
Incertezas no tempo
De Agostin, G & Fleck, JF: Conexão Anticâncer 01(04), 2019
Dados globais publicados em 2018 pela International Agency for Research on Cancer (IARC) indicam que o câncer de ovário ocupa a terceira posição em incidência (ASR = 6.6) e a segunda em mortalidade (ASR = 3.9) entre as neoplasias malignas ginecológicas. Esta informação vem enviesada pela alta incidência e mortalidade do câncer de colo uterino nos países em desenvolvimento e/ou subdesenvolvidos. Nos EUA, o câncer de ovário é a principal causa de mortalidade por neoplasia maligna ginecológica (14000/ano). O alto índice de mortalidade deve-se a ineficiência no screening. O baixo valor preditivo do teste positivo para CA-125 e US pélvica induz ao risco de intervenções diagnósticas invasivas e ineficientes. Apenas 25% dos casos são diagnosticados em estádios iniciais. Independentemente do estádio, a cirurgia continua tendo um papel central no tratamento do carcinoma de ovário.
No século XX, a cirurgia citorredutora primária foi considerada o tratamento padrão para o carcinoma avançado de ovário. Tumores grandes são proporcionalmente menos vascularizados e apresentam menor compartimento proliferativo, com maior expressão de hipóxia e necrose. Tumores pequenos, com maior índice de perfusão sanguínea central, são mais proliferativos favorecendo o acesso e a cinética dos tratamentos com drogas citotóxicas. Em 1995, um estudo conduzido pela European Organization for Research and Treatment of Cancer (EORTC) demonstrou benefício em sobrevida com a cirurgia citorredutora de intervalo. Pacientes com carcinoma avançado de ovário foram tratados com três ciclos de quimioterapia após falha da cirurgia citorredutora primária na obtenção de ressecção ótima (lesão residual menor do que 1cm). Posteriormente, em 2004, o Gynecologic Oncology Group (GOG) apresentou estudo que não evidenciou diferença em sobrevida global e em sobrevida livre de progressão entre as pacientes que realizaram uma segunda cirurgia citorredutora seguida de quimioterapia ou apenas quimioterapia isolada. Contudo, o estudo exigia como critério de seleção o máximo esforço cirúrgico na primeira abordagem. Adicionalmente, o tratamento quimioterápico era diferente daquele realizado no estudo da EORTC. Apesar da controvérsia, a realização de uma segunda cirurgia citorredutora foi sendo progressivamente desestimulada.
Mais recentemente, tem sido avaliado o uso de quimioterapia neoadjuvante como uma alternativa à cirurgia citorredutora primária. Em 2010, um estudo prospectivo e aleatório conduzido pela EORTC e pelo National Cancer Institute of Canada (NCIC) foi publicado no New England Journal of Medicine, avaliado o timing da cirurgia citorredutora em pacientes com câncer de ovário estádios IIIC/IV. O braço controle consistiu em cirurgia citorredutora primária seguida de seis ciclos de quimioterapia baseada em platina. No braço teste as pacientes receberam três ciclos de quimioterapia neoadjuvante baseada em platina seguidos, na resposta objetiva, por cirurgia citorredutora de intervalo e três ciclos adicionais de quimioterapia. O desfecho primário foi a sobrevida global mediana (SG-m). O resultado foi de não-inferioridade com SG-m = 29 meses no braço controle e SG-m = 30 meses no braço teste (HR = 0.98 P=0.01). Fatores limitantes incluíram a multiplicidade de centros, com falta de uniformidade das equipes cirúrgicas e o uso de diferentes esquemas de quimioterapia. Outros dois estudos menores subsequentes também demonstraram não haver diferença na sobrevida global e na sobrevida livre de progressão entre pacientes que realizaram cirurgia citorredutora primária ou quimioterapia neoadjuvante seguida de cirurgia de intervalo.
Em 2019, ainda, não há consenso sobre os critérios de indicação da quimioterapia neoadjuvante em pacientes com carcinoma avançado de ovário. Enquanto 82% dos membros da Society of Gynecologic Oncology acreditam que não há evidência para a administração de quimioterapia neoadjuvante, 70% dos membros da European Society of Gynecological Oncology (ESGO) admitem que a evidência atual permite indicar o tratamento. Postula-se que a expressão de comorbidades, performance status ruim ou doença aparentemente irressecável na apresentação inicial possam favorecer a indicação de neoadjuvância. Em uma era em que a maioria dos estudos clínicos oncológicos são financiados, e em alguns casos, conduzidos pela indústria farmacêutica, provavelmente devam persistir as incertezas sobre o tempo cirúrgico ideal no tratamento do câncer avançado do ovário.
ASR = Age Standardised Rate
References:
VAN DER BURG, Maria EL et al. The effect of debulking surgery after induction chemotherapy on the prognosis in advanced epithelial ovarian cancer, New England Journal of Medicine, 332:10, 629-634, 1995
ROSE, Peter G. et al. Secondary surgical cytoreduction for advanced ovarian carcinoma, New England Journal of Medicine, 351:24, 2489-2497, 2004
VERGOTE, Ignace et al. Neoadjuvant chemotherapy or primary surgery in stage IIIC or IV ovarian cancer, New England Journal of Medicine, 363:10, 943-953, 2010
O Câncer de Ovário, geralmente é detectado em estágios avançados, com grande massa tumoral onde a cirurgia citorredutora primária já não é suficiente . No Brasil ele representa a terceira causa de morte por câncer ginecológico, tendo em vista que é uma neoplasia que não possui rastreio e que depende de detecção precoce para ter bom prognóstico . Assim como evidencia o texto, ainda não temos informações suficientes a respeito da indicação de terapia neoadjuvante em pacientes com carcinoma avançado de ovário, todavia, seria de grande interesse do nosso país resolvermos essa questão e nos apropriarmos do assunto. Fica o estímulo para pesquisadores brasileiros dediquem seu tempo e que as instituições financiem pesquisas nessa área, tendo em vista a grande relevância para nossa população e para saúde pública como um todo.
O câncer de ovário não é um câncer muito comum, entetando gera grande preocupação devido ao fato de que é um câncer que causa muita morbimortalidade, visto que geralmente é diagnosticado tardiamente pois as manifestações clínicas - além de inespecíficas (fadiga, mal estar, dor e edema abdominal, alteração do hábito intestinal, entre outras) - se apresentam tardiamente e não contamos com ferramentas de screening adequadas. O tratamento do estágio I-c em diante invariavelmente inclui cirurgia de debulking (citorredução). Levando isso em consideração, o estudo EORTC representou um marco na terapia do câncer de ovário, pois ofereceu uma nova forma de se aplicar o tratamento ao mostrar que a cirurgia de citorredução intervalada (3 ciclos de quimio + cirurgia + 3 ciclos de quimio) não é inferior a cirurgia de citorredução primária seguida por 6 ciclos de quimioterapia, que era a opção de tratamento padrão.
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