Cirurgia de citorredução em câncer de ovário recorrente

Tomada de decisão com base na seleção de pacientes

James Fleck, MD, PhD: Conexão Anticâncer 20 (05), 2022


O câncer de ovário consiste em um grupo heterogêneo de neoplasias, incluindo tumores localizados não apenas nos ovários, mas também nas trompas de Falópio e no peritônio. São predominantemente (90%) tumores epiteliais e a maioria (70%) é classificada, segundo critérios morfológicos, imuno-histoquimicos e moleculares, como carcinoma seroso de alto grau (CSAG). Este tumor apresenta alto índice proliferativo (Ki67), expressa difusamente o p53 e está associado as mutações germinativas BRCA1 e BRCA2 em até 10% dos pacientes. Infelizmente, a patogênese do CSAG não está totalmente esclarecida. Atualmente, a teoria mais aceita defende uma origem em tecidos embriologicamente derivados dos ductos müllerianos, com envolvimento secundário dos ovários. Essa hipótese é reforçada pela identificação de carcinoma intraepitelial tubário seroso em cerca de 40% das pacientes diagnosticadas com carcinoma seroso de ovário. Dados históricos costumam indicar cistos de inclusão cortical müllerianos, presentes no ovário, como uma lesão precursora. Atualmente, a trompa de Falópio começou a emergir como a origem mais provável ou possivelmente exclusiva do CSAG. A suposta característica multicêntrica do tumor é a principal sustentação para a indicação da histerossalpingo-ooforectomia bilateral (HSOB) como abordagem cirúrgica radical no cenário de uma intervenção com intenção curativa. Infelizmente, a maioria dos CSAG são diagnosticados em estádios avançados (FIGO III e IV), comprometendo precocemente o peritônio e o omento,  consequente a disseminação celômica da doença. Além disso, o tumor pode progredir por metastatização linfática e sanguínea. A cirurgia citorredutora, incluindo HSOB, omentectomia e ressecção de toda a doença macroscópica identificada é o procedimento cirúrgico padrão. Após a cirurgia de citorredução ideal, os pacientes livres das mutações BRCA1 e BRCA2 são adicionalmente tratados com quimioterapia combinada (carboplatina + paclitaxel) mais bevacizumab concomitante e de manutenção. Quando esses pacientes abrigam um tumor com deficiência de reparo homólogo (HRD), a terapia de manutenção é trocada para niraparib. Quando o CSAG expressa mutação BRCA somática ou germinativa, o melhor tratamento de manutenção é o olaparib. Os pacientes são acompanhados com TC de tórax, abdome e pelve mais CA-125 como marcador tumoral. Infelizmente, 80 a 85% do CSAG avançado irá recidivar, após a intervenção primária. Neste ponto, o algoritmo de tratamento é ditado principalmente pelo tempo decorrido entre o último ciclo de quimioterapia e o primeiro sinal de doença progressiva, o que geralmente é denominado de intervalo livre de platina (ILP). A primeira evidência do ILP como fator prognóstico e preditivo veio em uma revisão retrospectiva no início dos anos noventa. Desde então, tem sido amplamente aceito que pacientes com ILP de seis meses ou mais devem ser considerados como doença sensível à platina (DSP), enquanto pacientes com ILP de menos de 6 meses devem ser considerados como doença resistente à platina (DRP). Pacientes que expressam DSP têm alta probabilidade de responder novamente à mesma intervenção sistêmica anterior, incluindo quimioterapia combinada com platina associada a bevacizumabniraparib ou olaparib, de acordo com o perfil genômico. Ironicamente, esses pacientes também são os melhores candidatos para cirurgia de citorredução secundária (CCS).

Um benefício potencial obtido com a CCS está intimamente relacionado à chance de se obter uma ressecção macroscópica completa (RMC). Atualmente, três modelos têm sido utilizados para prever os resultados da cirurgia. O critério do Memorial Sloan Kettering (MSK) foi baseado em uma análise retrospectiva de 153 pacientes submetidos à CCS. O objetivo era atingir doença residual ≤ 0,5 cm. No modelo preditivo MSK, a recomendação da CCS é baseada em uma longa faixa de intervalo livre de doença (variando de 6 meses a > 30 meses), presença de um local de recorrência único versus múltiplos locais e presença ou ausência de carcinomatose peritoneal. O AGO (Arbeitsgemeinschaft Gynäkologische Onkologie) é um modelo preditivo europeu, sustentado nos resultados dos ensaios multicêntricos sequenciais DESKTOP. Os critérios AGO apontam para a importância prognóstica da DSP, bom performance status (ECOG 0), ausência de ascite nas imagens pré-operatórias e ausência de doença residual após a cirurgia primária. O modelo Tian avaliou retrospectivamente os dados de nove estudos de CCS, publicados antes de 2009. Ele incluiu os pacientes dos modelos MSK e AGO, totalizando 1.075 pacientes avaliados na revisão. Uma análise de regressão logística multivariada permitiu a identificação de seis parâmetros preditivos para o desfecho da CCS, criando um critério de pontuação de risco. A soma dos escores de risco permitiu categorizar os pacientes em baixo risco (≤4,7 pontos) e alto risco (>4,7 pontos). A proporção de RMC no grupo de baixo risco foi de 53,4%, enquanto no grupo de alto risco foi de 20,1%. Uma validação externa do modelo Tian identificou uma sensibilidade de 83,3% e uma especificidade de 57,6%. Os critérios de pontuação do modelo de risco Tian são indicados na tabela abaixo.



Três estudos prospectivos aleatórios, avaliando o benefício da CCS, foram publicados. Em novembro de 2019, o New England Journal of Medicine relatou o estudo GOG-213, designando aleatoriamente 485 pacientes para receber ou não CCS. Ambos os braços incluíram pacientes com DSP recorrente, que tiveram resposta completa à quimioterapia de primeira linha e foram classificados como doença ressecável sob a ótica do investigador (candidatos à RMC). Infelizmente, alguns pacientes considerados não elegíveis para RMC foram inscritos no braço de quimioterapia exclusiva. Quimioterapia à base de platina combinada com gemcitabina ou paclitaxel foi usada a critério do investigador. O impacto prognóstico do bevacizumab concomitante e de manutenção também era um objetivo presente no desenho original do estudo. RMC foi obtido em 64% dos pacientes incluídos no braço de CCS. A sobrevida global mediana foi de 50,6 meses para o braço da CCS e 64,7 meses para o braço de quimioterapia exclusiva, indicando ausência de benefício em sobrevida associado a CCS (HR = 1,29 P = 0,08). Além disso, 9% dos pacientes no braço CCS apresentam morbidade cirúrgica. Em março de 2021, o New England Journal of Medicine publicou uma análise interina do estudo chinês SOC-1, em que 357 pacientes recidivados e com DSP foram aleatoriamente designados para receber CCS + quimioterapia ou apenas quimioterapia. Todos os pacientes tinham doença potencialmente ressecável com base no modelo de risco, combinado a imagem do PET-CT. A RMC foi obtida em 76,7% dos pacientes randomizados para CCS. A sobrevida livre de progressão mediana foi de 17,4 meses no braço de CCS, sendo significativamente maior do que os 11,9 meses observados no braço da quimioterapia exclusiva (HR = 0,58). O acompanhamento mediano, no momento da publicação, era de apenas 36 meses, o que tornou os dados imaturos para avaliar a diferença na sobrevida global. Em dezembro de 2021, o New England Journal of Medicine publicou os resultados do estudo DESKTOP-III, que distribuiu aleatoriamente 407 pacientes recidivados e com DSP para CCS + quimioterapia à base de platina ou quimioterapia à base de platina isolada. As pacientes para serem elegíveis tinham que apresentar todos os fatores de bom prognóstico da AGO. Uma RMC foi alcançada em 74,5% das pacientes no braço da CCS. A sobrevida global mediana foi de 53,7 meses no braço da CCS versus 46 meses no braço tratado com quimioterapia exclusiva (HR = 0,75, P = 0,02). Um benefício da CCS foi observado em todos os subgrupos prognósticos. Uma metanálise recentemente publicada dos três estudos prospectivos randomizados apontou para um benefício potencial associado com CCS, devido a maior SLP e aumento da sobrevida global observado, especificamente, na subpopulação CCS-RMC. Por fim, em janeiro de 2022, o Journal of Clinical Oncology publicou uma metanálise de 80 estudos elegíveis, incluindo 2.805 pacientes submetidos à CCS. Observou-se limitações importantes. Quatorze estudos estão localizados fora do gráfico de funil, há forte heterogeneidade (P < 0,0001 e I2 = 86%), combinada um longo período decorrido entre as publicações, variando de 1995 a 2021. Os resultados de um modelo de regressão linear univariável mostraram que uma maior proporção de citorredução completa ou ótima, publicação mais recente e idade mais avançada foram significativamente associadas a maior sobrevida global. A metanálise apenas confirma o que historicamente já foi aceito como benefício do CCS. Mas, definitivamente, não define um critério preditivo seguro que permita identificar  as pacientes candidatas a uma abordagem cirúrgica secundária. Ainda, permanecemos lutando com a seleção de pacientes.


Referências:

1.     Marjanka JJM Mingels, Maaike APC van Ham, Ineke M de Kievit, et al: Müllerian precursor lesions in serous ovarian cancer patients: using the SEE-Fim and SEE-End protocol, Modern Pathology 27, 1002–1013, 2014

2.     Caixia Jiang and Zhengyu Li: Prediction Models for Complete Resection in Secondary Cytoreductive Surgery of Patients with Recurrent Ovarian Cancer, Frontiers in Oncology, 23rd September, 2021

3.     Coleman RL, Spirtos NM, Enserro D: Secondary Surgical Cytoreduction for Recurrent Ovarian Cancer, N Engl J Med. 381(20):1929, 2019

4.     Shi T, Zhu J, Feng Y, et al: Secondary cytoreduction followed by chemotherapy versus chemotherapy alone in platinum-sensitive relapsed ovarian cancer (SOC-1): a multicentre, open-label, randomised, phase 3 trial, Lancet Oncol 22(4):439, 2021

5.     Harter P, Sehouli J, Vergote I, et al: Randomized Trial of Cytoreductive Surgery for Relapsed Ovarian Cancer, N Engl J Med385(23):2123, 2021

6.     Marchetti C, Fagotti A, Tombolini V, Scambia G, De Felice F. The Role of Secondary Cytoreductive Surgery in Recurrent Ovarian Cancer: A Systematic Review and Meta-Analysis. Ann Surg Oncol, 28(6):3258–63, 2021

7.     Min-Hyun Baek, Eun Young Park, Hyeong In Ha, et al: Secondary Cytoreductive Surgery in Platinum-Sensitive Recurrent Ovarian Cancer: A Meta-Analysis

8.     Photo by Andrea De Santis on Unsplash