A suplementação deve ser considerada?
James Fleck: Conexão Anticâncer 06(12), 2020
A vitamina D é na verdade um precursor de um potente hormônio esteróide chamado calcitriol, que regula várias vias celulares, eventualmente relacionadas ao risco de câncer. Sob exposição à luz solar, a radiação ultravioleta penetra na pele e leva à fotólise da provitamina D3 em pré-vitamina D3. Em sequência, a pré-vitamina D3 será isomerizada em vitamina D3. Uma vez formada, a vitamina D3 entra na circulação sendo metabolizada no fígado e nos rins em 25-hidroxivitamina D3 e 1,25 di-hidroxivitamina D3, respectivamente. A última é também chamada de calcitriol, que é a forma biológica ativa da vitamina D. Alguns estudos epidemiológicos sugerem uma menor taxa de mortalidade por câncer em áreas geográficas com maior exposição à luz solar e metanálises de estudos randomizados prospectivos também mostraram uma redução potencial de taxa de mortalidade por câncer com suplementação de vitamina D. No entanto, a U.S. Preventive Service Task Force ainda está preocupada com o benefício específico da ampla e irrestrita suplementação de vitamina D3 na prevenção do câncer.
Um grupo de médicos da Division of Endocrinology - Stanford University School of Medicine publicou na Nature Reviews uma avaliação abrangente do mecanismo genômico para a ação do calcitriol com uma proposta função antineoplásica. A vitamina D3 da dieta é convertida em 25-hidroxivitamina D3 no fígado. Esta é a forma circulante da vitamina D, que é subsequentemente hidroxilada em 1,25 di-hidroxivitamina D3 (calcitriol) pela enzima CYP27B1 do citocromo P450, localizada no rim. O calcitriol também é sintetizado localmente pela mesma enzima CYP27B1, que é encontrada na maioria dos tecidos extrarenais, incluindo células cancerosas, contribuindo ainda mais para sua regulação autócrina e parácrina. Independentemente de ser sintetizado no rim ou na célula-alvo, a ação biológica do calcitriol é mediada pelo receptor da vitamina D (VDR). Quando o calcitriol se liga ao VDR, gera uma heterodimerização com o receptor retinóide X (RXR), seguida da translocação do complexo (ligante-VDR-RXR) para o núcleo. O complexo se liga a elementos de resposta à vitamina D (VDRE), o que leva a uma regulação transcricional positiva e negativa da expressão gênica. Consequentemente, alguns genes-alvo são mobilizados em uma ampla gama de ação anticâncer mediada por calcitriol, incluindo proliferação, apoptose, diferenciação, inflamação, angiogênese, invasão e metástase.
Mecanismo genômico para a ação do calcitriol em sua proposta função antineoplásica
Abreviações dos marcadores biológicos: VDR = Vitamin D Receptor, RXR = Retinoid X Receptor, aumento na expressão de p21 and p27, decréscimo na expressão de CDKs (Cyclin-dependent Kinase), Cyclins, Myc and RB, aumento na expressão de BAX, decréscimo na expressão de BCL2, inibição de COX2 (cyclooxygenase-2) and PGL (prostaglandin), decréscimo na expressão de VEGF (Vascular Endothelial Growth Factor), IL-8 (interleukin-8) and PGE2 (Prostaglandin-E2), decréscimo na expressão de MMP9 (Matrix Metalloproteinase-9), PA (Plasminogen Activator), TIMP1 (Tissue Inhibitor of Metalloproteinase-1)
Em janeiro de 2019, o New England Journal of Medicine publicou os resultados do Vital Trial conduzido pelo Department of Medicine, Brigham and Women’s Hospital, Harvard School of Medicine. Um total de 25871 participantes foram selecionados, incluindo 5106 (20%) afro-americanos, uma vez que a pigmentação reduz a síntese cutânea de vitamina D. Foi um estudo prospectivo aleatório, controlado por placebo, com um desenho fatorial 2 x 2, onde os grupos de intervenção foram tratados com vitamina D3 2.000 UI por dia e ácidos graxos n-3 (ômega-3) marinhos na dose de 1 g por dia. Os critérios de elegibilidade incluíram homens ≥ 50 anos e mulheres ≥ 55 anos. O desenho do estudo está representado abaixo:
Os desfechos primários foram o diagnóstico de qualquer tipo de câncer invasivo e eventos cardiovasculares maiores (infarto do miocárdio, acidente vascular cerebral ou morte por causas cardiovasculares). O acompanhamento mediano foi de 5,3 anos e o câncer foi diagnosticado em 793 participantes no grupo de vitamina D e 824 participantes no grupo de placebo (HR = 0,96, P = 0,47). A morte por câncer invasivo foi considerada um desfecho secundário e foi observada em 154 participantes no grupo de vitamina D e 187 participantes no grupo placebo (HR = 0,83). Em conclusão, a incidência cumulativa de qualquer tipo de câncer invasivo ou morte por câncer não diferiu significativamente entre os dois grupos principais (vitamina D x placebo). No entanto, em uma análise post-hoc, alguns testes de proporcionalidade ao longo do tempo foram significativos para a taxa de letalidade por câncer. A análise excluindo 1 ano de acompanhamento e 2 anos de acompanhamento (não especificados no protocolo) levou a uma menor taxa de morte por câncer invasivo no grupo de vitamina D do que no grupo de placebo (respectivamente, HR = 0,79 e HR = 0,75). As análises de subgrupos também levantaram a possibilidade de efeitos diferentes na incidência de câncer de acordo com o índice de massa corporal (IMC), uma vez que participantes com peso normal que receberam vitamina D tiveram uma incidência de câncer menor do que aqueles que receberam placebo. Apesar de um raciocínio interessante para a ação antineoplásica da vitamina D, os efeitos podem se restringir a subgrupos específicos que serão melhor identificados em um futuro próximo.
Referências:
1. Feldman D, Krishnan AV, Swami S, et al: The role of vitamin D in reducing cancer risk and progression. Nat Rev Cancer 14: 342-57, 2014
2. Manson JE, Cook NR, Lee I-M, et al: Vitamin D Supplements and Prevention of Cancer and Cardiovascular Disease, N Engl J Med 380: 33-44, 2019
O texto evoca um uma temática super interessante e atual: a suplementação. A vitamina D, na pandemia COVID-19, tem se mostrado popular e, por conseguinte, estimulada sem qualquer cuidado. Ainda que haja estudos indicando que ela, de fato, apresenta-se como aliado na luta contra o câncer e outras enfermidades (como o próprio COVID), mais estudos devem ser feitos para garantir a segurança do uso dela, bem como o seu incentivo. Portanto, hoje devemos vê-la como um adjuvante de auxílio e talvez, com novos ensaios clínicos randomizados, ela possa ter um papel de maior destaque nos tratamentos.
Dado o recente crescimento da indústria dos suplementos vitamínicos, que foi intensificado durante a pandemia do COVID-19, ensaios clínicos que busquem avaliar o real efeito dessas intervenções em desfechos epidemiologicamente relevantes se mostram muito necessários. Apesar de o estudo apresentado, que se mostra de alta qualidade e muito bem desenhado e conduzido, não ter encontrado benefício da suplementação para seus desfechos primários, análises post-hoc apontam para novas possibilidades de alvos de investigação. Esses dados devem ser melhor explorados em ensaios clínicos futuros, de modo a seguir avançando o conhecimento e buscando novas estratégias de intervenção para as doenças neoplásicas.
Atualmente a suplementação vem sendo bastante discutida na sociedade apesar de seus benefícios ainda serem incertos. O uso da vitamina D como uma terapia anticâncer apresenta, teoricamente, um grande potencial, devido a regulação de vias de sinalização específicas em tecidos como mama, cólon e próstata. Nesse sentido, o calcitriol poderia reduzir a incidência desses cânceres. Apesar do potencial, os estudos ainda são contraditórios, tanto em termos de benefício quanto em termos de segurança e dose adequada, já que as atuais recomendações são baseadas somente na saúde óssea, as quais ainda não são universalmente aceitas.
As décadas recentes testemunharam um avanço exponencial da farmacoterapia no tratamento de diversas doenças, acompanhado pelo ressurgimento quase proporcional da busca pelas terapias “naturais” - dos fitoterápicos à homeopatia - e até de uma desconfiança em relação à medicina “alopática”. Se, por um lado, o sobrediagnóstico e a intervenção excessiva fazem parte da prática médica contemporânea, por outro, é importantíssimo que se faça um uso crítico das terapias alternativas. Estas devem ser utilizadas se há benefício objetivamente comprovado do seu uso; mostrou-se que este não é o caso da suplementação de vitamina D para prevenção de câncer e doenças cardiovasculares.
No Brasil, existe uma cultura de prescrever suplementação de vitamina D sem nenhum controle. Eu mesma, já fiz reposição dessa vitamina muitas vezes, sem compreender direito quais os benefícios reais advindos do tratamento. O texto tem como foco a interferência da vitamina D na mortalidade e incidência de câncer, entretanto, não apenas nessa área, mas em todas as outras, ainda se fazem necessárias pesquisas e estudos que comprovem concretamente quais são os benefícios do uso de vitamina D pelos pacientes.
É sempre muito interessante ler sobre estudos feitos com o fim de avaliar substâncias que estão em voga atualmente. A vitamina D é certamente uma delas, principalmente após o início da pandemia da COVID-19, com toda a discussão acerca de seu potencial em prevenir ou não a doença. Para chegarmos em uma conclusão sobre esse potencial e também para outros potenciais, como o antineoplásico, são necessários artigos como este, que é um belo exemplo de como se faz ciência.
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