Enfrentamento de incertezas e dilemas éticos
Fleck, JF: Conexão Anticâncer 23 (03), 2020
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), dados do COVID-19 atualizados em 22 de março de 2020 apontaram globalmente para 294.110 casos confirmados e 12.944 mortes. Recentemente classificada como uma pandemia, já atingiu 187 países com uma taxa de letalidade (TL) de 4,4 %. Eventualmente, a TL pode mudar com maior disponibilidade do teste diagnóstico e um melhor entendimento de sua sensibilidade; no entanto, continuará sendo uma doença de alto risco para pacientes imunossuprimidos e idosos não-saudáveis. A complicação mais relevante é a síndrome respiratória aguda grave relacionada ao coronavírus (SARS-CoV2), que está associada à insuficiência respiratória, necessitando em torno de 3 semanas de suporte com ventilação mecânica. Além disso, em pacientes com câncer, a infecção por COVID-19 também está associada a uma maior probabilidade de síndrome de disfunção de múltiplos órgãos, devido a uma ampla distribuição tecidual da enzima de conversão da angiotensina 2 (ECA-2), o receptor funcional do SARS-CoV2. O estado imunossupressor causado pela doença maligna e seu tratamento também contribuem para o maior risco de complicações. Recentemente, a revista Lancet Oncology publicou uma informação detalhada sobre os primeiros 18 pacientes com câncer diagnosticados com COVID-19 na China. Os eventos graves, descritos como uso de ventilação invasiva, admissão na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) ou morte foram maiores em pacientes com câncer (39%) do que os 8% observados em pacientes sem câncer (P = 0,0003). No entanto, pacientes com câncer eram mais idosos e mais propensos a ter um histórico de tabagismo, o que pode ter contribuído para um viés epidemiológico.
Em um futuro muito próximo, dados mais robustos estarão disponíveis. Uma progressão da doença é esperada para as próximas semanas e criará fortes dilemas na tomada de decisões sobre o tratamento do câncer. A cirurgia do câncer não é considerada eletiva e deve ser realizada imediatamente na maioria dos casos. No entanto, o atraso pode ser tolerado, quando uma boa alternativa estiver disponível, como a terapia endócrina neoadjuvante do câncer de mama receptor hormonal positivo / Her-2 negativo em estágio inicial. O tratamento adjuvante deve prosseguir devido a sua intenção curativa, no entanto, comorbidades, NNT e uso de testes de expressão gênica terão um papel preponderante na determinação do prognóstico e risco de recidiva de cada paciente, orientando a melhor recomendação. A triagem de câncer como mamografia e colonoscopia deve ser adiada. Paciente com malignidade hematológica agressiva exige tratamento imediato. O transplante com células progenitoras periféricas e a terapia celular são intervenções com intenção curativa para muitas neoplasias hematológicas e não devem ser retardados. Devido a complexidade logística associada ao transplante alogênico, um atraso pode ser tolerado, se o paciente em tratamento convencional estiver bem e com doença controlada. Os médicos são encorajados a seguir as recomendações fornecidas pela American Society of Transplantation and Cellular Therapy e pela European Society for Blood and Marrow Transplantation. Qualquer paciente com câncer em remissão completa que esteja recebendo quimioterapia de manutenção, interromper tratamento pode ser uma opção. Fatores de crescimento hematopoiéticos, usados em esquemas quimioterápicos de alto risco, bem como antibióticos profiláticos, podem eventualmente reduzir complicações, neste momento específico. Sugere-se que o tratamento da doença metastática seja baseado no benefício, usando evidências como impacto na sobrevida global, SLP, qualidade de vida e escala de desempenho, em decisão compartilhada com cada paciente. A inclusão em ensaios clínicos deve ser limitada para aqueles pacientes com maior probabilidade de benefício. Sempre que possível, os pacientes devem ser tratados de forma ambulatorial. À medida que a pandemia progride, serão esperados conflitos éticos sobre a disponibilidade de leitos hospitalares, impondo maior agilidade nos critérios utilizados pelos médicos para definir a terminalidade dos pacientes com câncer, bem como critérios de beneficência ou obsolescência associados às intervenções propostas. Um esforço internacional sem precedentes tem sido feito por agências internacionais, sociedades especializadas e revistas médicas para fornecer informações sobre como lidar com pacientes com câncer na pandemia COVID-19. A American Society of Clinical Oncology (ASCO) compilou um conjunto de Perguntas Frequentes sobre COVID-19 em Oncologia Clínica, o que tem sido muito útil como um esforço de inteligência coletiva, apoiando nossas decisões diárias no tratamento de pacientes com câncer.
Uma epidemia mundial (pandemia) é um evento, não uma tendência. Provoca uma resposta imediata e generalizada. Como fenômeno social, Rosenberg descreveu seu caráter público de intensidade dramática. Ela segue um padrão arquetípico. Começa em um momento específico, prossegue para um estágio limitado no espaço e tempo, segue uma trama de tensão crescente e reveladora, passa por uma crise de caráter individual e coletivo, depois desacelera em direção ao término. Sob a ótica histórica e social, as pandemias lembram um roteiro teatral. A presente pandemia também ilustra uma nova integração geográfica da sociedade, uma revisão dos valores humanos e lições a aprender, que esperamos não sejam posteriormente negligenciadas.
NNT = Número Necessário Tratar para beneficiar um paciente, SLP = Sobrevida Livre de Progressão
Referências:
1. World Health Organization (WHO): Coronavirus Disease (COVID-19) Pandemic
(Link: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019)
2. Wenhua Liang, Weijie Guan, Ruchong Chen, et al: Cancer patients in SARS-CoV-2 infection: a nationwide analysis in China, Lancet Oncol, Feb 14th, 2020
3. Xu Z, Shi L, Wang Y, et al: Pathological findings of COVID-19 associated with acute respiratory distress syndrome, Lancet Respir Med., Feb 18th, 2020
4. Peng Zhou, Xing-Lou Yang, Xian-Guang Wang, et al: A pneumonia outbreak associated with a new coronavirus of probable bat origin, Nature, Feb 13th, 2020
5. New England Journal of Medicine: Coronavirus (COVID-19) A collection of articles and other resources on the Coronavirus (COVID-19) outbreak, including clinical reports, management guidelines, and commentary, New England Journal of Medicine (Link: https://www.nejm.org/coronavirus)
6. American Society of Clinical Oncology (ASCO) Coronavirus Resources (Link: https://www.asco.org/asco-coronavirus-information?cid=DM4727&bid=39524253)
7. COVID-19 Clinical Oncology Frequently Asked Questions (FAQs) (Link: https://www.asco.org/sites/new-www.asco.org/files/content-files/blog-release/pdf/COVID-19-Clinical%20Oncology-FAQs-3-12-2020.pdf?cid=DM4727&bid=39524253)
8. Masumi Ueda, Renato Martins, Paul C. Hendrie, et al: Managing Cancer Care During the COVID-19 Pandemic: Agility and Collaboration Toward a Common Goal, Journal of the National Comprehensive Cancer Network (NCCN), Mar 16th, 2020
9. American Society for Transplantation and Cellular Therapy Response to COVI-19 (Link: https://www.astct.org/connect/astct-response-to-covid-19)
10. Coronavirus Disease COVID-19 Recommendations by European Society for Blood and Bone Marrow Transplantation
11. Sociedade Brasileira de Oncologia Clinica (SBOC): Especial SBOC coronavírus (COVID-19) (Link: https://coronavirus.sboc.org.br/coronavirus/)
12. Charles E Rosenberg: What is an Epidemic? AIDS in Historical Perspective, MIT Press on behalf of American Academy of Arts & Sciences, Daedalus, 1989
Sempre é oportuno se basear em evidências robustas para formular uma conduta adequada a uma enfermidade. Em meio a uma pandemia dessas proporções, isso fica ainda mais "evidente", com o perdão da redundância. É necessário expor os doentes - especialmente os imunossuprimidos e/ou os mais idosos - ao menor risco possível, visto às tamanhas consequências que a infecção pode causar nessa população. Só devem ser tratados indivíduos com indicação unânime (com o maior cuidado possível), colocando qualquer tipo de triagem em segundo plano. Convém ressaltar que a relação médico-paciente é importantíssima nesse aspecto, cabendo ao profissional a tarefa de explicar e sanar todas as dúvidas de seus pacientes.
Frente à pandemia do COVID-19 várias condutas em saúde foram repensadas e reavaliadas quanto à relação risco-benefício que o paciente seria exposto. É de grande importância que os profissionais responsáveis pela determinação do tratamento de pacientes com câncer, que possuem um risco aumentado na infecção pelo vírus, conheçam a efetividade de todas as opções disponíveis, bem como que façam uma análise atenta ao contexto específico de seu paciente, tomando decisões baseadas em evidências qualificadas, visando à conduta que trará menos riscos e danos e mais benefícios e qualidade de vida para o paciente.
Os pacientes com câncer parecem ser mais suscetíveis a complicações da SARS-CoV2, tanto pela imunossupressão provocada pela malignidade e pelas intervenções terapêuticas, quanto pelas comorbidades preexistentes em muitos, como o tabagismo. Se faz necessária, dessa forma, um tomada de decisão guiada pelo princípio de não-maleficência, que requer uma avaliação individual de cada paciente bem como do risco-benefício do tratamento a que é submetido.
Atualmente, passados quase um ano de pandemia mundial, estudos enfatizam que os pacientes oncológicos necessitam de estratégias específicas para o seu manejo durante a atual pandemia, até porque, os pacientes oncológicos apresentam um maior risco de infecção pelo Sars-CoV-2. Alguns estudos destacam que a redistribuição de recursos de saúde é um grande dificultador da assistência desses pacientes. Ainda, a maioria dos estudos reforça que, durante a pandemia da Covid-19, o manejo dos pacientes com câncer deve encontrar o equilíbrio para manter o tratamento oncológico da melhor forma possível, minimizando o risco de infecção pelo Sars-CoV-2.
É muito dificil pensar no contexto da pandemia a longo prazo e pesar os riscos de iniciar um tratamento imunossupressor frente a isso. Entretanto, há casos que sabidamente não podem ser adiados. Além disso, esse medo da pandemia em quem já está em tratamento pode ser prejudicial para o seu seguimento e sua efetividade, trazendo danos irreversíveis no meio de tanta dor.
Com a pandemia do SARS-Cov-2 não somente vieram as incertezas de como manejar clínica e epidemiologicamente uma doença nova e potencialmente letal, mas, também, tendo em vista o boom de casos mundiais e a necessidade de internação hospitalar, como os serviços de saúde deveriam proceder no atendimento e recebimento de pacientes não COVID, bem como qual deveria ser a conduta dos pacientes aos buscar atendimento médico em caso de problemas de saúde. Assim, pacientes com câncer foram muito afetados como consequência desse período pandêmico, tanto pela infecção pelo próprio SARS-Cov-2 (com potencial desenvolvimento mais grave da infecção), quanto pela dificuldade e incertezas em relação ao atendimento da sua doença base – fatos que, incontestavelmente, repercutem negativamente no prognóstico e sobrevida desses pacientes.
Faça o login para escrever seu comentário.
Se ainda não possui cadastro no Portal Conexão Anticâncer, registre-se agora.