Avanços na Classificação Molecular
Fleck, JF & De Agostin, G: Conexão Anticâncer 24 (11), 2019
Embora já tenha sido proposta uma classificação molecular para o câncer colorretal (CCR), sua utilização rotineira exige validação adicional. No momento, apenas três parâmetros moleculares são utilizados no processo de decisão clínica: o MMR (DNA-mismatch repair), a mutação RAS (RAS-mut) e a mutação BRAF (BRAF-mut). Na doença localizada uma assinatura genética caracterizada por deficiente MMR (dMMR), expressando elevado número de erros na replicação do DNA (RER+) e alta instabilidade de microssatélites (MSI-H) está associada a melhor prognóstico do que a forma proficiente (pMMR) com baixa instabilidade de microssatélites (MSI-L). Na doença metastática (CCRm), o papel do MMR é menos reconhecido, prevalecendo a importância prognóstica e preditiva das mutações RAS e BRAF. A mutação K-RAS e N-RAS são acompanhadas de piora prognóstica e tornam o CCRm refratário ao cetuximab, um bloqueador EGFR (Epidermal Growth Factor Receptor). A resistência ocorre porque a mutação RAS está localizada à jusante na cadeia de transdução de sinal mediada por EGFR. A mutação BRAF, particularmente a ocorrida no códon V600 (BRAF V600E) está associada com importante deterioração prognóstica (sobrevida mediana de 11 meses), pois torna o CCRm refratário às intervenções terapêuticas convencionais. Ao contrário do que vem ocorrendo em outros modelos de doença metastática (melanoma e carcinoma brônquico não de pequenas células) a inibição BRAF V600E exclusiva não tem sido muito promissora, considerando a indesejável ocorrência no CCRm BRAF-mut de uma retroalimentação positiva (feedback +) sobre a expressão de EGFR. Este fenômeno compensatório microambiental dá sustentação translacional para o uso clínico experimental da combinação do inibidor BRAF com um anticorpo monoclonal anti-EGFR no tratamento do CCRm BRAF V600E mutado. Estudos clínicos de fase I e II suportam o uso adicional de uma intervenção medicamentosa tripla, incluindo inibidor MEK.
Em outubro de 2019, o New England Journal of Medicine publicou o estudo BEACON CRC, no qual 665 pacientes com CCRm BRAF V600E mutados, após progressão a uma ou duas linhas de tratamento, foram distribuídos aleatoriamente na proporção 1:1:1 para três braços de intervenção medicamentosa. O braço teste com bloqueio triplo foi composto pela combinação de encorafenib (inibidor BRAF) + binimetinib (inibidor MEK) + cetuximab (anticorpo monoclonal anti-EGFR). O braço teste com bloqueio duplo foi constituído pela combinação de encorafenib + cetuximab nas mesmas doses e periodicidade utilizadas no bloqueio triplo. O braço controle foi tratado com cetuximab + irinotecan ou cetuximab + FOLFIRI, a critério do investigador. O desfecho primário foi a sobrevida global obtida no bloqueio triplo em comparação com a do braço controle. Os desfechos secundários incluíram a sobrevida obtida no bloqueio duplo em comparação com a do braço controle, a sobrevida livre de progressão, a duração da resposta e a segurança observadas em todos os braços. No ponto de corte desta análise interina, o acompanhamento mediano era de 7.8 meses. A sobrevida mediana observada no braço de bloqueio triplo foi de 9.0 meses versus os 5.4 meses observados no braço controle, com significativa redução no risco de morte (HR=0.52 P<0.001). A sobrevida mediana observada no braço de bloqueio duplo foi de 8.4 meses, também reduzindo o risco de morte na comparação com o braço controle (HR=0.60 P<0.001. A sobrevida livre de progressão favoreceu os braços de bloqueio triplo (4.3 meses) e bloqueio duplo (4.2 meses) em comparação ao braço controle (1.5 meses). As reações adversas mais frequentes no braço de bloqueio triplo foram diarreia, náusea, vômito e dermatite acneiforme. O percentual de eventos adversos (Grau ≥ 3) foi similar nos três braços do estudo, variando de 50% a 61%. Reações adversas classe-específicas e associadas aos inibidores MEK (retinopatia serosa e disfunção ventricular esquerda) reproduziram os índices previamente relatados na literatura e cederam à redução de dose ou suspensão da droga. Cefaleia, dor somática, artralgia e mialgia foram os eventos adversos mais descritos no braço de bloqueio duplo e a sua redução de expressão no bloqueio triplo é devida a capacidade dos inibidores MEK mitigarem os efeitos tóxicos associados a inibição BRAF. A falta de poder estatístico, particularmente nesta análise interina, não permitiu a comparação direta do bloqueio triplo com o bloqueio duplo, porém ambos têm resultados superiores aos observados no grupo controle. O estudo BEACON CRC reforça a necessidade de avançar na classificação molecular do câncer colorretal.
Referências:
S. Kopetz, A. Grothey, R. Yaeger, E. Van Cutsem, et al: Encorafenib, Binimetinib, and Cetuximab in BRAF V600E–Mutated Colorectal Cancer, N Engl J Med 381: 1632-43, 2019
Me chamou muito a atenção os diferentes perfis de efeitos adversos das terapias dupla e tripla. Considerando que a diferença de sobrevida foi de 0.6 entre os dois grupos, aproximadamente dezoito dias, e que os intervalos de confiança de sobrevida dos dois grupos muito se sobrepõem (tanto que o estudo não tem poder para comparar os dois grupos) podemos considerar essa diferença significativa clinicamente? Creio que não. Frente a isso surge a possibilidade terapêutica de optar por um tratamento ou outro conforme o perfil de efeitos adversos afeta a qualidade de vida do paciente. Se um paciente em terapia dupla tem cefaleias que o impedem de realizar as atividades diárias normalmente, por que não passa-lo para uma abordagem tripla com a mesma expectativa de prognóstico com a chance de trocar essa cefaleia por uma diarreia não tão importante? Serão aspectos a serem considerados futuramente em um cenário de atenção privada principalmente.
Ao pensarmos em um contexto de saúde pública é claro que a adoção sistemática da terapia dupla seria mais econômica para os cofres públicos do que a tripla e pelo que os resultados sugerem, mesmo com a limitação da análise entre os grupos de terapia tripla e dupla, igualmente eficaz em estender a vida dos pacientes. Agora fica a incógnita se a indústria, que patrocina esse artigo, terá interesse em conduzir um estudo mais amplo e direcionado para elucidar se a terapia tripla é superior a dupla. Uma resposta afirmativa poderia embasar segundo os princípios da medicina baseada em evidências a adoção sistemática da terapia tripla pelos sistemas de saúde, até lá parece natural que os sistemas públicos de saúde orientem a adoção da terapia dupla visando economia, o que felizmente já representa uma melhora da sobrevida muito significativa com 40% menos chance de morte (segundo a hazard ratio) comparada com o tratamento usual (controle).
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