Voo curto para uma distância transatlântica
Peixoto, J & Fleck, JF: Conexão Anticâncer 01(05), 2018
O Glioblastoma Multiforme (GBM) é o subtipo mais comum de tumor maligno no sistema nervoso central de adultos e, ironicamente, o mais letal. Após o diagnóstico, a sobrevida mediana é de 14,6 meses. Poucos pacientes atingem sobrevida igual ou superior a dois anos, a despeito do tratamento combinado incluindo cirurgia, radioterapia e quimioterapia com temozolomida. Há um elevado índice de recidiva e baixa probabilidade de resgate. O último progresso no tratamento do GBM ocorreu há mais de dez anos e trouxe consigo a expectativa do tratamento personalizado. O padrão de tratamento para o GBM até 2005 era a ressecção cirúrgica, seguida de radioterapia adjuvante. Em 2005 Roger Stupp e colaboradores do European Organization for Research and Treatment of Cancer Brain Tumor and Radiotherapy Groups and the National Cancer Institute of Canada Clinical Trials Group (EORTC – NCIC), publicaram um artigo no New England Journal of Medicine com significativa mudança no cenário de tratamento. No estudo, foi comparado, em eficácia e segurança terapêutica pós-operatória, a radioterapia (RT) isolada com a radioterapia associada à temozolomida (RT+T), administrada concomitantemente e após a irradiação. Pacientes com diagnóstico histológico de GBM foram randomizados em primeira linha para receber RT exclusiva (60Gy em frações diárias de 2Gy administradas 5 dias/semana/6 semanas ou (RT+T), no qual a T foi administrada primeiro de forma continua (Dose T = 75mg/m2/dia/7 dias/semana) durante toda a RT, seguida de seis ciclos de tratamento adjuvante intermitente (Dose T = 150 a 200 mg/m2/5 dias a cada 28 dias). O desfecho primário avaliado pelo estudo foi a sobrevida global. O estudo incluiu 573 pacientes de 85 centros. A idade mediana foi de 56 anos, sendo 84% dos pacientes submetidos à cirurgia de citorredução. A mediana de sobrevida foi de 14,6 meses no braço teste (RT+T) e 12,1 meses no braço controle com RT isolada. A sobrevida em dois anos foi 26,5% com o tratamento combinado (RT+T) versus 10,4% com RT exclusiva. A concomitância do tratamento no braço combinado (RT + T) resultou em 7% de efeitos tóxicos hematológicos (G3 + G4). Todavia, o índice terapêutico ainda favoreceu a combinação (RT+T) e um avanço em medicina personalizada permitiu identificar um importante fator prognóstico e preditivo.
Um estudo contemporâneo realizado por Hegi e colaboradores e publicado na mesma edição do New England Journal of Medicine estudou a importância da O6-metilguanina-DNA metiltransferase (MGMT), uma enzima que repara o dano ao DNA causado por agentes alquilantes como a temozolomida. Observou-se que a metilação do promotor da MGMT desativava a transcrição do gene, reduzindo o nível intracelular de MGMT e inibindo o mecanismo de reparo ao DNA. Como consequência, a metilação do promotor da MGMT acentuava o efeito antitumoral do agente alquilante (T), sendo possivelmente responsável pelo pequeno benefício observado no braço de tratamento combinado (RT+T) do estudo EORTC – NCIC. O modelo continua sendo usado como um marco histórico no tratamento personalizado.
O primeiro voo motorizado feito pelos irmãos Wright em 17 de dezembro de 1903 durou apenas 12 segundos e percorreu 37 metros. Somente em 14 de junho de 1919 John Alcock faz o primeiro voo transatlântico sem escalas, percorrendo 3186 Km. Guardadas as proporções, a Medicina ainda tem três anos para reproduzir o avanço tecnológico da aviação no cenário do GBM.
Referências:
Roger Stupp, M.D., Warren P. Mason, M.D., Martin J. van den Bent, M.D., et al: Radiotherapy plus Concomitant and Adjuvant Temozolomide for Glioblastoma, N Engl J Med 352:987-96, 2005
Monika E. Hegi, Ph.D., Annie-Claire Diserens, M.Sc., Thierry Gorlia, M.Sc., et al: MGMT Gene Silencing and Benefit from Temozolomide in Glioblastoma, N Engl J Med 352:997-1003, 2005
Mesmo não apresentando uma melhora significativa na sobrevida global, é importante a busca por novas drogas e métodos que combatam o glioblastoma multiforme Além disso,deve se priorizar a qualidade de vida do paciente e não somente a sua sobrevida ao contrário da crença popular .O que fica bem exemplificado neste estudo que mostra o aumento da toxicidade devido ao novo tto
O glioblastoma é uma neoplasia com um prognóstico muito ruim, por isso mesmo resultados em que não seja demonstrado um ganho de sobrevida muito significativo são de extrema valia não só para a aplicabilidade clínica, mas também para o direcionamento de futuros estudos que possam desenvolver ainda mais as ferramentas de combate a essa doença. E em casos como esse, pequenos ganhos de sobrevida podem ter um significado muito grande na vida do paciente, visto que o conhecimento do prognóstico da doença impacta grandemente nas decisões tomadas após o diagnóstico.
Nossos principais inimigos na medicina já foram os microrganismos invasores, mas agora temos uma grande gama de "novos inimigos" internos. Como parar algo que é fruto de erros do nosso próprio corpo? Assim como ganhamos, por enquanto, a batalha contra os vírus e bactérias, poderemos um dia derrotar tumores graves como o glioblastoma multiforme? Creio que, com o conhecimento cada vez maior dos mecanismos responsáveis pela gênese, manutenção e proliferação do câncer, poderemos detectar então as alterações específicas de cada paciente, tratando-as assim de forma personalizada. Infelizmente o glioblastoma ainda possui um prognóstico muito ruim, e para alcançarmos as melhores taxas de sobrevida, que ainda assim são baixas, ainda são necessários tratamentos agressivos ao paciente, muitas vezes acabando com a já pouca qualidade de vida da pessoa doente. Mas pouco a pouco, como demonstrado no estudo relatado, entendemos melhor como o tumor e as próprias novas drogas agem, trazendo mais possibilidades de tratamento, abrindo portas para novos estudos e, mesmo que com ganhos pequenos, sobrevida aos pacientes.
Os fatores etiológicos que acarretaram no aumento da incidência de tumores cerebrais em todas as faixas etárias ainda não são bem definidos. Uma relação bem determinada entre a ocorrência de tumores cerebrais e os fatores ambientais (pesticidas, campos eletromagnéticos e exposição à radiação) também ainda não foi completamente elucidada. As condições genéticas que possibilitam o desenvolvimento desses tumores têm sido muito estudadas nos últimos anos com grandes implicações em seu tratamento. O tratamento dos tumores cerebrais – e aqui falamos sobre o glioblastoma multiforme - é determinado pelo tipo histológico bem como por sua localização. Alguns fatores de extrema relevância relativos às condições clínicas do paciente como estado neurológico, índice de Karnofsky (índice prognóstico), idade, comorbidades clínicas e expectativa de vida também devem ser considerados. Assim sendo, como o GBM trata-se de uma neoplasia maligna muito agressiva, deve-se sempre ponderar os ganhos e perdas da instituição de um tratamento agressivo, que na maioria das vezes, prejudicará em uma magnitude muito alta a qualidade de vida do tempo restante de um paciente com prognóstico muito reservado. Entretanto, a clarificação dos mecanismos de patogênese dos tumores e o descobrimento de novas drogas vêm mudando lentamente este panorama, fazendo com que os tratamentos possam ser otimizados e individualizados, propiciando um aumento na expectativa de vida (ainda que pequeno).
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