Resgate pelo exercício de criatividade
James Fleck: Conexão Anticâncer 22(04), 2020
Em 1568, o artista flamengo Pieter Bruegel pinta o quadro The Blind Leading the Blind. Bruegel tinha visão humanística e pintava cenas do quotidiano, retratando os hábitos sociais de sua época e lugar. Subjacente a estas cenas havia forte apelo simbólico aos valores imateriais.
O quadro The Blind Leading the Blind remete a uma parábola bíblica (Mateus 15:14) onde são mencionados dois cegos e um ensinamento: “Se um cego guiar outro cego, ambos cairão em uma cova”. Bruegel expande o ensinamento para seis cegos que caminham em um movimento parabólico (referência subliminar à parábola) e que inexoravelmente irão cair. Identifica-se, na expressão facial e corporal dos cegos, três momentos psicológicos. Nos cegos que estão atrás, o sentimento dominante é a expectativa, no meio é a conscientização do risco e no final o desespero, a queda ou eventualmente a morte. Embora muitos interpretem o quadro apenas em sua forma mais explícita, identificando inclusive a representação pictórica de pelo menos seis tipos distintos de doenças oftalmológicas, sua subjetividade vai muito além. A cegueira representada não é física. O cego não, necessariamente, fica limitado. Ele, normalmente, compensa sua deficiência com a hipertrofia dos outros sentidos e reintegra-se socialmente. A cegueira representada por Bruegel é espiritual. Vejam que os cegos, em seu movimento, afastam-se de um templo, representado por uma igreja. O templo também é simbólico, pois abriga valores humanos imateriais como a consciência, a ética e a solidariedade. Há uma aparente contradição, pois os cegos parecem solidários. No entanto, o que o quadro procura mostrar é ironicamente o oposto, representando a negação ao comportamento solidário. O quadro é um chamamento ao resgate de valores humanos imateriais e atemporais.
Na pandemia por Covid-19 houve uma percepção semelhante. Subitamente, surgiu uma nova doença para a qual não havia tratamento específico, remetendo para uma cegueira física e emocional. Em sequência, gerou-se a expectativa de desenvolvimento de novas drogas, representada pelos cegos do final da corrente de peregrinação. Porém, a ciência convive com uma dura limitação metodológica, caracterizada pela lenta obtenção de resultados confiáveis. Este é o risco constatado pelos cegos do meio da corrente. Não havendo uma intervenção criativa, o final seria inexoravelmente trágico, levando ao desespero observado no final da corrente de cegos. A transposição para situação atual seria a desorganização social, sustentada na inabilidade humana em buscar um caminho alternativo. Felizmente, o quadro de Bruegel aponta simbolicamente para uma solução sustentada no resgate de valores imateriais. Mais do que nunca é necessário integrar razão e sensibilidade. Simbolicamente, o resgate é espiritual. A superação das adversidades vai se dar pelo equilíbrio do exercício científico criativo parametrizado por valores humanos essenciais. Curiosamente, tudo isto é imaterial...
Referências:
1. Pieter Bruegel: Blind Leading the Blind, 1568 Museo e Real Bosco di Capodimonte, Napoli, Italia
2. Mateus: Bíblia Capítulo 15 Versículo 14
Essa interessante reflexão fez-me lembrar de um artigo recentemente lançado na Lancet em que o autor faz paralelos entre a pandemia atual e a obra “Ensaio sobre a cegueira” do escritor português José Saramago. A história do livro é sobre uma epidemia de cegueira que se espalhou por um país. A única pessoa que não teve sua visão afetada diz “Não penso que ficamos cegos, penso que somos cegos. Cegos que podem ver, mas não veem.” Precisou de uma epidemia em que o olhar do julgamento social esteve cego para que se revelassem os lados mais obscuros de cada um. Da mesma forma, a pandemia por COVID-19 expôs muitas injustiças e desigualdades que sempre estiveram encobertas e, apesar da contagem crescente de infectados e mortos, muitos se recusam a enxergar e até esquecem desse momento que sequer acabou. Que o sofrimento não seja em vão, que possamos deixar de ser “cegos guiados por cegos” e que, principalmente, escolhamos enxergar. Link do artigo: https://www.thelancet.com/pdfs/journals/lancet/PIIS0140-6736(20)31352-0.pdf
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