Teste Universal de Câncer

Fato ou ficção

James Fleck: Conexão Anticâncer 29(08), 2020

Não é fácil traçar uma linha divisória entre fato e ficção. Normalmente, a ficção é universal e a realidade é particular. Embora o fato não possa ser completamente separado da ficção, ele costuma ser discreto e específico. Por definição, um Teste Universal de Câncer seria uma ficção, porém avanços recentes tendem a torná-lo uma realidade. Usando critérios rígidos, o diagnóstico precoce do câncer em uma amostra de sangue migrará da ficção para a realidade somente quando a sensibilidade e a especificidade do teste atingirem 100%. Na medicina, a sensibilidade do teste é sua capacidade de identificar corretamente os pacientes com a doença (taxa de verdadeiros positivos), enquanto a especificidade do teste é sua capacidade de identificar corretamente os pacientes sem a doença (taxa de verdadeiros negativos). Consequentemente, um falso negativo é uma perda de sensibilidade e um falso positivo é uma perda de especificidade. Qualquer índice de sensibilidade ou especificidade abaixo de 100% pode eventualmente causar danos. Um falso negativo (perda de sensibilidade) significa que o teste não foi útil para detectar a doença, e um falso positivo (perda de especificidade) cria uma doença onde ela não existe. A condição ideal provavelmente nunca será alcançada e um Teste Universal de Câncer permanecerá fictício. No entanto, a ciência médica não é totalmente precisa. Ela é baseada em probabilidades, o que amplia a linha tênue que medeia entre ficção e realidade. Essa é a natureza da ciência médica, exigindo sempre compreensão mútua e forte comprometimento entre médico e paciente.

Atualmente, o rastreamento do câncer é baseado em uma abordagem orientada para o órgão-alvo, carente de atualização.  A prevalência do tumor, o valor preditivo do teste positivo e os critérios de acompanhamento programado são usados ​​para calcular o número de pacientes que precisam ser examinados (NNS) para detectar um único câncer. O modelo mais eficiente é encontrado no câncer colorretal. O uso combinado de teste imunoquímico fecal (FIT) com a colonoscopia conduz a um NNS de 12, levando a uma recomendação da US Preventive Services Task Force (USPSTF) de categoria A (alta certeza de benefício substancial). Além disso, apenas o exame de Papanicolau, utilizado no rastreamento do câncer do colo uterino, também é classificado como categoria A na recomendação da USPSTF. O rastreamento desses dois tumores malignos reduziu substancialmente sua incidência e mortalidade. O rastreamento do câncer de mama por mamografia para mulheres entre 50 a 74 anos e o rastreamento do câncer de pulmão com TC helicoidal de baixa dose para tabagistas com mais de 30 anos-maço entre 55 a 80 anos, incluindo aqueles que pararam de fumar nos últimos 15 anos, são considerados recomendações USPSTF categoria B (alta certeza de benefício moderado). Embora essa abordagem orientada para o órgão englobe os três tumores mais prevalentes no mundo, ela está muito longe do conceito de um Teste Universal de Câncer ideal.

A ideia de um Teste Universal de Câncer surgiu pela primeira vez em julho de 2015, quando a revista JAMA publicou uma comunicação preliminar de um teste pré-natal não invasivo (NIPT) conduzindo a detecção incidental de malignidade materna oculta. Um NIPT usando sequenciamento de DNA livre (cfDNA) no plasma materno e procurando por aneuploidia fetal nos cromossomos 13, 18, 21, X e Y, mostrou uma discordância falso-positiva em 10/3757 pacientes. Uma possível explicação biológica para a discordância com o cariótipo fetal foi a presença de malignidade materna. O DNA do tumor foi provavelmente eliminado na circulação materna e identificado pelo NIPT. Uma doença maligna materna foi detectada em todos as 10 pacientes discordantes e, com base em consentimento informado, 8/10 pacientes foram submetidos à análise de todo o genoma. Um estudo translacional foi publicado recentemente, detectando cfDNA plasmático anormal em tumores malignos localizados e metastáticos, respectivamente em 50% e 80% dos casos. Quebrando um paradigma, o Teste Universal de Câncer deve ser realizado de forma não invasiva em uma amostra de sangue, saliva, urina ou ar respirado e deve ser custo-efetivo. Publicado em fevereiro de 2018 na revista Science, um teste de sangue chamado Cancer-SEEK descreveu a detecção e localização de oito tipos de tumores malignos humanos ressecáveis. Usando machine-learning para analisar os dados, o Cancer-SEEK avaliou mutações específicas do tumor no DNA circulante combinado a oito proteínas circulantes biomarcadoras. A sensibilidade do teste variou de 69% a 98%, dependendo do tipo de tumor e a especificidade foi superior a 99%. Apesar desses resultados preliminares interessantes, o teste ainda não pode ser aplicado à população em geral. As principais limitações incluem uma ampla faixa de sensibilidade combinada com sua taxa gradualmente decrescente nos estágios iniciais do câncer, chegando a índices tão baixo quanto 40% no estágio I do tumor. Esta é a advertência mais importante, uma vez que o principal benefício de um teste de rastreamento do câncer é normalmente restrito aos estágios iniciais de detecção. Validação adicional usando um conjunto de dados diferente deve ser buscada com estudos prospectivos randomizados que demonstrem benefício em sobrevida. Vieses epidemiológicos de condução e de tempo, também devem ser considerados. O Australian Centre of Personalized Nanomedicine publicou na revista Nature Communications o uso de Methylscape como um biomarcador universal de câncer. O nome atribuído Methylscape deriva da reprogramação epigenética do genoma tumoral, que cria um cenário distinto de metilação do DNA encontrado na maioria dos tipos de câncer. Diferenças na solvatação do DNA e afinidade DNA-ouro entre genomas malignos e normais sustentaram um ensaio colorimétrico, que pode ser analisado em menos de 10 minutos. Mais esforços serão necessários para traduzir esse conhecimento para o ambiente clínico. A heterogeneidade do câncer e as mudanças evolutivas também restringem uma assinatura tumoral confiável. Combinando conhecimento biológico do câncer e bioinformática, uma startup bem projetada chamada Grail, localizada em Menlo Park, Califórnia, enfrentou o desafio de descobrir os milhões de padrões específicos que definem o câncer. A Grail criou uma força-tarefa universal produzindo dados de alta qualidade e traduzindo-os em informações úteis ​​para o tratamento do câncer. Uma análise de subconjunto do estudo Circulating Cell-free Genome Atlas (CCGA) foi recentemente apresentada no ASCO Breakthrough em Bangkok, ocorrido em outubro de 2019. Foi uma detecção simultânea de múltiplos tumores malignos e sua localização no tecido de origem, usando sequenciamento bissulfito-direcionado de DNA livre circulante no plasma. O status do câncer e o tecido de origem foram determinados por um ensaio de sequenciamento de metilação direcionado, usando química de metilação de alta eficiência para enriquecer os alvos biológicos no cfDNA plasmático, combinado a um classificador orientado por machine learning. O desfecho foi uma especificidade de 99% e a sensibilidade que variou de 34% para tumores malignos no estágio I até 92% para no estágio IV. No entanto, a especificidade de 99% ainda não é suficiente. Lidar com 1% de falsos positivos ainda não pode ser aceito, devido a um temor inevitável de um falso diagnóstico de câncer imposto à população geral. Apesar dos esforços internacionais, o uso rotineiro de um Teste Universal de Câncer ainda oscila entre o sonho e a realidade.

 

Referências: 

1.     Paul F. Pinsky: Principles of Cancer Screening, Surg Clin North Am 95(5): 953 – 966, 2015

2.     Diana W. Bianchi, Darya Chudova, Amy J. Sehnert, et al: Noninvasive Prenatal Testing and Incidental Detection of Occult Maternal Malignancies, JAMA 314(2): 162-169, 2015

3.     Joshua D. Cohen, Lu Li, Yuxuan Wang, Christopher Thoburn, et al: Detection and localization of surgically resectable cancers with a multi-analyte blood test, Science 359 (6378): 926 – 930, 2018

4.     Abu Ali Ibn Sina, Laura G. Carrascosa, Ziyu Liang, et al: Epigenetically reprogrammed methylation landscape drives the DNA self-assembly and serves as a universal cancer biomarker, Nature Communications 9: 4915- 28, 2018

5.     Oxnard G R, Klein E A, Seiden M, et al: Simultaneous multi-cancer detection and tissue of origin (TOO) localization using targeted bisulfite sequencing of plasma cell-free DNA (cfDNA), Journal of Global Oncology 5:44, 2019

6.     https://grail.com/science/

7.     Photo by CDC on Unsplash