro, o que era compatível com uma história crônica de perda de sangue nas fezes, mesmo que imperceptível. Este era um achado frequente em pacientes com tumores gastrintestinais. Seu exame endoscópico era uma colonoscopia, o exame mais adequado para visualizar todo o reto e todo o intestino grosso. Na colonoscopia havia uma imagem de constrição e erosão da mucosa na altura do cólon sigmoide, uma parte baixa do intestino grosso, que recebe este nome pelo seu formato lembrando a letra S. O exame anatomopatológico de uma biopsia do tumor realizada durante a colonoscopia revelara o diagnóstico morfológico de adenocarcinoma mucinoso.
Quando retornei à sala de consulta, Artur e Heloisa conversavam e percebi que o assunto continuava relacionado com a não identificação do tumor no exame clínico.
Expliquei a ambos que isso não era incomum. O tumor de Artur tinha o formato de um anel de guardanapo. Ele não era volumoso, a ponto de ser palpável no exame do abdômen. Sua característica era mais infiltrativa na parede do intestino, promovendo estreitamento da luz do órgão. Se não tivesse sido diagnosticado, acabaria por obstruir o intestino.
Expliquei que o diagnóstico estava sendo feito em um momento adequado e que seu gastrenterologista tinha realizado um exame muito preciso. Utilizando o aparelho de fibra ótica, ele havia ultrapassado o ponto de estreitamento, conseguindo examinar todo o restante do intestino grosso, que se encontrava normal.
Isto era um dado muito importante, pois, às vezes, ocorria de um paciente ter mais de um tumor no intestino, o que, definitivamente, não era o caso de Artur.
Artur interrompeu e perguntou: Há quanto tempo eu tenho este tumor?
Expliquei que a anemia mostrava que a doença já existia há algum tempo, embora pouco sintomática. Disse que o tumor do cólon é normalmente um tumor de crescimento lento e que aquilo já poderia estar ocorrendo há anos. Todavia, aconselhei que ele ficasse tranquilo, pois era um tumor bastante frequente, conhecido e previsível no seu comportamento biológico.
Mesmo assim Artur volta a questionar: Eu poderia ter descoberto este tumor antes?
Respondi que sim.
Expliquei a Artur e a Heloisa que esta era uma das recomendações preventivas em oncologia. Todas as pessoas, após os cinquenta anos, deveriam fazer uma colonoscopia, pois isto permitiria diagnóstico mais precoce.
Em certas circunstâncias, a colonoscopia é até terapêutica. Quando o tumor é bem pequeno e restrito a mucosa ele pode ser removido durante o próprio exame, evitando a necessidade de uma cirurgia maior.
Todavia, recomendei que ele não deveria se culpar por esta distração. Ela acontecia com muitas pessoas e a falha estava na falta de divulgação destas recomendações preventivas. O importante, no momento, era que sua situação estava sendo encaminhada e que iríamos resolvê-la.
Artur pergunta, com comportamento proativo: O que precisamos fazer?
Disse que solicitaria alguns exames para avaliar melhor o comportamento do tumor e sua extensão. Estes exames incluiriam um marcador tumoral chamado antígeno carcinoembriônico, melhor conhecido pelo acrônimo CEA (da língua inglesa carcinoembryonic antigen), que seria muito útil no seguimento da doença. Também seriam feitas tomografias do tórax e abdômen para aumentar a segurança de que a doença estaria restrita ao intestino. Adicionalmente, seriam feitos exames para avaliar sua condição clinica como um todo. Com estes resultados poderíamos definir a orientação mais adequada de tratamento.
Artur absorveu bem as informações.
Ao longo desta consulta obtive a confirmação de que ele havia recuperado o controle sobre sua vida, pois fazia o enfrentamento das questões com clareza e determinação. As perguntas eram diretas, objetivas e manifestavam claramente seu desejo de ter respostas precisas. A presença de Heloisa não representava um fator inibitório. Artur havia buscado uma comunicação livre com a família e com o médico e sentia-se fortalecido com estas alianças.
Ao despedir-se, agradeceu o diálogo franco e afirmou que iria realizar os exames com a máxima brevidade. Disse não ter medo dos resultados. Desejava esclarecer as dúvidas pendentes. Seu maior incômodo, naquele momento, era o desconhecido. Ele tinha a convicção de que com os dados na mão, iríamos encontrar a saída para seu problema.
Heloisa retirou-se da sala e Artur ao sair, confidenciou-me em voz baixa: Afinal de contas, doutor, para quem já se considerava morto, tudo o que vem pela frente é lucro!
Respondi que respeitava sua coragem e que estaríamos juntos neste desafio.
Capítulo 4: Voltando ao mundo real
Naquele encontro, Artur revelara um comportamento resiliente. Ele havia utilizado o sofrimento passado para fortalecer sua condição de enfrentamento da crise atual.
Depois que Artur desviara seu pensamento da associação fantasiosa infantil e reassumira sua postura adulta, a resiliência ressurgira potencializada. Ele conseguia lidar com a doença de uma forma leve, bem-humorada e confiante. No resgate do diálogo com a família, sentira-se fortalecido. Passou a aceitar a imprevisibilidade da vida e não se assustava com isso. Reconhecia a necessidade de promover relações que o auxiliassem nos seus cuidados, suporte emocional e orientação técnica. Não oferecia qualquer resistência em dialogar sobre sua doença e exigia clareza de informação. Desenvolvera uma atitude inquisitória, muito saudável na construção da relação médico-paciente. Demonstrara habilidade para absorver os golpes inerentes aos desafios encontrados no diagnóstico e tratamento do câncer.
Artur retorna ao consultório com o resultado dos exames.
Veio acompanhado de Heloisa e dos dois filhos. Entregara seus exames para minha secretária, que os havia solicitado. Ela era orientada a proceder desta forma, pois eu preferia não tomar conhecimento dos resultados no mesmo momento que o paciente. Adotara a conduta de olhar e avaliar os exames antes de conversar com o paciente. Entendia serem dois momentos distintos. No primeiro, minha atenção estaria voltada para o contexto puramente técnico de julgamento dos exames. No segundo momento, já com opinião formada, meu foco seria a assistência ao paciente.
Abri os envelopes e analisei os exames.
Chamou-me, inicialmente, a atenção o resultado do CEA. Estava muito elevado. Seu valor era de 32 ng/mL. Em condições normais e em pessoas não fumantes o valor não ultrapassaria 2.5 ng/mL.
Orientei as imagens tomográficos. Sua tomografia do tórax estava normal. Todavia, no abdômen observava-se uma grande lesão no lobo direito do fígado com aproximadamente 4 cm de diâmetro em uma localização central, na junção de três segmentos hepáticos, o que seguramente dificultaria sua condição de ressecabilidade.
Com exceção da anemia já detectada anteriormente, os demais exames eram normais.
Refleti um pouco sobre o melhor plano de tratamento e solicitei a minha secretaria que conduzisse Artur e sua família até a minha sala.
Haviam transcorrido trinta minutos e todos estavam, naturalmente, preocupados com os resultados. Conhecendo o comportamento daquela família, eu sabia que precisava ser direto e objetivo.
Busquei contato visual com Artur e disse que nosso desafio seria um pouco maior do que aquele da impressão inicial. Expliquei que além do tumor primário no cólon sigmoide, havia uma metástase no fígado. Disse que isso não era necessariamente sinônimo de incurabilidade, mas que avaliações complementares precisariam ser feitas.
Expliquei que eu iria solicitar um exame chamado PET-CT. Ele faria o rastreamento de todo o corpo para excluir a possibilidade de outros sítios de disseminação metastática.
Antecipei um pouco a informação e disse que se o PET-CT fosse normal a intenção do tratamento ainda seria curativa e que teríamos que pensar em duas cirurgias sequenciais. Primeiro a retirada do tumor no intestino e depois a ressecção da metástase no fígado. Este plano envolveria duas equipes cirúrgicas distintas, pois eram especialidades diferentes.
Disse que voltaríamos a falar sobre esta recomendação após termos o resultado do PET-CT.
Observei que todos, inclusive eu, olhávamos para Artur na expectativa de sua reação. Ele manteve-se firme, não escondeu sua tristeza, mas assumiu o comportamento inquisitivo esperado e saudável que eu havia mencionado anteriormente.
Artur perguntou: Meu caro doutor, se o PET-CT der normal que chance eu tenho de cura?
Argumentei que achava um pouco prematuro definir esta probabilidade. Iria depender da impressão dos cirurgiões sobre a ressecabilidade tanto do tumor primário como da metástase hepática.
Talvez viesse a ser necessário a associação de tratamento sistêmico de conversão, precedendo a retirada da lesão do fígado, considerando o seu tamanho e a sua localização.
Este tratamento seria feito depois da cirurgia do intestino. Seria composto por uma associação de medicamentos cujo objetivo era o de reduzir as dimensões da metástase hepática, facilitando sua remoção completa.
Todavia, eu não queria com esta conversa fugir da pergunta de Artur e respondi que estaríamos trabalhando com uma probabilidade curativa, ao redor de 30%.
A família manteve-se calada, respeitando a prerrogativa que Artur tinha e exercera de conduzir o diálogo.
Ele estava imbuído de uma forte determinação de enfrentamento e foi adiante perguntando: “Eu sei que existe uma possibilidade de no novo exame aparecer mais coisa. Como fica a situação se eu estiver com a doença espalhada pelo corpo?
Respondi dizendo que não deveríamos sofrer por antecipação, mas que mesmo nesta circunstância, embora eu não pudesse curá-lo, haveria chance de tratamento.
Ele teria que fazer a cirurgia o intestino da mesma forma, pois não poderíamos conviver com o risco de sangramento, perfuração ou obstrução desta alça intestinal doente. Posteriormente, ele seria tratado com medicamentos que iriam controlar por tempo ainda indeterminado sua doença.
Expliquei que nos últimos anos tinham ocorrido muitos avanços no tratamento sistêmico do câncer do cólon e reto e que havia situações de remissão duradoura ou estabilização da doença. Algumas vezes conseguia-se modificar o comportamento biológico do câncer, fazendo com que ele assumisse o aspecto de uma doença crônica. A desvantagem era de que ele teria que estar sob constante supervisão e tratamento.
Artur respirou fundo. Olhou primeiro para Heloisa e depois para os filhos, dizendo: Acho que não devemos mais pressionar o doutor hoje com perguntas hipotéticas. Vamos em frente. Temos chance e isso é o que importa neste momento.
Eu permaneci imóvel, pois não tinha ideia de qual seria a atitude daquela família. Eu sabia que a ansiedade familiar sempre era alta, especialmente em situações de prognóstico incerto e reservado como era a condição atual de Artur. Eles poderiam a despeito da recomendação de Artur, querer extravasar sua ansiedade, buscando mais explicações ou justificativas.
Existem situações em que a família coloca sua ansiedade acima da ansiedade do próprio paciente.
Aguardei.
Felizmente, esta família funcionava em sintonia fina. Todos respeitaram a vontade de Artur de concluir aquela consulta. Ele havia assumido a liderança na condução emocional da família e como o diálogo fora aberto e objetivo deram por encerrado aquele encontro.
Capítulo 5: Planejamento terapêutico sequencial
Poucos dias depois Artur retornou ao consultório com o PET-CT.
Novamente, toda a família o acompanhava.
Quando ingressaram na sala de consulta, estavam mais descontraídos e revelaram já ter olhado o resultado do exame. A impressão deles era de que estava bem, pois não tinha aparecido nenhum foco novo de doença, além daquilo que já se sabia.
Luis tomou a iniciativa e desculpou-se pelo fato de não ter podido conter a ansiedade da família. Revelou que ele teria aberto o envelope, lido o resultado e transmitido para todos os demais.
Artur sorriu, descontraidamente. Tocando no ombro de Luis, afirmou de forma sarcástica, ironizando sua condição de advogado: Não sei aonde foram parar os meus direitos, pois nem sequer me consultaram antes de abrir este envelope. Mas, desta vez, eu vou deixar passar.
O PET-CT efetivamente tinha mostrado um aumento da atividade metabólica restrita à área do tumor primário no intestino e à metástase hepática. Não havia indícios de tumor no restante do corpo.
Isto não era incomum acontecer, pois o fígado é a rota preferencial de disseminação do câncer do cólon. As células tumorais ao desprenderem-se do tumor primário seguem pela veia mesentérica e entram na circulação portal do fígado. Lá implantam-se por embolização nos vasos sanguíneos microscópicos e iniciam seu processo de invasão progressiva do órgão, gerando a metástase. Como este processo depende de condições microambientais favoráveis a progressão do tumor, às vezes vinga outras vezes não. No caso de Artur, tudo indicava que somente uma metástase tinha vingado e que poderíamos manter a expectativa curativa.
Conversei sobre esta impressão com Artur e seus familiares. Sugeri que o próximo passo deveria ser a consulta com os cirurgiões. Recomendei dois colegas de minha absoluta confiança, com os quais eu já havia enfrentado situações semelhantes no passado.
Um era proctologista, com experiência concentrada em cirurgia oncológica do cólon e reto. O outro era um cirurgião oncológico hepatologista, ou seja, especializado em cirurgia de tumores do fígado. Artur deveria consultar a ambos, pois embora as cirurgias fossem independentes, as impressões de cada um destes profissionais seriam complementares e nos ajudariam na elaboração do plano de tratamento.
Artur concordou e eu entrei em contato com ambos, viabilizando as consultas com a máxima brevidade. Coloquei-me a disposição para o esclarecimento de qualquer dúvida adicional.
Márcia, que permanecera calada em todas as consultas anteriores, olhou para o pai e perguntou se ela poderia fazer uma pergunta.
Ele concordou.
Márcia disse que também estava satisfeita com o resultado do PET-CT, mas tinha preocupação com o outro exame chamado CEA, cujo resultado estava alterado.
Concordei que havia esta alteração, mas que ela poderia ser justificada pelo tumor no intestino, associado a metástase no fígado.
Disse que o CEA era um marcador tumoral e que a expectativa seria a normalização de sua dosagem, quando ambos os tumores fossem ressecados.
O CEA também seria um excelente parâmetro de acompanhamento futuro. Nós iríamos repeti-lo, periodicamente, para confirmar a situação de remissão da doença.
Márcia agradeceu a informação.
Poucos dias depois, ambos os cirurgiões contataram comigo.
Meu colega proctologista já havia programado a cirurgia de Artur. Disse que seu plano era fazer uma sigmiodectomia, ou seja, retirar aquela parte do intestino onde se encontrava o tumor. Isto implicaria em preparo do cólon a semelhança o que já ocorrera por ocasião do exame endoscópico. Como era padrão em uma cirurgia oncológica, a ressecção do tumor primário no intestino viria acompanhada de uma extensa amostragem linfonodal. Antecipando uma boa condição de margens cirúrgicas, ele acreditava não ser necessária a realização de colostomia. Isto era importante pois evitaria a necessidade de um desvio do intestino para a parede abdominal e o inconveniente de usar uma bolsa coletora.
Meu colega cirurgião hepatologista havia solicitado um exame chamado angiorressonância e identificado que a ressecção da lesão do fígado implicaria em uma trissegmentectomia, ou seja, seria necessário retirar três dos mais importantes segmentos do lobo direito do fígado e que mesmo assim ele temia pelas indispensáveis margens de segurança. Sugeria que tentássemos o que atualmente é denominado de terapia de conversão. Seria utilizado um tratamento sistêmico com quimioterapia, visando diminuir o tamanho da metástase hepática, precedendo a sua retirada cirúrgica.
Concordei com as opiniões de meus colegas.
Sentia-me seguro de poder dividir esta responsabilidade de decisão com eles. Tinha consciência de que a medicina funcionava melhor quando juntávamos esforços.
Comuniquei por telefone estas decisões a Artur e sua família. Disse que precisaríamos trabalhar de forma sequencial, primeiro fazendo a cirurgia do intestino, depois um tratamento sistêmico precedendo a cirurgia do fígado.
Como a cirurgia do intestino estaria marcada para a próxima semana, ainda teríamos a oportunidade de discutir toda esta estratégia pessoalmente e coloquei-me a disposição para conversarmos no consultório.
Um dos maiores valores relacionados ao exercício da medicina é a busca contínua pelos melhores resultados. Isto representa um desafio, porém é muito gratificante. É indispensável manter-se constantemente informado e antecipar-se aos riscos.
Quando fora detectada a metástase no fígado de Artur, eu havia solicitado ao patologista a avaliação, no material de biópsia, da expressão de mutação do gene k-ras. Felizmente, Artur não a apresentara. Seu tumor expressava um k-ras selvagem. Isto seria particularmente importante na decisão sobre o tipo de tratamento sistêmico a ser recomendado, antes da cirurgia do fígado.
Artur volta ao consultório, juntamente com os familiares.
Eu tinha consciência de que eles retornavam em busca de informações. Artur permanecia bem e confiante. Tomei a iniciativa e comuniquei a eles a impressão dos médicos e a proposta sequencial de tratamento.
Capítulo 6: O tratamento do tumor primário e a quimioterapia de conversão
Artur mantinha-se atento e ao final da exposição perguntou: Vou ter que fazer quimioterapia?
Eu respondi que sim. Todavia, ela seria realizada somente depois da cirurgia do intestino.
Disse que teríamos que esperar sua recuperação pós-operatória, antes de iniciar o tratamento sistêmico. Voltei a explicar que a cirurgia do intestino tinha prioridade pois precisávamos nos antecipar a qualquer risco de obstrução, sangramento ou perfuração desta alça intestinal doente.
Artur concordou, mas voltou a questionar: Para que serve este tratamento com quimioterapia?
Expliquei que a intenção seria de diminuir as dimensões da metástase no fígado, aumentando a chance de ressecção completa da lesão.
Paralelamente, a quimioterapia iria ajudar no tratamento de micrometástases, ou seja, células que poderiam ter escapado da detecção pelos exames, mas que seriam igualmente atingidas pelo tratamento, uma vez que este, sendo venoso, chegaria a todos estes locais de disseminação.
Aproveitei a oportunidade para descrever um pouco melhor o tratamento sistêmico de Artur.
Disse que havia testado no material de biópsia a expressão de k-ras e que ele apresentava a forma selvagem. Isto nos dava sustentação para associar a quimioterapia com uma droga de alvo biológico chamada cetuximab.
O cetuximab atuava seletivamente bloqueando o receptor EGFR para um fator de crescimento tumoral e era particularmente eficiente em pacientes que expressavam k-ras selvagem. O bloqueio de EGFR reduziria a multiplicação celular e conduziria a morte celular programada das células tumorais, um fenômeno descrito como apoptose.
Disse que minha decisão de tratamento envolveria a associação de um conjunto de drogas quimioterápicas, chamado FOLFOX com cetuximab. Este esquema seria usado por um período máximo de três meses, precedendo a cirurgia do fígado. Expliquei que esta abordagem aumentava adicionalmente a chance de ressecção completa do tumor no fígado, consequentemente, melhorando seu prognóstico.
Artur olhou para os familiares que sempre o acompanhavam e disse estar confiante e que iria superar todos estes desafios.
Poucos dias depois, acompanhei Artur na cirurgia do intestino.
Ela transcorreu bem, sem intercorrências. Artur teve uma recuperação rápida, recebendo alta sete dias depois. Seu exame anatomopatológico confirmou o achado anterior da biópsia. Era um adenocarcinoma e havia comprometimento de quatro linfonodos dos vinte e três que compunham a amostragem linfonodal. Tudo havia sido ressecado em monobloco, como é o recomendado em uma cirurgia oncológica. O valor do CEA caíra no pós-operatório para 17 ng/mL. Uma dosagem compatível com a presença da metástase no fígado.
Passaram-se três semanas e Artur iniciou o tratamento sistêmico.
Era um tratamento tóxico que apresentava além dos riscos habituais da quimioterapia, os para-efeitos do cetuximab. Cerca de poucas semanas após o início do tratamento, Artur passou a queixar-se de uma intensa reação na pele, predominantemente no tronco e na parte proximal das coxas. Não gerava muitos sintomas, mas o aspecto era de uma pele avermelhada e repleta de lesões nodulares nos folículos dos pelos.
Artur estava preocupado e queria saber se aquele era um dano definitivo.
Expliquei que a reação na pele estava associada com o uso do cetuximab e que seria temporária. Cessaria completamente após o término do tratamento e não deixaria sequelas. Expliquei que embora fosse desconfortável, esta reação, normalmente antecipava uma resposta antitumoral favorável.
Artur estava completamente aderente ao seu tratamento e movido por uma determinação inabalável de contribuir para a obtenção do melhor resultado.
Tolerou os para-efeitos do tratamento com resignação.
Eu tinha por hábito manter um canal livre de comunicação com meus pacientes e os revisava, sempre que houvesse necessidade, além da consulta semanal regulamentar.
O tratamento estendeu-se por um período de três meses.
Eu solicitara, mensalmente, a dosagem do CEA que foi gradualmente caindo. Ao término do tratamento sistêmico o valor do CEA já era de 5 ng/mL, muito próximo da normalidade.
Era um indício favorável de que estávamos no caminho certo. Porém o plano envolvia a repetição dos exames de imagem.
Chegara o momento de olhar a tomografia do abdômen e avaliar as dimensões da lesão metastática no fígado.
Artur realizara este exame duas semanas após o término do tratamento sistêmico programado. Comparecera ao consultório com o exame fechado. Pedira para vir sozinho, obtendo a concordância da família.
Eu tinha uma expectativa favorável, pois sabia que o tratamento proporcionava um bom índice de resposta e o CEA antecipava um desfecho favorável.
Contrário ao habitual, abri o envelope na frente de Artur.
Já tínhamos suficiente intimidade para compartilharmos deste resultado, em primeira mão, juntos.
O resultado correspondia ao esperado.
Havia ocorrido expressiva redução nas dimensões da lesão do fígado, que passara a medir dois centímetros em seu maior diâmetro.
Festejamos o resultado.
Poucas semanas depois Artur foi para a ressecção da lesão no fígado.
Seus exames pré-operatórios estavam bem. As provas de função do fígado eram normais. O cirurgião hepatologista tinha uma preocupação com relação ao risco de sangramento durante a cirurgia, pois era conhecido que o tratamento sistêmico poderia gerar lesão sinusoidal, um dano nos pequenos vasos da circulação do fígado.
Reiterei a ele que isto costumava ocorrer quando o tratamento era de duração maior do que três meses e nos estávamos dentro do limite. Ele também tinha consciência deste fato, pois já havíamos enfrentado outras situações semelhantes juntos, mas mesmo assim tomou todos os cuidados necessários, contemplando o risco.
Foi realizado um exame de ecografia transoperatória em que o aparelho é usado diretamente sobre o fígado, após a abertura da cavidade abdominal. Este exame ajudava, adicionalmente, não somente a avaliar a localização do tumor, como também excluir outros focos de doença no fígado.
A cirurgia foi bem-sucedida.
O tumor foi retirado com margem de segurança e a função hepática preservada. Artur permaneceu hospitalizado por um período de oito dias e teve alta em ótimas condições.
Seu CEA avaliado duas semanas após estava normal.
Artur iniciou seu seguimento com avaliações periódicas que ele sempre cumpriu, rigorosamente.
Hoje já estamos com três anos de acompanhamento e Artur encontra-se sem evidencia de doença.
Retomou sua vida na relação com a família e com o trabalho e nunca mais ingressou na caverna de Platão.
* Todos os personagens são fictícios
** Referências bibliográficas que podem ser encontradas no livro Conexão Anticâncer – as múltiplas faces do inimigo interno de James Freitas Fleck
Habilidades e Competências adquiridas na 10ª Simulação Clínica:
O mito da Caverna de Platão
James Fleck: Conexão Anticâncer, Síntese da 10ª Simulação Clínica
Artur sofrera com uma ideia fantasiosa infantil. Ainda muito pequeno testemunhara inadvertidamente um escarro sanguinolento que fora o presságio da morte paterna. Foi conivente com o pai em ocultar a informação. Sentiu-se culpado. Nunca mais tocara no assunto, sepultando-o no inconsciente.
Sua doença reacendera a chama. Ironicamente a manifestação clínica era de sangramento, que independente da diferente localização anatômica, promovera associação de ideias, recrudescendo o comportamento fantasioso, com consequente ideação de morte. Sob a ótica infantil havia identificação com a doença do pai e Artur estava convencido de que o mesmo desfecho era inevitável.
Artur ingressara na caverna de Platão. Estava acorrentado a fantasia infantil. Ao vivenciá-la, novamente, por ocasião da doença, ficara imobilizado a semelhança dos prisioneiros na caverna. A cumplicidade com o segredo paterno, reforçava a sentença de imobilidade. Nesta visão fantasiosa, Artur nada podia fazer, a não ser aceitar a morte como uma determinação atávica.
Na vida adulta, Artur cultivara uma relação familiar bem estruturada no componente prático e afetivo da vida. A relação com o filho, iniciara o resgate. A demonstração de receptividade genuína do filho permitiu que Artur expressasse com liberdade seus sentimentos reprimidos. A consulta fora a continuidade natural do resgate.
Artur volta a ter visão crítica, saindo da caverna de Platão. Felizmente, contrário a alegoria da caverna, Artur já tivera contato gratificante com o mundo real, durante toda sua vida adulta. Saíra com sucesso, pois seus referenciais no mundo real eram mais fortes, permitindo superar a visão fantasiosa.
Artur passara para a condição de sobrevivente de suas próprias fantasias. No mundo real ele sempre fora bem-sucedido, graças a uma apurada visão crítica. A fantasia o atemorizava sob uma ótica culpada e indefesa infantil. No mundo real tudo podia ser racionalizado com um método de abordagem sequencial que ele passara a dominar com maestria.
A visão crítica permitiu que Artur enfrentasse o câncer com estabilidade emocional. Era uma situação complexa, envolvendo múltiplas interfaces profissionais e diversos procedimentos. O resgate da visão crítica permitiu o compartilhamento da informação e a adequada tomada de decisões. Escudado na visão crítica Artur sentiu-se seguro e a despeito de uma estatística desfavorável voltou a apostar na vida.
A história de Artur ilustra a resignação com a ideia de morte (advinda de associações distorcidas com exemplos passados), que muitos pacientes apresentam mediante o diagnóstico de câncer. Essa ideação de inevitabilidade acarreta impacto psicológico ao paciente, sendo comum introspecção, bloqueio, indiferença, imobilidade, isolamento e depressão. Dessa forma, o papel do médico não se restringe somente ao tratamento do câncer, mas também abrange a experiência da doença vivida pelo paciente, possíveis associações fantasiosas e crises pessoais, visto que a relação médico-paciente é capaz de promover vínculo, compartilhamento e auxílio ao enfrentamento da crise atual.
A reação de cada paciente diverge muito conforme as suas experiências. Nesse caso, a associação de uma memória infantil criou um gatilho que levou o personagem a desesperança quanto a condição da sua doença. Felizmente o instrumento do laço familiar o libertou das angústias e permitiu que o mesmo buscasse o tratamento.
Relato muito interesse, que permite refletir sobre diversas questões, especialmente no que diz respeito à relação médico-paciente. Para mim, o que mais me chamou a atenção - e também pretendo guardar essas informações para a vida profissional - foi a forma com que o médico conseguiu contornar a associação fortíssima que o paciente fazia com o seu diagnóstico e a morte, o que acaba sendo bastante comum entre os pacientes oncológicos, pois o câncer é ainda encarado, possivelmente, como um dos piores diagnósticos que se possa receber. De forma semelhante ao que vimos em outras simulações clínicas, a mensagem que fica é que, a parte de se deter o conhecimento técnico necessário para fornecer e elaborar as melhores estratégias de investigação e de terapêutica para nossos pacientes, conseguir criar um elo de confiança com eles e incentivá-los a adquirir uma postura ativa de enfrentamento contra a doença é parte fundamental do sucesso das intervenções realizadas.
Quanto mais acompanho pacientes na oncologia e leio as simulações, percebo a importância do atendimento psicológico aos pacientes a começar pelo tato do oncologista em tratar desse assunto tão delicado e que carrega tantos tabus. Nesse caso, o médico provavelmente teria recomendado um atendimento psicológico dependendo do estado mental do paciente. No texto, o médico respondeu honestamente a todas as perguntas que o paciente trouxe ao consultório ao contrário da noção que muitas pessoas tem de que o alívio do sofrimento vem do desconhecimento da doença. Tal atitude é de extrema importância na formação de confiança médico-paciente.
Esse caso representa com muita precisão os múltiplos ângulos que um tratamento de câncer requisita, pois o diagnóstico de câncer é uma crise, uma catástrofe para a vida do indivíduo. O conhecimento das drogas mais atuais e dos protocolos que possuem maior eficácia na cura oncológica não são suficientes para o tratamento de um paciente com um câncer, é necessário curá-lo como pessoa, e isso envolve um fator psicológico grande, muito bem representado pela simulação clínica. Mas não só isso, as pessoas são também moldadas pelas relações interpessoais, e o papel do médico para apaziguar essas relações, sempre prezando pelo melhor interesse do paciente em questão, foi muito bem abordado nesse caso.
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