A busca por um standard terapêutico em tumor heterogêneo, agressivo e raro
Fleck, JF & Peixoto, J: Conexão Anticâncer 19(11), 2018
A despeito do avanço na classificação molecular das neoplasias malignas, a rotina assistencial ainda convive com alguns agrupamentos anatômicos imprecisos ao compor algoritmos de decisão terapêutica. Esta é precisamente a situação do câncer das vias biliares (CVB), que inclui o colangiocarcinoma, o carcinoma da vesícula biliar e o carcinoma da ampola de Vater. Mesmo na visão conjunta, consiste em uma doença rara e frequentemente diagnosticada em fase avançada. Historicamente, três drogas quimioterápicas (fluoropirimidinas, cisplatina e gemcitabina) vem sendo utilizadas, produzindo predominantemente respostas parciais e não mantidas. Há críticas sobre a geração do conhecimento. Falta sustentação teórica na escolha de uma droga standard. A gemcitabina vem sendo usada neste cenário com um racional baseado na sua eficiência em carcinoma de pâncreas, gerando uma recomendação por falsa analogia. A fragilidade estende-se a geração de hipóteses, pois o uso do tratamento combinado cisplatina + gemcitabina baseia-se em potencial efeito sinérgico observado em outros tumores epiteliais bastante distintos (pulmão e bexiga). Um estudo de fase II (ABC-01) encontrou uma melhora na sobrevida livre de progressão aos 6 meses (SLP6) comparando cisplatina + gemcitabina (SLP6= 57,1%) com gemcitabina isolada (SLP6= 47,7%).
Em abril de 2010, o New England Journal of Medicine publica o estudo prospectivo de fase III conhecido pelo acrônimo ABC-02. Neste ensaio clínico, 410 pacientes com CVB localmente avançado ou metastático são distribuídos aleatoriamente para um braço teste composto pela associação de cisplatina + gemcitabina ou um braço controle usando apenas gemcitabina. O desfecho primário foi sobrevida global (SG). A SG mediana foi de 11,7 meses no braço teste versus 8,1 meses no braço controle (HR 0.64 IC 0.52 – 0.80 P < 0.001). A SLP mediana foi de 8,0 meses no tratamento combinado e de 5,0 meses no tratamento com gemcitabina exclusiva (P < 0.001). Os efeitos adversos foram semelhantes. Embora o estudo admitisse pacientes com performance ECOG 2, o benefício para este subgrupo é discutível. A extrapolação para o forest plot evidencia a heterogeneidade tumoral e a dispersão dos resultados. Na falta de opções com maior impacto, a combinação de cisplatina + gemcitabina segue como uma alternativa aceitável de tratamento. A ciência reproduz a natureza permanecendo fragilizada naquilo que é raro.
Referência:
Juan Valle, Harpreet Wasan, Daniel H. Palmer, et al: Cisplatin plus Gemcitabine versus Gemcitabine for Biliary Tract Cancer, New E J Med 362: 1233 – 81, 2010
A falta de padrões terapêuticos para os carcinomas de vias biliares demonstra, por um lado, a nossa falta de conhecimento de alguns aspectos em relação às neoplasias, porém, sob outra perspectiva, há a esperança e a curiosidade científica em compreender melhor a natureza biomédica. Os carcinomas de vias biliares são raros. O colangiocarcinoma não possui predominância entre os sexos, sendo na maioria das vezes adenocarcinomas e está associado à colangite esclerosante primária (CEP). Já o carcinoma de vesícula biliar é duas vezes mais comum que o colangiocarcinoma, sendo mais encontrado em mulheres. O diagnóstico muitas vezes tardio de carcinomas das vias biliares é um dos desafios para um manejo adequado dessas neoplasias, muitas vezes não sendo possível a ressecção cirúrgica. O uso de cisplatina e gemcitabina é baseado essencialmente no racional de analogias e experiências terapêuticas com outros tipos de neoplasias, carecendo de estudos voltados especificamente às vias biliares. Embora a diferença entre a quimioterapia conjunta de cisplatina + gemcitabina tenha uma sobrevida global mediana de aproximadamente 4 meses a mais que a terapia única com gemcitabina (com efeitos adversos semelhantes), ainda faz-se necessário estudos que apontem para uma medida terapêutica mais eficaz, sendo os imunobiológicos uma das possibilidades.
Os tumores de vias biliares apresentam uma notável heterogeneidade de apresentação. Em paralelo, diversas intervenções terapêuticas podem ser aplicadas, de acordo com a avaliação anatomopatológica e a localização do tumor. Por se tratarem de tumores raros, comprometem também a logística para a realização de estudos que busquem tratamentos com impacto na sobrevida dos pacientes. Apesar de o estudo ABC-02 encontrar um aumento de 4 meses na sobrevida global mediana no grupo que fez uso da terapia combinada de cisplatina + gemcitabina, notamos que o impacto da terapia foi pequeno frente aos possíveis efeitos adversos. Desse modo, é essencial que mais estudos envolvendo os tumores de vias biliares sejam conduzidos, buscando superar a heterogeneidade encontrada dentro do grupo e trazendo desfechos mais robustos aos pacientes.
Os cânceres de vias biliares formam um grupo heterogêneo e com baixa expectativa curativa. O texto acima demonstra os anseios e limitações para mudar esse cenário e promover a melhor medicina possível. Após resultado promissor em estudo de fase II, mais de 400 pacientes foram randomizados para a fase III, a qual demonstrou significativa superioridade em sobrevida no braço de estudo teste. Contudo, justamente por conta da heterogeneidade, a ideia de um tratamento padrão -mesmo que combinado- para todos os cânceres do grupo deve ser vista com suspeição, e mais estudos para malignidades biliares individuais são necessárias.
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