1ª Simulação Clínica

Câncer: O Inimigo Interno

Objetivo:

Exercício de medicina multidimensional na assistência a uma paciente jovem com câncer de mama que pratica a decisão compartilhada

James Fleck: Conexão Anticâncer, 1ª Simulação Clínica


Capítulo 1: Identificando o inimigo interno

Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de cem batalhas. Se você se conhece, mas não conhece o inimigo, para cada vitória ganha, sofrerá também uma derrota. Se você não conhece nem o inimigo nem a si mesmo, perderá todas as batalhas...

Sun Tzu: A Arte da Guerra, Século IV a.C.

Era uma tarde de segunda-feira quando Ruth, uma senhora de 35 anos, comparecia para a primeira consulta. Previamente hígida, mãe dedicada de duas filhas pequenas, havia recentemente passado por uma separação conjugal. Na tentativa de recomeçar a vida foi fazer uma revisão médica, sendo diagnosticado na mamografia um nódulo muito suspeito de malignidade. Seu ginecologista já havia solicitado uma biópsia. O diagnóstico fora carcinoma ductal infiltrativo, uma forma agressiva de câncer na mama. 

Ruth estava muito triste e com dificuldade de expressar-se, pois a fala era interrompida, involuntariamente, por um choro inconformado. A atitude era agressiva. Achava-se injustiçada pela vida e desejava que o diagnóstico estivesse errado. Embora mecanismos de defesa como agressão e negação sejam muito comuns por ocasião do diagnóstico do câncer e não devam ser inteiramente removidos, eles precisam ser trabalhados emocionalmente. Percebi, naquele momento, que estas reações estavam bloqueando a paciente e impedindo uma abordagem mais direta e franca, tanto sobre o diagnóstico como sobre a orientação de tratamento. Ouvi calado, atentamente, sua versão e interpretação da história e procurei demonstrar minha atitude de genuíno interesse em ajudá-la. Este é um momento crucial na relação médico-paciente. O médico embora detenha o conhecimento técnico e seja reconhecido em sua especialidade, tem que se mostrar em sua dimensão humana, simples, acessível e cooperativo. 

Passaram-se trinta minutos da consulta e eu apenas ouvia, sem censura. Subitamente, Ruth interrompeu o ciclo de choro e fala compulsiva, olhou para mim e disse: “Doutor, eu não vim aqui apenas para me queixar. Eu quero resolver o meu problema e preciso de sua ajuda.” Aquela meia hora inicial da consulta serviu para estabelecer um vínculo de confiança e empatia. Ela percebera que poderia expressar livremente sua inconformidade, medo e agressão sem que fosse criticada por isso. Felizmente, não havia antecedentes de doença emocional, o que permitiu o rápido estabelecimento de um vínculo com o médico e a transformação da visão turva inicial em busca ativa de foco e comprometimento. Senti que a consulta tinha atingido seu rendimento máximo para o primeiro encontro, mesmo antes de eu fazer qualquer comentário. 

A partir deste momento, senti-me autorizado a falar. Disse que iria analisar detalhadamente todos os seus exames, conversar longamente com todos os profissionais envolvidos no atendimento e esclarecer todas as suas dúvidas com relação ao diagnóstico do câncer. Solicitei que me fornecesse cópia dos exames. Não olhei os exames durante a consulta, pois o foco de atenção era a paciente. Posteriormente, teria o tempo necessário e apropriado para revisá-los criticamente. Expliquei que ela não estava só, que não somos seres perfeitos e que a doença faz parte da vida. Expliquei que o câncer de mama era o tumor maligno mais frequente nas mulheres e que na maioria das vezes podia ser curado. Disse-lhe que após examiná-la e revisar os resultados laboratoriais, poderíamos conversar francamente sobre suas chances de cura. 

A enfermeira entrou na sala e ajudou Ruth a preparar-se para o exame físico. O nódulo estava situado no quadrante superior externo da mama direita. Tinha cerca de 2 cm de diâmetro e era móvel. Na axila não havia linfonodos palpáveis. Todo o restante do exame físico era normal. Embora não costume fazer comentários durante o exame clínico, não pude deixar de revelar minha opinião de que a doença parecia estar restrita a mama e que os exames de imagem iriam nos ajudar a confirmar esta impressão. Retirei-me da sala de exame, como de costume, para que a enfermeira pudesse ajudar a paciente a vestir-se. Alguns minutos depois, quando voltei ao encontro de Ruth, sua expressão era de maior serenidade. É curioso como a interação humana é capaz de produzir estes rápidos resultados emocionais. Ela estava mais confiante e decidida a recuperar sua saúde. Revelou-me que o ponto central da consulta teria sido o autoconhecimento, podendo constatar a forma como a doença estava interagindo com suas fragilidades. Pediu que nada lhe fosse ocultado. Queria saber mais sobre o câncer, pois isto a ajudaria a enfrentá-lo. Assumiu uma postura disciplinada e cooperativa para com as intervenções médicas. Como tratava-se de uma professora do ensino médio, tinha o vício pedagógico. Pediu-me que lhe fornecesse uma leitura simples e sucinta sobre o que era o câncer, como surgia tão inesperadamente, o que podia ser feito para diagnosticá-lo mais precocemente e especialmente para preveni-lo. Disse que precisava conhecer melhor o “inimigo interno”. 

Embora já tivesse muitos anos de experiência em oncologia clínica, fiquei surpreso com a atitude proativa daquela senhora. Nunca havia me ocorrido produzir material educacional para pacientes. Porém sua postura fora tão enfática que ampliou minha visão assistencial. Passei dois dias elaborando um material informativo, centrado nas solicitações de Ruth. Passei a entender que estas informações poderiam ser úteis para outros pacientes, embora muitos não manifestassem tão claramente o desejo de conhecer o “inimigo interno”.

 

Capítulo 2: Uma carta para Ruth

Encaminhei para Ruth, por meio eletrônico, o seguinte material: 

"Explorar o câncer é tão extenso, quanto olhar para o céu e descrever todas as leis da física. Só que no câncer, tudo baseia-se em uma visão miniaturizada, que vai além do mundo microscópico e chega no universo molecular. O corpo humano é formado por células. As células constituem os tecidos, cujas associações produzem os órgãos do corpo. A expressão da forma e da função celular é determinada por genes. Genes são segmentos de DNA localizados no núcleo das células. Na primeira célula que compõe o nosso corpo, resultante da fecundação já ocorre a ação de múltiplos genes, que localizados nos cromossomas nucleares, vão progressivamente orientando o desenvolvimento embrionário e fetal. Quando o corpo está completo e a criança nasce, mudanças importantes começam a ocorrer. Apenas 10% dos genes, presentes originalmente no genoma humano, mantem-se ativos. Consequentemente, muitos genes, que comandaram a diferenciação celular na fase intrauterina, deixam de atuar, permanecendo inativos no interior das nossas células. Tudo é biologicamente programado com precisão. As chaves que ligam e desligam os genes vão funcionando, no automático, nas diferentes fases do desenvolvimento. Os genes localizados em uma região do cromossoma chamada telômero, controlam o tempo de vida das células, interferindo com a apoptose ou morte celular programada. O encurtamento progressivo do telômero é responsável por nossa finitude. Uma enzima chamada telomerase mantem a estrutura longa do telômero promovendo a imortalidade das células tumorais. O câncer é uma doença na programação genética celular. 

Depois do nascimento passamos a ser vítimas de agressões físicas, químicas e biológicas sobre o DNA nuclear, alterando o controle sobre a expressão dos genes. Estas agressões fazem com que genes inativos possam, anacronicamente, voltar a funcionar, sendo então chamados de oncogenes. Os oncogenes recebem nomes bizarros como c-myc, c-fos e k-ras, entre outros. Quando ocorre aumento do número de cópias de um oncogene, este fenômeno é denominado de amplificação. Um oncogene amplificado modifica o comportamento celular. Magnificando sua ação, promove proliferação celular descontrolada e consequente transformação tumoral. Surgem alterações de expressão biológica, características para cada tipo de tumor. Na sequência, a célula perde, progressivamente, a diferenciação que a caracterizava, mantendo vínculos apenas sutis com a forma da célula original. A célula perde sua programação funcional e altera-se na expressão de genes que controlam a morte celular programada, adquirindo uma aparente independência funcional e imortalidade. Este fenômeno é chamado de perda da apoptose. 

Esta autonomia das células do câncer é fortalecida pela expressão de fatores de crescimento. Estes são substâncias químicas sintetizadas pelas células para estimular sua multiplicação. Curiosamente, a célula tumoral expressa muitos receptores para os fatores de crescimento. A síntese de receptores é controlada por oncogenes. A amplificação de oncogenes na célula tumoral resulta em aumento na expressão de receptores para os fatores de crescimento. Desta forma, ocorre autoperpetuação do crescimento tumoral. O microambiente celular torna-se favorável ao desenvolvimento do tumor, pois tanto as células transformadas, ricas em receptores, como as células normais dos tecidos vizinhos ao câncer sintetizam os fatores de crescimento, potencializando o estimulo proliferativo. As células transformadas, tendo mais receptores tendem a predominar, surgindo o câncer. Muitos destes fatores de crescimento já são conhecidos na sua estrutura química. Alguns guardam relação com a composição química da insulina e por isso são chamados de Insulin-like Growth Factors (IGF-I e IGF-II) outros recebem nomes baseados em seu papel na transformação celular como o Transforming Growth Factor (TGF-alfa, TGF-beta) e o Epidermal Growth Factor (EGF). A natureza, preocupada em proteger o corpo da instabilidade de nosso DNA, colocou em nossas células os genes supressores tumorais. Eles, em condições normais, são excelentes vigilantes, impedindo a carcinogênese. Todavia, há situações de agressão ao DNA que produzem uma mutação exatamente em um gene supressor tumoral. Esta mutação promove o surgimento do câncer por um mecanismo alternativo, independente da amplificação de oncogenes. Como pode ser visto, a célula do câncer consiste em uma grande rede de comunicações bioquímicas, com sinalizações ocorrendo em todas as direções. Porem, os dois mecanismos básicos envolvidos na formação do câncer são a amplificação de oncogenes e a mutação de genes supressores tumorais. Ambos ocorrem como consequência das agressões ao nosso DNA. A partir delas surge toda a cascata de transformações observadas na forma e função das células tumorais. A compreensão de todos estes mecanismos permite entender porque o diagnóstico do câncer precisa ser feito na célula, utilizando o microscópio para documentar as alterações na forma e a imuno-histoquímica para avaliar as modificações funcionais. Recentemente, técnicas de biologia molecular permitiram identificar amplificação de oncogenes e expressão de receptores para fatores de crescimento. Muitas das modernas técnicas de tratamento do câncer com anticorpos monoclonais fundamentam-se neste conhecimento Podemos perceber nesta visão simplificada, que há uma associação de fatores externos e internos favorecendo o desenvolvimento do câncer. 

A idade avançada representa o maior fator de risco, pois o DNA celular fica menos competente para recuperar-se das agressões. Por isso a maior parte dos tumores malignos acontecem após os sessenta anos. Porém a instabilidade do DNA celular pode ocorrer em qualquer idade, até mesmo em crianças. Infelizmente, ainda não há como identificar nesta fase molecular quais as pessoas que vão desenvolver a doença. No futuro, o diagnóstico molecular poderá ser a intervenção de maior impacto na curabilidade do câncer. Embora a linguagem seja muito técnica, o resultado é simples e grosseiro. Uma lesão composta por células sem função, que adquirem aparente imortalidade e que crescendo de forma descontrolada produzem um tumor. O que é mais indesejável e dramático, é que estas células transformadas do câncer desenvolvem a habilidade de ingressar na corrente sanguínea e linfática, implantando-se em outros órgãos do corpo. Esta semeadura de células viajantes da origem as metástases. Na lesão metastática, as células reproduzem o comportamento agressivo e desregrado da lesão primária".

Fiz várias leituras deste texto informativo sobre o câncer antes de encaminhar para a paciente. 

Procurei fornecer-lhe uma visão clara, sem distorções de simplificação excessiva. 

Finalmente, enviei exatamente no formato descrito acima. 

Fiquei aguardando a resposta, que não aconteceu de imediato, nem sequer um aviso de recebimento. 

Como era a primeira vez que produzia material informativo para um paciente, confesso que fiquei preocupado com a receptividade. 

No meu íntimo, havia uma dúvida se estava fazendo a coisa certa. 

Eu poderia ter ignorado a solicitação de informação feita pela paciente e me refugiado em uma posição cômoda de recomendação técnica impessoal. Eu poderia responder de uma forma superficial e caricata dizendo que no câncer as células enlouquecem. Porém nada disso era consistente e me parecia insatisfatório para alguém que tão habilmente teria usado a expressão “inimigo interno”. 

Passaram-se dois dias e nenhum contato. Minha preocupação era crescente. Um dos princípios fundamentais da medicina é o primum non nocere, ou seja, não causar dano. Isto é aplicável tanto no contexto físico, como emocional. Será que eu teria feito a leitura certa de sua necessidade de informação? Não teria me excedido na descrição do “inimigo interno”? Teria sido demasiado técnico gerando um texto incompreensível? Quem sabe teria sido melhor esperar uma nova consulta e explicar pessoalmente? Por mais que refletisse sobre estas questões eu não encontrava a resposta, pois esta teria que vir espontaneamente da paciente. Finalmente, veio a resposta. Chegou por correio eletrônico no terceiro dia. 

Começava com um agradecimento por fornecer-lhe aquele material. Estava satisfeita com a informação, que qualificou como técnica e elucidativa.  Revelou que o conhecimento do “inimigo interno” a teria deixado mais autoconfiante para enfrentar este desafio. Antes era um monstro disforme, agora parecia algo mais compreensível. Disse que passou a enxergar a “cara do câncer” que estava dentro dela. Teve a nítida impressão de que os médicos não se assustavam com esta doença, pois já a entendiam muito bem e eram capazes de tratá-la com sucesso. Disse que tendo sido melhor informada, sentia-se mais participante em seu processo de cura. Neste momento, tive a impressão de que a informação não teria causado dano. Ao contrário, houve um fortalecimento emocional da paciente. 

Embora exista semelhança nos termos, paciente não necessariamente indica comportamento passivo. Ruth tinha uma personalidade forte e inquisitiva. Havia compreendido quem era o “inimigo interno”. Mas Ruth foi além. Queria mais informações. Ela queria saber como e por que o câncer teria se instalado no seu corpo. Achava que estaria sendo castigada por um erro inadvertido em sua vida. Achava que poderia ter sido displicente com sua saúde. A culpa é um sentimento comum, por ocasião do diagnóstico do câncer. Não me surpreendeu que Ruth a expressasse. Muitos outros pacientes já a haviam manifestado. Todos cometemos erros na vida e a culpa os ressuscita em situações adversas. É um sentimento ruim, que pode conduzir a um comportamento depressivo e de autocomiseração, ou seja, sentir pena de si mesmo. Culpa e pena estão muito associadas. Nenhum destes sentimentos ajuda. Precisam ser precocemente enfrentados e removidos do inconsciente de nossos pacientes. Sempre os tratei com diálogo e informação. 

Enviei uma resposta para Ruth. 

Falei de minha satisfação em ajuda-la no conhecimento do “inimigo interno”. Disse que, como ela já havia percebido, o câncer é uma doença imprevisível. Embora existam fatores de risco, eles não agem isoladamente. O surgimento da doença é aleatório. A medicina identifica grupos de pessoas com maior suscetibilidade, mas não consegue apontar qual vai ser o indivíduo que irá desenvolver a doença. Tudo depende da instabilidade da molécula de DNA. Existem vários fatores externos relacionados com a agressão ao DNA. O fumo é um exemplo. As substâncias químicas presentes no tabaco promovem a síntese de radicais livres, impedindo a reparação do DNA e causando subsequente transformação celular tumoral. O tabaco não está apenas relacionado com câncer de pulmão, mas também com câncer de bexiga, estômago, esôfago, boca e laringe, entre outros. O amianto é outra substância química relacionada com o câncer e está associada com um tumor pleural chamado mesotelioma. Os vírus podem interagir com o DNA celular e alterar a sua programação genética. O papiloma-vírus (HPV) está associado com o condiloma acuminado, uma doença sexualmente transmissível. O HPV tem relação comprovada com o câncer do colo uterino. O vírus da hepatite B (HBV) e C (HCV) tem estreita relação com o câncer de fígado. Doentes infectados pelo HIV são propensos a desenvolver linfomas no cérebro, sarcoma de Kaposi e carcinoma epidermóide do canal anal. O vírus Epstein-Barr (EBV) da mononucleose infecciosa e o Human T Lymphotropic Virus Type I (HTLV-1) tem associação com certos tipos de linfomas. As radiações também atacam o DNA, causando a transformação celular neoplásica. A radiação ultravioleta da luz solar está associada com todos os tipos de câncer de pele, a expressão mais comum da doença no ser humano. A perda da imunidade é outro fator que pode promover o desenvolvimento do câncer. Pacientes transplantados que estão sob o efeito de medicamentos imunossupressores, têm maior tendência para o desenvolvimento de linfomas e outros tumores sólidos. Obesidade e ingestão de álcool são fatores e risco para câncer de mama. Além dos fatores de risco já conhecidos, um subestimado número crescente de agressões, ainda não claramente identificadas, podem estar relacionados com a promoção do câncer. Estamos imersos em um mundo de agressões ao nosso DNA. Se existe alguma culpa por isso, esta culpa recai sobre toda a humanidade, que precisa mobilizar-se social e politicamente para diminuir estes riscos.

Desta vez a resposta veio imediatamente depois. 

Ruth parecia gratificada por poder comunicar-se de forma tão direta e espontânea com o médico. Agradecia as informações adicionais e manifestava um certo alivio quanto ao sentimento de culpa. Ela não era obesa e não ingeria bebida alcoólica, fatores de risco que eu havia relacionado com o câncer de mama. Embora esta visão não possa ser tão simplista, pelo menos a ajudou a remover a culpa. Esta era a segunda vez que elaborava material informativo para a paciente. Mesmo que a resposta tenha sido rápida e positiva, ela não me tranquilizou totalmente. Propositadamente, eu havia sido um pouco evasivo. Falei sobre fatores de risco em geral. A ideia central era mostrar que estes fatores eram externos e que Ruth não era diretamente responsável pela existência deles. Mas, omiti um fator interno, sua possível suscetibilidade genética. Quando colhi a história de sua doença, Ruth revelou-me que a mãe e uma tia materna teriam morrido de câncer de mama. Para quem estava recentemente identificando a “cara do inimigo interno” não me parecia razoável colocar sua família como protagonista. Até mesmo, porque isto poderia ser melhor investigado com posterior avaliação de mutações genéticas. Afinal de contas, Ruth tinha duas filhas pequenas. Se viesse a ser demonstrado mutação gênica, isto implicaria em aconselhamento futuro.

 

Capítulo 3: Ruth conhece a extensão de sua doença

Ruth retorna ao consultório. 

Conforme combinado previamente, eu já havia revisado todos os seus exames e conversado com os outros profissionais médicos envolvidos em seu atendimento. 

A revisão do material de biópsia confirmou o diagnóstico de carcinoma ductal infiltrativo. Um exame chamado imuno-histoquímica mostrava uma doença de alto índice proliferativo, através de um marcador denominado Ki67. Sua doença não parecia estar relacionada a hormônios, pois no material da biópsia não havia a expressão de receptores para estrógeno ou progesterona. Um teste, denominado FISH mostrava, na membrana das células tumorais, a expressão de um receptor chamado Her-2. Tratava-se de uma doença que apesar de ser diagnosticada em fase ainda precoce, tinha um prognóstico incerto. Ela teria que ser tratada com cirurgia, radioterapia, quimioterapia e terapia de alvo biológico. Adicionalmente, Ruth teria que ser avaliada quanto a possibilidade de mutação de dois genes chamados BRCA1 e BRCA2, pois tinha história familiar para câncer de mama. 

Eu havia solicitado na primeira consulta, alguns exames para avaliar a presença de metástases. Eram exames de imagem, incluindo raio-X de tórax, ecografia abdominal total e ressonância nuclear magnética do crânio. A expressão de Her-2, a colocava em uma situação de maior risco para a presença de metástases. Felizmente, todos os exames de imagem foram negativos. Ruth não tinha evidência clínica de doença metastática. 

Expliquei-lhe, detalhadamente, todos os resultados daqueles exames e seu significado prognóstico. Ruth ouviu atentamente, disse que o material explicativo que havia lido previamente a ajudara a entender melhor todos os exames. Estava tranquila e expressava autoconfiança. Sentia-se aliviada com o resultado dos exames de imagem que demonstravam uma doença localizada na mama. Afirmou, positivamente que iria se submeter a todo o tratamento e cooperar na obtenção de sua cura. 

No entanto, tinha mais perguntas para fazer. Uma delas era a mais importante. Olhou fixamente para mim e disse: Doutor, eu tenho duas filhas pequenas e preciso saber se posso ter transmitido esta doença para elas. Ruth sempre foi muito direta e clara nos seus questionamentos. 

Senti-me melhor por ela ter feito esta pergunta, pois este era o assunto mais delicado de ser abordado. Respondi de forma um pouco lacônica que ela teria que fazer o teste de mutação para os genes BRCA1 e BRCA2. Como era de se esperar, Ruth perguntou: O que acontece se eles derem positivos? Respondi que este resultado não era uma sentença, mas ajudaria na tomada de decisões. Tudo tinha solução e poderíamos conversar mais detalhadamente no futuro se os resultados fossem positivos. 

Eu tinha por princípio não antecipar problemas. 

Os testes poderiam ser negativos, o que tornaria qualquer argumento desnecessário. Solicitei a avaliação de mutação BRCA1 e BRCA2, explicando que os resultados destes testes costumavam demorar mais de dois meses. 

Ruth concordou com uma abordagem sequencial dos problemas e passou a solicitar detalhes sobre seu tratamento imediato. 

 

Capítulo 4: Preciso saber tudo sobre a cirurgia...

Expliquei que o primeiro passo seria a cirurgia. 

Informei que iria encaminhá-la para um cirurgião mastologista de minha confiança e que iria acompanhá-la em todas as etapas. 

Considerando a dimensão e localização do tumor, seria muito provável que se pudesse preservar a mama, fazendo uma setorectomia, ou seja restringindo a cirurgia ao quadrante afetado pelo tumor. Há muito tempo, já havia sido comprovada a equivalência da setorectomia com a mastectomia, tanto no controle local da doença, como na curabilidade. Além disso a preservação da mama mantinha a integridade corporal, diminuindo o impacto emocional do trauma. 

Informei que o cirurgião também iria explorar sua axila direita para avaliar possível disseminação tumoral pelos vasos linfáticos. Isto era feito por uma técnica simples e pouco invasiva. O cirurgião iria injetar no local ocupado pelo tumor na mama uma substância radioativa e com um probe identificar o primeiro linfonodo de drenagem. Este era chamado de linfonodo sentinela. Se estivesse livre de doença, não haveria necessidade de ampliar a dissecção da axila, evitando posterior edema do braço. 

Ruth interrompeu-me com certa ansiedade e perguntou: Como o cirurgião terá certeza de que removeu todo o tumor? 

Respondi que com relação à drenagem linfática, o linfonodo sentinela negativo antecipava a ausência de comprometimento tumoral da axila. Na mama, o tumor primário passaria no pré-operatório por uma técnica chamada de agulhamento. Este procedimento seria feito por um médico radiologista, especializado em mamografia, que introduziria uma agulha no tumor e faria um raio-X de controle. Quando no transoperatório o cirurgião removesse o setor doente da mama, este material iria novamente para o raio-X e seria feita uma análise comparativa das imagens para assegurar-se da remoção completa do tumor. Além disso, um patologista estaria presente na sala de cirurgia. Ele faria o exame de congelação do linfonodo sentinela. Neste exame o linfonodo seria resfriado com nitrogênio líquido, o que permitiria a realização de um corte para exame microscópico transoperatório. 

Olhei para Ruth e sua expressão, naquele momento, era serena. A mama é um órgão que tem múltiplos significados para a mulher. Vincula com a maternidade e a amamentação, duas funções centrais na psicologia feminina. Tem implicações na sexualidade. A autoestima tem relação com a integridade física das mamas. A mulher é muito autocrítica com relação a sua silhueta corporal e as mamas tem importante papel neste contexto. A possibilidade de tratar o câncer da mama com preservação do órgão, retirando somente o setor comprometido pelo tumor, foi um dos avanços mais importantes da medicina. Quando mencionei a Ruth que seria muito provável que ela viesse a ser submetida a uma cirurgia conservadora da mama, percebi o quanto ela se sentiu aliviada com esta informação. 

Estes são momentos muito gratificantes do exercício da medicina, quando a palavra produz resultados tão importantes quanto a intervenção medicamentosa. Mesmo quando é necessário retirar integralmente a mama existe resgate com cirurgia plástica reparadora. Outro momento fascinante da medicina, pois reúne o talento técnico do cirurgião com a expectativa de reconstrução estética corporal da paciente. Minha experiência em oncologia clínica há muito tempo me ensinara que neste momento do tratamento do câncer de mama ocorria um dilema para as pacientes. Elas desejam manter sua integridade física, mas sabiam que seria necessário e indispensável remover todo o tumor. 

Ruth não fugiu a esta regra. Na mesma medida em que se sentiu feliz por não precisar remover toda a mama, também manifestou sua preocupação quanto a remoção completa do tumor. Ruth compreendeu a série de cuidados que conduziriam a ressecção completa do tumor da mama e a preocupação que os médicos teriam em manter sua integridade corporal.  

Mutuamente concordamos que poderíamos encerrar a consulta, pois todas as decisões posteriores dependeriam dos achados pós-operatórios. Ruth já estava mais familiarizada comigo e sabia da minha conduta de não antecipar preocupações. 

 

Capítulo 5: Médicos trabalhando em sintonia

Começa o tratamento de Ruth!

Fiz a recomendação de um cirurgião mastologista de minha confiança e solicitei a Ruth que marcasse a consulta com a máxima brevidade. 

Três dias após ela já havia feito a consulta com o cirurgião. Transferiu para ele a mesma relação de confiança que já havia estabelecido comigo. Quando os médicos trabalham de forma integrada e têm afinidade e respeito profissional mútuo esta transferência de confiabilidade ocorre naturalmente. O cirurgião havia me ligado logo após a consulta e confirmado minha impressão inicial quanto a possibilidade de preservação da mama. Ele já havia informado Ruth desta decisão e marcado a cirurgia. 

Chegou o dia da cirurgia. 

Acompanhei Ruth até o bloco cirúrgico. Ela já havia feito o agulhamento do tumor da mama. Seus exames pré-operatórios eram normais e ela estava confiante. A cirurgia transcorreu sem complicações. O patologista estava na sala e examinou o linfonodo sentinela, indicando ausência de comprometimento pelo tumor. Ruth teve alta 48 horas após a cirurgia. 

Sentia-se bem, havia vencido aquela etapa do tratamento. No entanto, a alertei de que a avaliação do linfonodo sentinela não era definitiva. O patologista teria que confirmar este achado negativo. Felizmente, Ruth não me perguntou o que ocorreria, se contrário a impressão inicial, o linfonodo sentinela fosse positivo. Acho que já havia se familiarizado com a ideia da abordagem sequencial. Já tinha aprendido a melhor tática para lidar com o “inimigo interno”. 

O patologista fez a avaliação definitiva do tumor, confirmando os achados indicados anteriormente na biópsia e a ausência de doença no linfonodo sentinela, já antecipada no exame transoperatório. Este exame chamado anatomopatológico (AP) é sempre aguardado com muita expectativa. Ele é realizado em condições ideais no laboratório de patologia e normalmente confirma os achados transoperatórios. Muito raramente, pode ocorrer divergência. Quando há divergência, isto determina modificação de conduta. Se por hipótese, o linfonodo sentinela fosse positivo no AP, Ruth teria que ser submetida a uma nova cirurgia, voltada para a exploração da axila. O linfonodo sentinela positivo indica que a doença disseminou por via linfática e o médico necessita da informação do número de linfonodos axilares comprometidos pelo tumor. Isto tem implicações no prognóstico e no tratamento da paciente. Infelizmente a medicina não é uma ciência exata e esta divergência pode acontecer. Quando ocorre, gera insegurança na paciente, pois ela já se julgava livre do tumor. Esta é a razão pela qual eu havia alertado Ruth para a necessidade de aguardar o exame definitivo. 

Nenhum exame isolado em medicina tem sensibilidade e especificidade de 100%. Isto significa que podem existir resultados errados, chamados falsos positivos e falsos negativos. A maior segurança de um diagnóstico é somente proporcionada pela combinação de achados clínicos e laboratoriais, associados a experiência e visão crítica do médico. Todos os médicos têm consciência desta limitação dos métodos. Esta é uma das razões pelas quais o exercício da medicina não admite um comportamento arrogante e prepotente. Todo o médico tem que aprender a trabalhar com humildade no universo das probabilidades.

 

Capítulo 6: O obstinado caminho da cura

Ruth retorna para nova avaliação no consultório. 

Eu já havia planejado toda a sequência de seu tratamento. 

Apesar da doença estar clinicamente localizada na mama e sem envolvimento linfático, ela teria que fazer quimioterapia e radioterapia, seguidas de uma droga denominada trastuzumab. O câncer de mama é uma doença sistêmica, pois células tumorais podem disseminar por via sanguínea em uma fase muito precoce de sua instalação, inclusive anterior a expressão clínica da doença. Estas células são denominadas de micrometástases e a probabilidade de sua presença é dependente da agressividade intrínseca do tumor. 

Ruth tinha uma doença agressiva. Era uma jovem senhora de 35 anos, seu tumor media 2 cm, não era hormônio dependente e apresentava um índice proliferativo (Ki67) elevado, aliado a expressão do receptor para Her-2. Comuniquei a paciente as minhas recomendações e coloquei-me à disposição para responder suas perguntas. 

Nesta tarde minha agenda estava lotada. 

Para conseguir atender todos os pacientes teria que ser muito objetivo e direto. Felizmente Ruth estava tranquila e já tinha acumulado bastante conhecimento sobre o “inimigo interno”, o que facilitou muito minha abordagem. Expliquei que todos estes tratamentos eram tóxicos, mas que vários estudos clínicos haviam demonstrado seu benefício, tanto no controle local como sistêmico da doença. Disse que a duração total de seu tratamento seria de no máximo 15 meses e que eu a acompanharia durante todo este tempo. Ruth, mostrando-se preocupada, afirmou que entendera os benefícios, mas que desejaria conhecer melhor os riscos do tratamento. Sempre que tinha que responder a esta pergunta, começava descrevendo os para-efeitos mais visíveis da quimioterapia. O cabelo iria cair. Esta queda não seria imediata. Iria ocorrer cerca de três semanas depois do primeiro ciclo. Não seria definitiva. A quimioterapia teria uma duração inferior a quatro meses. Após seu término o cabelo retornaria revigorado. A imunidade tendia a cair, sendo necessário maior vigilância sobre infecções. Vômitos eram infrequentes. Felizmente, a medicina evoluíra muito no tratamento de suporte a quimioterapia. Já eram conhecidos quais os receptores do centro do vômito, localizados no sistema nervoso central, que interagiam com as drogas da quimioterapia e sabíamos como bloqueá-los. Falei que a associação da quimioterapia com trastuzumab implicaria em cuidados adicionais para com a função cardíaca. Disse que faríamos um teste de base de sua função cardíaca e que ele seria usado para acompanhamento durante o tratamento, antecipando riscos. Seu tumor estava localizado na mama direita, o que diminuiria o volume de irradiação sobre a área cardíaca. Informei que sempre que lidávamos com irradiação e quimioterapia precisávamos ficar atentos para o risco de oncogênese secundária, ou seja, a indução de um segundo tumor pelo tratamento. Porém, expliquei que este risco era muito pequeno com as técnicas atualmente empregadas e expressivamente menor quando comparado aos benefícios do tratamento. 

Ruth, assumindo uma atitude pensativa, perguntou: Por que tenho que fazer radioterapia se eu já extraí todo o tumor? 

Sorri respeitosamente. 

Não pude deixar de achar interessante a forma como Ruth formulou esta questão. A construção da frase dava a ideia de que Ruth havia se integrado ao grupo de trabalho e participado ativamente na “extração do tumor”. Na verdade, participou efetivamente, com sua postura proativa e aberta para a informação. Mencionei a Ruth esta impressão favorável, até para justificar minha atitude de descontração. 

Como sempre a pergunta era pertinente. Expliquei que a radioterapia dava maior garantia de controle local da doença, especialmente em cirurgia conservadora da mama. Acrescentei, que o próprio trastuzumab iria auxiliar no controle local, além de sua função no controle sistêmico da doença. 

Ruth perguntou por que tinha que usar trastuzumab? 

Respondi que o tumor da mama tinha 2 cm e expressava um receptor chamado Her-2. O trastuzumab é um anticorpo monoclonal. Uma droga inteligente que ao se acoplar ao receptor Her-2, presente na parede da célula tumoral, interrompe um sinal de estímulo para multiplicação celular. Estudos clínicos já tinham demonstrado este benefício, com redução da probabilidade de recidiva. 

Ruth reassumindo sua postura proativa afirma: Bem, vamos em frente. Quando irei começar este tratamento? 

Respondi que muito em breve. 

Solicitei os exames pré-tratamento e pedi que Ruth conversasse um pouco com as enfermeiras e farmacêuticas da quimioterapia. Elas Iriam fazer o agendamento e fornecer-lhe informações adicionais. Eu procuro sempre promover este encontro. O trabalho em grupo e a visão multiprofissional sempre amplia a base de apoio ao paciente. As enfermeiras fazem uma apresentação da área de tratamento ao paciente e as farmacêuticas mostram os cuidados que serão tomados na preparação dos medicamentos. Tudo fica registrado e documentado, sendo possível rastrear pelo número do lote, todos os medicamentos que entram na veia do paciente.

Minha agenda já estava atrasada em 30 minutos. 

Não é possível cronometrar o exercício da medicina. Tenho por princípio concluir a consulta somente quando seus objetivos foram atingidos. Todavia, como a consulta consiste em uma interação médico-paciente, as variáveis são infinitas. Para evitar frustrações mútuas, sempre que percebo que as necessidades do paciente não irão ser esgotadas, proponho uma lista de questões e marco um novo encontro para continuidade. Mantenho-me disponível para contato por telefone ou correio eletrônico. No exercício da medicina, a disponibilidade é tão importante quanto o conhecimento técnico. Curiosamente, quanto mais disponível o médico se coloca na assistência aos pacientes, menos eles o solicitam. Esta constatação, aparentemente contraditória, leva a crer que, na maior parte das vezes, o contato com o médico fora dos horários habituais do atendimento está associado a insegurança.

 

Capítulo 7: Ruth questiona o risco familiar

Passaram-se três meses. 

Ruth já havia completado seu tratamento com quimioterapia e iniciado a radioterapia. 

Tudo transcorria bem, quando recebi o resultado da avaliação de mutação dos genes BRCA1 e BRCA2. 

Eu já havia combinado previamente com o laboratório que este exame deveria ser encaminhado diretamente ao meu consultório. Este é um exame que precisa ser explicado detalhadamente ao paciente, pois sua implicação extrapola o limite individual, passando a ter repercussões sobre a família. Olhei para o envelope, cauteloso. Antes de abri-lo verifiquei com minha secretária para quando estava marcada a reavaliação de Ruth. Ela retornou dizendo que seria em uma semana. Respirei aliviado, pois isto me daria o tempo suficiente para lidar com o resultado, independente de qual fosse. Abri o envelope. Felizmente o teste tinha sido negativo para mutação de ambos os genes e isto iria poupar Ruth de sofrimento adicional. 

Apenas 10% das pacientes com câncer de mama, apresentam suscetibilidade genética. Quando há componentes hereditários associados, o diagnóstico ocorre em mulheres jovens. Os testes de mutação para BRCA1 e BRCA2 são os mais utilizados para avaliação de suscetibilidade genética. A mutação BRCA1 está associada com um risco acumulativo de 65% para desenvolvimento de câncer de mama ao longo da vida. Na mutação BRCA2, este mesmo risco acumulativo é de 45%. Adicionalmente, estas pacientes têm um risco maior de desenvolvimento de câncer de ovário ou peritônio, sendo de 44% na mutação BRCA1 e 11% na mutação BRCA2. O risco é maior quando a paciente apresenta mutação para ambos os genes. Isto pode levar a recomendações extremas como mastectomia profilática bilateral, em que ambas as mamas são removidas preventivamente, visando retirar todo o tecido mamário, seguida da colocação de prótese bilateral. Pode também levar a indicação de retirada preventiva de trompas e ovários, após a concepção. 

São decisões muito difíceis e normalmente compartilhadas com a paciente e familiares. 

O fato de Ruth ter ambos os testes negativos gerava maior tranquilidade, porém sua história familiar para câncer de mama e a idade relativamente precoce de sua instalação ainda me preocupavam. Ainda que as mutações BRCA1 e BRCA2 sejam as mais importantes, existem outros fatores associados com a suscetibilidade genética e Ruth tinha duas filhas pequenas, reforçando uma preocupação que ela já manifestara. 

Ruth retornou para nova avaliação. 

Comuniquei-lhe a negatividade dos exames de mutação gênica. 

Ela sentiu-se aliviada. 

Durante todo o período em que esperava estes resultados, Ruth nunca mais havia tocado no assunto. Fazia, como eu a tinha recomendado, uma abordagem sequencial. 

Expliquei que o risco para as meninas era muito pequeno, mas que considerando sua história familiar e a sua idade por ocasião do diagnóstico, eu iria indicar o aconselhamento genético. Expliquei que isto era feito por um grupo de profissionais muito qualificado e experiente que lidava com todas as implicações pessoais e familiares de ordem médica, ética e social. Era uma medida preventiva que iria tranquilizá-la, pois estes profissionais manteriam a vigilância sobre o problema e iriam orientá-la quanto a melhor conduta no cuidado futuro das filhas. 

Ruth manifestou seu agradecimento e voltou novamente o foco para seus cuidados pessoais. Manteve-se aderente ao tratamento e cumpriu todas as recomendações. Ela completou o tratamento prescrito com 100% de intensidade de dose. Este é um parâmetro utilizado em oncologia que indica que a paciente conseguiu receber a totalidade da dose prescrita de cada um dos medicamentos, no tempo previsto de administração, ou seja, sem retardo. Os para-efeitos foram mínimos e transitórios. 

Hoje, passados 5 anos de seu diagnóstico, Ruth encontra-se totalmente assintomática e sem evidência de doença. Vem sendo mantida sob meu acompanhamento periódico e sua família está sob aconselhamento genético. Ruth iniciou um novo relacionamento afetivo há 3 anos. Seu atual companheiro participa de todas as consultas. Houve um genuíno entrosamento do casal. Sente-se confiante e otimista em relação à vida. Recentemente completou uma tese de doutorado em pedagogia intitulada: “O Uso da Informação no Enfrentamento das Crises Vivenciais e Adversidades.”

 

*  Todos os personagens são fictícios  

** Referências bibliográficas que podem ser encontradas no livro Conexão Anticâncer – as múltiplas faces do inimigo interno de James Freitas Fleck

 

Habilidades e Competências adquiridas na 1ª Simulação Clínica:

Informação e decisão compartilhada

James Fleck: Conexão Anticâncer, Síntese da 1ª Simulação Clínica

Ruth manifestou seu comportamento inquisitivo desde a primeira consulta. Havia uma reação inicial agressiva que rapidamente ela direcionou contra a doença. Era uma mulher sofrida, marcada por uma separação recente e tentando reposicionar-se na vida por ocasião do diagnóstico do câncer. 

A objetividade dominou o cenário e Ruth concentrou seus esforços na busca da informação técnica. Optou por uma abordagem com viés pedagógico, absolutamente compatível com sua orientação profissional. Usou esta habilidade natural para fortalecer-se. Manteve foco e foi progressivamente conhecendo o inimigo interno, especialmente em sua expressão orgânica.

Ruth percebeu que a doença era bem compreendida pelos médicos, que dominavam o comportamento biológico do câncer e tinham condições técnicas para interferir favoravelmente no desfecho. A informação fortaleceu os vínculos e ela passou a participar ativamente de todas as decisões médicas. Sentiu-se envolvida em seu processo de cura. Utilizou o aprendizado para afastar sentimentos negativos de medo, culpa e autocomiseração. Ordenou, sequencialmente a informação, dosando-a na medida exata de sua habilidade em compreende-la e processa-la emocionalmente. Exigiu do médico disponibilidade, manifesta através de um comportamento profissional receptivo e cooperativo.

A autoconfiança cresceu paralelamente à informação, proporcionando serenidade e objetividade para compartilhar decisões. Ruth entendeu a medicina como uma ciência de probabilidades e trabalhou em conjunto com os médicos para maximizar suas chances de cura. Expressou seu senso crítico no avaliação de riscos e benefícios das intervenções terapêuticas, balizando as recomendações. Entendeu a importância do trabalho interdisciplinar, envolvendo esforços complementares de múltiplos profissionais no enfrentamento do câncer. Estabeleceu vínculo com todos os profissionais. Encerrou seu tratamento fortalecida em sua autoimagem, o que lhe permitiu iniciar novo relacionamento afetivo.

A história de Ruth ilustra como o compartilhamento da informação técnica auxilia o paciente. Partindo de um estímulo motivacional de resgate à vida, a informação vincula seletivamente o consciente com a subjetividade. Deve ser uma busca ativa, que transcende a curiosidade, pois completa lacunas emocionais. O paciente dosando a informação, vai progressivamente dominando a dualidade do inimigo interno. Nenhuma informação técnica é demasiadamente complexa a ponto de não poder ser explicada com detalhes ao paciente. É necessário ajustar a linguagem, porem sem comprometer o significado. É uma arte que precisa ser exercitada por todos os profissionais e organizações direta ou indiretamente ligados a prevenção, diagnóstico e tratamento do câncer. A informação técnica é a base ética do consentimento. Ela remove o paciente de uma posição contemplativa e sustenta o adequado encaminhamento das decisões.