Um pequeno resgate diante de uma inaceitável falha no rastreamento
Fleck, JF & Brondani, G: Conexão Anticâncer 21(01), 2019
Falha na vacinação para HPV e rastreamento cito-patológico são responsáveis por uma incidência mundial de 569847 casos de carcinoma de colo uterino. Estes dados, extraídos da International Agency for Research on Cancer em 2018, são magnificados em seu impacto epidemiológico com uma mortalidade de 311365 casos. A despeito do rastreamento do câncer de colo uterino ser considerado uma recomendação de categoria A pela US Preventive Service Task Force, esta política de saúde vem sendo menosprezada no mundo, o que se traduz em um desastre humanitário. Sensível as inequidades e buscando maior abrangência e eficiência em detecção precoce, pesquisadores da Division of Cancer Epidemiology and Genetics, National Cancer Institute, Bethesda, MD, USA identificaram na inteligência artificial um aliado simples, confiável e universal para uma prevenção mais eficiente. Em janeiro de 2019 foi publicado no Journal of National Cancer Institute um estudo longitudinal de base populacional, validando a utilização de imagens digitalizadas do colo uterino na identificação de alterações pré-malignas (NIC2 e NIC3) e carcinoma in situ (CIS). Testado em população de risco, o método revelou uma acuidade diagnóstica (AUC = 0.91) vantajosa ao ser comparada com exame cito-patológico convencional do colo uterino (AUC = 0.71).
No Brasil, o carcinoma do colo uterino corresponde a terceira neoplasia em incidência e a quarta em mortalidade nas mulheres, segundo dados atualizados do Instituto Nacional do Câncer. Muitas pacientes são diagnosticadas em fase localmente avançada ou metastática, reduzindo ou anulando a expectativa de intervenções com intuito curativo. Casos de carcinoma de colo uterino localmente avançados não são candidatos a cirurgia, sendo tratados com a combinação de radioterapia + cisplatina. Infelizmente, a recidiva não é infrequente, ocorrendo em um cenário desfavorável e de possível resistência à cisplatina.
Na tentativa de proporcionar melhora no tratamento paliativo de pacientes com carcinoma de colo uterino recorrente, persistente ou metastático, o New England Journal of Medicine publicou em 2014 um estudo fatorial 2 x 2 visando avaliar o uso de bevacizumab e quimioterapia combinada destituída de platina. O racional duplo envolvia a tentativa de contornar a resistência à cisplatina e bloqueio da angiogênese. Dois braços de quimioterapia com paclitaxel foram desenhados, sendo um associado à cisplatina e o outro associado ao topotecan. O bevacizumab, um anticorpo monoclonal humanizado recombinante contra o VEGF (Vascular Endothelial Growth Factor), reduz a angiogênese mediadora da progressão de doença. No estudo GOG 240 foram randomizadas 462 pacientes para os dois braços de quimioterapia associados ou não ao bevacizumab. Houve equivalência nos dois braços de quimioterapia (HR = 1.2). No entanto, a associação de bevacizumab à quimioterapia mostrou um aumento na sobrevida global mediana, passando de 13,3 meses para 17 meses (HR = 0.71, P= 0.004). Este benefício de 3,7 meses na sobrevida mediana foi obtido às custas de maior toxicidade ocorrida na associação de quimioterapia com bevacizumab (hipertensão de grau 2, eventos tromboembólicos de grau 3 e fístulas gastrintestinais de grau 3).
Embora o benefício estatístico seja inquestionável, ele ocorre em um cenário indesejável de falha na vigilância epidemiológica e não justifica o descaso nos cuidados de atenção primária à saúde da mulher.
Referências:
Krishnansu S. Tewari, Michael W. Sill, Harry J. Long III, et al:Improved Survival with Bevacizumab in Advanced Cervical Cancer, N Engl J Med370: 734 – 743, 2014
Liming Hu, David Bell, Sameer Antani, Zhiyun Xue, et al: An Observational Study of Deep Learning and Automated Evaluation of Cervical Images for Cancer Screening, JNCIJan, 2019
É absolutamente fantástico como a ciência, a cada ano que se passa, consegue mostrar a superação da raça humana em certas situações, visto que, antigamente, nem se ousava falar em cura do câncer. Aos poucos, a cada avanço, vemos que estamos chegando cada vez mais perto disso. É uma ótima época para se estar vivo.
Infelizmente, não se tem observado redução significativa nas taxas de mortalidade por carcinoma de colo uterino no Brasil, o que sugere haver déficit na captura da população suscetível, baixa qualidade do exame de Papanicolau e falhas na condução dos casos com lesões suspeitas. Essas taxas têm permanecido relativamente estáveis nas últimas três décadas, variando de 5,0 por 100 mil mulheres em 1979 para 4,7 por 100 mil mulheres em 20113 . Isso demonstra que diagnóstico de carcinoma de colo uterino acontece, na maior parte das vezes, em fase avançada da doença e, consequentemente, haja pior sobrevida. Assim, é essencial que alternativas terapêuticas para carcinoma de colo uterino sejam estudadas, como o bevacizumab, o qual parece proporcionar resultados muito interessantes quando associado à quimioterapia.
É absurdo o fato de que métodos de prevenção relativamente simples (e sabidamente eficazes) - tais quais a vacinação contra o HPV e o rastreamento citopatológico - ainda sejam restritos a apenas uma parcela da população, quando comprovadamente eles aumentam as chances de cura da doença. Ainda que avanços fantásticos em termos de tratamento do câncer estejam acontecendo a cada dia que passa, é fundamental que se concentrem esforços também em prevenção, já que um diagnóstico precoce pode significar mais e melhores opções de tratamento, visando, muitas vezes, a cura.
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