Katherine: mulheres em voo livre
Fleck, JF & Pavei, C: Conexão Anticâncer 12(03), 2019
O receptor Her-2 é expresso em cerca de 20% das células do câncer de mama, correspondendo a classificação molecular Her-2 positivo. O trastuzumab é um anticorpo monoclonal anti-Her2, que interfere com a dimerização do receptor, interrompendo a condução de transdução de sinal via MAPK e PI3K/AKT. Trastuzumab emtansine (TDM1) consiste no anticorpo monoclonal anti-Her2, conjugado a um agente citotóxico (DM1). O conjugado TDM1 é internalizado na célula tumoral via receptor Her-2, onde é metabolizado. O componente citotóxico liga-se a tubulina, interrompendo a mitose e causando a morte celular neoplásica. As diferenças farmacodinâmicas entre trastuzumab e TDM1 geraram uma hipótese alternativa fundamentada na ausência de resistência cruzada.
O tratamento neoadjuvante do câncer de mama Her-2 positivo consiste na administração pré-operatória de quimioterapia + terapia anti-Her-2 pelo período de seis ciclos. O racional busca interferir no controle local e na doença micrometastática. Resposta patológica completa é observada em um percentual variável de 40 a 60%. No entanto, um expressivo número de pacientes persiste com doença residual no tecido mamário e/ou linfonodos, constituindo um grupo de pior prognóstico. O conjugado TDM1 encontra, neste grupo específico, uma oportunidade de interferência positiva.
Em fevereiro de 2019, o German Breast Group publica no New England Journal of Medicine uma análise interina do Katherine Trial. Trata-se de um estudo prospectivo aleatório de fase III, incluindo mulheres com carcinoma de mama Her-2 positivo, T1 a T4 e/ou N0 a N3, que apresentavam doença residual após tratamento neoadjuvante. No braço controle as pacientes continuaram a receber trastuzumab, enquanto no braço teste o tratamento era convertido para TDM1. Em ambos os braços, a terapia foi considerada como adjuvante e a duração foi de 14 ciclos. O desfecho primário foi sobrevida livre de doença invasiva, que incluía ausência de recidiva homolateral em tecido mamário e linfonodos, ausência de câncer invasivo na mama contralateral, doença metastática ou morte por qualquer motivo. Após um segmento mediano de 40 meses, o estudo demonstrou que o uso de TDM1 adjuvante reduziu em 50% o risco de recorrência de câncer invasivo de mama ou morte em comparação com o uso mantido de trastuzumab adjuvante. A incidência de doença invasiva foi de 12,2% nas pacientes que utilizaram TDM-1, comparada com 22,2% observada no braço com trastuzumab. Além disso a estimativa de pacientes vivas em 3 anos foi de 88,3% versus 77% respectivamente no braço teste e braço controle (HR 0,50 P < 0,001). As taxas de recorrência a distância também foram menores no grupo que recebeu o TDM-1 (10,9%) versus trastuzumab (15,9%). No entanto, não houve diferença na metastatização para o SNC, o que merece especial atenção.Houve maior toxicidade com TDM1, especialmente plaquetopenia, hipertensão, toxicidade hepática e neuropatia. Eventos adversos que conduziram a suspensão do tratamento foram mais frequentes no grupo TDM1 (18%) do que no grupo trastuzumab (2,1%). Embora seja um desfecho substitutivo, a grandeza da diferença remete para um possível novo standard terapêutico.
Reconhecimento especial deve ser dado as mulheres que participaram do Katherine Trial. Mesmo em uma situação de tratamento com intensão curativa, este grupo de mulheres reconhece o racional científico e embarca em um estudo clínico com um potencial de benefício pessoal, mas também coletivo. Trata-se de um voo livre e destemido seguindo o exemplo de Katherine Stinson. Em 1912, esta mulher com apenas 21 anos de idade, recebe uma licença para voar nos EUA. Muito precocemente em sua vida, ela vence uma tuberculose pulmonar e continua voando, quebrando recordes e participando ativamente em causas humanitárias até sua morte em 1977, aos 86 anos de idade. O reconhecimento por seu desprendimento e iniciativa ocorreu no início do século XXI, quando passou a fazer parte do International Air & Space Hall of Fame. O exemplo de Katherine Stinson é compartilhado por cada uma das mulheres que ingressaram no Katherine Trial. A cidade de San Antonio nos EUA compartilhou das duas histórias, pois foi o local da criação da escola de aviação de Katherine Stinson e primeiro palco da apresentação dos dados de análise interina do Katherine Trial.
Referência:
G. von Minckwitz, C.-S. Huang, M.S. Mano, et al: Trastuzumab Emtansine for Residual Invasive HER2-Positive Breast Cancer, N Engl J Med 380:617-28, 2019
Debra L. Winegarten: Katherine Stinson: The Flying Schoolgirl, Eakin Press, Austin, TX, 2000
Sabemos que hoje já existiam terapias quimioterápicas que agem sobre a tubulina, como os alcalóides da vinca, e que estas têm limitações de eficiência e importante toxicidade, especialmente neurológica. Por isso os estudos com terapias imunobiológicas são tão extraordinários: eles abrem as fronteiras impostas pelas terapias atuais e permitem que a mesma doença seja tratada através de novas perspectivas e com mais efetividade. Entretanto, creio que este estudo tenha uma relevância especial, pois ele direciona luz sobre a realidade diária do uso clínico de um anticorpo monoclonal. Embora tendenciemos a acreditar na tendência de um constante avanço terapêutico de caráter substitutivo, o estudo Katherine nos mostra que a união de uma terapia imunobiológica com uma citotóxica pode ser ainda a melhor alternativa que temos em mão para o tratamento de nossos pacientes. Quero ainda expressar minha admiração pela coragem das mulheres participantes do estudo, que correram os riscos e permitiram a expansão das fronteiras do conhecimento.
É contraditório ver que 60-40% das doenças micrometastáticas não são controladas em um tumor tão propagado como curável como o câncer de mama. Por outro lado, os agentes monoclonais realmente abriram um mundo de possibilidades recolocando o sistema imune e o poder do próprio organismo em participar da terapia anticâncer de forma mais efetiva, e uma redução de 50% do risco de recorrência, mesmo com uma porcentagem considerável de efeitos adversos no grupo TMD1, são efeitos nos quais já temos mais experiências clínicas vindas dos próprios agentes quimioterápicos, além de dar um novo olhar para esses tumores nos quais já conhecemos melhor a expressão gênica, abrindo portas também para outros agentes monoclonais no futuro.
O mapeamento de moléculas expressas em determinados tipos de câncer permite o direcionamento de terapia específica contra as neoplasias (terapia alvo), possibilitando, em alguns casos, maior sucesso terapêutico e menos efeitos em outras regiões do corpo que não apresentem tal molécula. É o caso do trastuzumab, utilizado em terapia neoadjuvante para pacientes com CA de mama HER-2 positivo. Sendo assim, fica a dúvida que motivou o estudo: o que fazer em pacientes que permanecem com doença residual mesmo após terapia com trastuzumab? Incluir o agente citotóxico DM1 parece ser muito promissor, considerando os resultados do estudo (redução de 50% no risco do desfecho primário) e o fato de a análise estatística ter sido feita por intenção de tratar e o grupo intervenção ter tido maior número de pacientes que pararam o tratamento, sendo que isso pode diminuir a grandeza do efeito que, apesar disso, ainda foi grande.
Já é estabelecida a importância da verificação da expressão do receptor Her-2 devido à sua diferente perspectiva de prognóstico e tratamento. No entanto, é alarmante o fato de 40 a 50% das pacientes com câncer de mama persistirem com doença residual em tecido mamário e/ou linfonodal. Assim, acredito que o background para o Katherine trial seja de extremamente relevante. Além disso, mesmo sem o artigo na íntegra, parece ser um ECR bem desenhado e com desfecho primário crítico para tomada de decisão. A possibilidade de redução de 50% de recorrência de doença invasiva é uma vitória para tantas mulheres que tem o diagnóstico de câncer de mama Her-2 positivo. Contudo, são necessários mais evidencias para averiguar a importância da melhora clínica da pacientes, pois os efeitos adversos no grupo de pacientes com o tratamento adjuvante de TDM1 foi bastante expressivo. Muitas vezes os pacientes vem novos tratamentos como uma forma mágica atingir a cura, sem avaliar corretamente a possibilidade de efeitos adversos disso. Dessa forma, é nosso dever como médicos averiguar com cuidado as evidências e orientar corretamente nossos pacientes.
O Katherine Trial evidência o valor das terapias monoclonais, pois houve uma redução significativa de recorrência de doença invasiva, no meu ver o grande ganho foi aumentar as possibilidades de tratamento para os pacientes com HER-2. Apesar do aumento bem significativo da toxicidade, o tratamento demonstrou uma alternativa muito boa aos pacientes então estabelecendo uma via alternativa aos pacientes que não apresentarem toxicidade.
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