Uma visão global
Fleck, JF: Conexão Anticâncer 29 (02), 2020
Apesar de uma tendência decrescente na incidência, o câncer gástrico ainda está entre os cinco tumores malignos mais frequentes no mundo. Dados extraídos da International Agency for Cancer Research (IARC), em sua publicação mais recente apontam para a quinta posição em incidência (ASR = 13,5) e a terceira em mortalidade (ASR = 10,3). A doença tem uma distribuição global desigual, variando de uma baixa incidência (ASR = 2,8) na mulher americana a uma incidência muito alta (ASR = 57,8) no homem coreano. A gastrite atrófica (GA) e a infecção por Helicobacter pylori (HP) são os principais fatores de risco para o câncer gástrico. O risco relativo (RR) em homens com infecção por HP é de 5,8 ao ser comparado a homens com mucosa gástrica saudável, aumentando para um RR = 9,1 em homens com GA. Uma revisão sistemática recente e metanálise conduzida pelo National Cancer Institute dos EUA revelaram a autoimunidade como um mecanismo alternativo de inflamação e consequente evento de iniciação da cascata carcinogênica na mucosa gástrica (RR = 1,37). As doenças autoimunes mais associados ao aumento do risco relativo para câncer de estômago foram a dermatomiosite (RR = 3,69), a anemia perniciosa (RR = 2,84), a doença de Addison (RR = 2,11), a dermatite herpetiforme (RR = 1,74), a doença relacionada à IgG4 (RR = 1,69), a cirrose biliar primária (RR = 1,64), o diabetes mellitus tipo 1 (RR = 1,41), o lúpus eritematoso sistêmico (RR = 1,37) e a doença de Graves (RR = 1,27).
Em 1994, o HP foi classificado como fator cancerígeno - classe 1 pela OMS / IARC. No entanto, pouco se sabe sobre a magnitude do risco de câncer de estômago em pacientes com HP positivos, com mucosa gástrica saudável e assintomáticos, criando uma dúvida razoável sobre o benefício proporcionado pelo tratamento sistemático. É necessário definir melhor quais seriam as condições associadas ao HP positivo que aumentariam o nível de evidência em favor do tratamento. Em janeiro de 2020, o New England Journal of Medicine publicou um elegante estudo prospectivo, aleatório, duplo-cego e controlado por placebo, incluindo parentes de primeiro grau de pacientes com câncer gástrico que expressassem positividade para HP. Um total de 1838 participantes foram aleatoriamente designados para receber terapia de erradicação do HP (lansaprazole + amoxicilina + claritromicina) ou placebo. O desfecho primário foi o desenvolvimento de câncer gástrico. Após um acompanhamento mediano de 9,2 anos, o diagnóstico de carcinoma gástrico ocorreu em 1,2% do braço submetido a terapia de erradicação do HP versus 2,7% no braço placebo (HR = 0,45 P = 0,03). Todos os 33 carcinomas gástricos tiveram detecção precoce (91% no estágio I e 9% no estágio II). Nenhuma diferença significativa foi observada na sobrevida global, no entanto, esses dados ainda podem ser imaturos. O estudo mostrou uma redução de 55% no risco de câncer gástrico entre os participantes com HP positivos que receberam terapia de erradicação. O risco foi adicionalmente reduzido para 73% em participantes que nunca tiveram recaída do HP. Por razões éticas, todos os participantes com HP positivos foram submetidos a terapia de erradicação ao final do estudo. O estudo foi realizado inteiramente na Coréia do Sul, país com a maior incidência mundial de câncer gástrico, claramente favorecendo o tratamento da infecção por HP em parentes de primeiro grau de pacientes com diagnóstico estabelecido de câncer gástrico.
Referências:
1. Prashanth Rawla and Adam Barsouk :Epidemiology of gastric cancer: global trends, risk factors and prevention, Gastroenterology Rev 14 (1): 26–38, 2019
2. Ilkka Vohlonen, Eero Pukkala, Nea Malila, et al: Risk of gastric cancer in Helicobacter pylori infection in a 15-year follow-up, Scandinavian J Gastroenterology 51(10): 1159-1164, 2016
3. Fei Jiang and Xiaobing Shen: Current prevalence status of gastric cancer and recent studies on the roles of circular RNAs and methods used to investigate circular RNAs, Cellular & Molecular Biology Letters 24 (53), 2019 https:doi.org/10.1186/s11658-019-0178-5
4. Minkyo Song, Gonzalo Latorre, Danisa Ivanovic-Zuvic, et al: Autoimmune Diseases and Gastric Cancer Risk: A Systematic Review and Meta-Analysis, Cancer Res Treat, 51(3):841-850, 2019
5. Il Ju Choi, Chan Gyoo Kim, Jong Yeul Lee, et al: Family History of Gastric Cancer and Helicobacter pylori Treatment, N Engl J Med 382:427-36, 2020 DOI: 10.1056/NEJMoa1909666
O câncer gástrico é uma doença com uma taxa de incidência importante e é a 13º maior causa de morte entre as mortes por câncer no mundo. As causas são variadas e podem ser de origem autoimune, inflamatória e, principalmente infecciosa tendo o H. pylori como a causa mais relacionada à doença. Entretanto, não existem evidências expressivas quanto ao benefício na prevenção do câncer com o tratamento compulsório de pacientes assintomáticos. O estudo lançado em 2020 mostrou que o tratamento, quando eficaz na erradicação, diminui a incidência do câncer gástrico em comparação com aqueles não tratados (com um RR de 0,44), mesmo não mexendo na sobrevida geral. Desta forma, podemos concluir que a erradicação do H. pylori é de extrema importância pois, embora não aumente a sobrevida global, diminui a morbidade que a doença traz e preserva a qualidade de vida do paciente.
Não há dúvidas quanto à importância da infecção por HP na gênese dos cânceres gástricos. O estudo coreano em questão traz resultados interessantes, mas sua validade externa me parece baixa. É muito provável que outros fatores tenham uma parcela grande de contribuição para a tão elevada incidência de cânceres gástricos na população coreana, haja vista a baixa incidência da doença na população indiana apesar das altas taxas de infecção por HP. Será necessário um melhor entendimento a respeito da interação da infecção com a dieta e genética das diferentes populações para que se chegue a um consenso quanto a quem realmente se beneficia da erradicação da bactéria.
Os principais fatores de risco para o carcinoma gástrico são a infecção pelo H. pylori e história familiar de câncer gástrico. Dada à incidência global de câncer gástrico e sua taxa de mortalidade, configurando a terceira causa de morte por câncer em nível global, é evidente a importância de estudos que avaliem os fatores de risco para possíveis intervenções e diagnóstico mais precoce. O estudo coreano publicado no New England trás resultados interessantes, sugerindo o benefício da erradicação do H. pylori ao menor risco de desenvolver câncer gástrico. Contudo, esse estudo foi conduzido em uma população bem selecionada, de um único centro sul coreano, onde a alta incidência de câncer gástrico pode estar relacionada com outros fatores, os quais podem não ser reproduzidos em populações diferentes. Além disso, o estudo não mostrou diferença significativa entre os grupos na sobrevida global. Assim, outros estudos com diferentes populações e que tragam a sobrevida global como desfecho primário devem ser conduzidos para demonstração de um benefício da erradicação do H. pylori em todos os pacientes com história familiar de câncer gástrico.
Apesar da redução da incidência mundial do câncer gástrico, o mesmo ainda se encontra entre os três com mais alta taxa de mortalidade. Há, portanto, muito a ser elucidado acerca de fatores de risco e fisiopatologia desta neoplasia. Como exposto nos materiais, causas autoimunes (DM1, Addison, LES, dermatomiosite - doenças sistêmicas e relativamente comuns) foram recentemente propostas como mecanismo catalítico dos cânceres gástricos; ainda assim, o maior fator de risco para o seu desenvolvimento ainda é a presença de Helicobacter pylori. O estudo publicado em 2020 no NEJM demonstra, no momento, que embora a diferença na mortalidade entre os indivíduos que apresentam ou não HP não seja significativa, o risco de desenvolver câncer gástrico é, de fato, muito menor naqueles que realizaram completa erradicação do patógeno, o que reforça a necessidade de tratamento precoce do mesmo.
Faça o login para escrever seu comentário.
Se ainda não possui cadastro no Portal Conexão Anticâncer, registre-se agora.