Quebra de paradigma no conceito da intervenção órgão-orientada em oncologia
Fleck, JF & Rodrigues, MI: Conexão Anticâncer 19(03), 2019
Analisar o câncer como uma doença única é tão primário como desvendar as leis universais da física olhando para as estrelas. Em cada avanço no conhecimento, paradoxalmente ampliam-se os limites do desconhecido. Estudos em biologia molecular do câncer progressivamente revelam sua instabilidade genômica. A descoberta de novos padrões mutacionais amplia o espectro de interferência nas cadeias de transdução de sinal já identificadas. Recursos de big data (machine learning e deep-learning) aumentam a expectativa de um abrangente mapeamento genômico do câncer, porem esta aquisição ainda é ficcional. A oncologia está migrando da geração do conhecimento órgão-orientado para a identificação de clusters celulares capazes de antecipar o comportamento biológico.
O conceito de doença oligometastática é sustentado por um comportamento biológico indolente, envolvendo um número restrito de sítios de disseminação. O conceito associa-se ao polimorfismo na expressão fenotípica tumoral, podendo expressar-se em histologias variadas e não órgão-dependentes. Trata-se de uma constatação clínica que ainda carece de uma sustentação molecular unificadora. A despeito da heterogeneidade tumoral, o conceito é inovador pois remete a geração de uma hipótese alternativa que quebra paradigmas puramente morfológicos e amplia a intensão curativa das intervenções para o cenário da doença metastática.
Em agosto de 2018, o International Journal of Radiation Oncology Biology & Physics publica um estudo multicêntrico de fase II, avaliando o uso da radioterapia estereotáxica ablativa (RTEA) no tratamento do câncer oligometastático. A RTEA permitiu administrar altas doses de irradiação com maior precisão na definição dos campos e consequente menor toxicidade imposta aos tecidos normais. A definição de doença oligometastática incluiu pacientes com diversos tipos de tumores primários, mas que tinham em comum um número igual ou menor do que 5 metástases, expressas em 3 ou menos órgãos, constatadas ao exame de PET-CT. Adicionalmente, o critério incluiu apenas pacientes com doença oligometastática em apresentação metacrônica. Os tumores primários mais comuns foram o carcinoma brônquico (21.8%), adenocarcinoma colorretal (21.1%), carcinoma epidermóide da cabeça & pescoço (10.9%), carcinoma de mama (8.8%) e adenocarcinoma da próstata (7.5%). Predominaram pacientes em que a RTEA foi administrada a um sítio (70.7%) ou dois sítios (19%) de disseminação tumoral. Os locais mais frequentes de intervenção com RTEA foram o pulmão (52.3%), linfonodos (14.7%) e ossos (6.9%). Após um seguimento mediano de 41.3 meses foi observada uma sobrevida mediana de 42.3 meses e uma sobrevida global (SG) em 5 anos de 43%. A análise multivariada atribuiu importância prognóstica ao performance status, a metastasectomia prévia (impactando em SG), bem como a ressecção do tumor primário e um número de metástases inferior a 3 (impactando em sobrevida livre de progressão local). Houve também expressiva diferença na SG entre os diferentes tumores primários (a SG em 5 anos foi de 100% e 56%, respectivamente em próstata e mama e a sobrevida mediana foi de 54.4 meses e 26.8 meses, respectivamente em colorretal e pulmão). A RTEA apresentou baixo índice de toxicidade e não comprometeu a qualidade de vida em questionários respondidos pelos pacientes. Os autores concluem que a RTEA se mostrou segura e eficaz no tratamento do câncer oligometastático, embora parâmetros de eficácia (SG em 5 anos ou SG mediana) estejam metodologicamente fragilizados em um estudo de fase II, destituído de braço controle.
Dados epidemiológicos publicados em 2017 pelo Surveillance, Epidemiology and End Results (SEER) Program norte-americano indicam uma SG em 5 anos no câncer metastático não-hematológico variando de 3 a 38%. Abaixo segue uma tabela ilustrativa da SG em 5 anos divulgada pelo SEER 2017, conforme localização do tumor primário. A comparação dos desfechos em neoplasias metastáticas divulgados pelo SEER 2017 difere expressivamente daqueles obtidos nas cinco doenças oligometastáticas predominantes incluídas no estudo com RTEA, tanto na análise conjunta como individualizada pelo tumor primário. Trata-se nitidamente de um viés de seleção cujo melhor desfecho poderia ser atribuído apenas ao comportamento biológico indolente, independente da intervenção. O estudo valida a segurança da RTEA no cenário da doença oligometastática, mas não permite concluir por sua eficácia.
Em novembro de 2018 foi apresentado no 60th American Society for Radiation Oncology (ASTRO) Annual Meeting os resultados preliminares do estudo SABR-COMET. Apesar de ser um estudo de fase II, os pacientes com doença oligometastática foram distribuídos na proporção 1:2 para um braço controle submetido a cuidados de tratamento standard (CTS) ou um braço teste em que os pacientes recebiam CTS + RTEA. Guardadas as limitações de um estudo pequeno (n=99) o resultado da interferência com RTEA foi positivo. A SG mediana foi de 41 meses no braço com RTEA versus 28 meses no braço controle. Um n pequeno associado a uma distribuição 1:2 limita as conclusões, porém favorece o desenho de estudos de fase III com maior poder estatístico.
Referências:
Philip Sutera,David A. Clump,Ronny Kalash, et al: Initial Results of a Multicenter Phase 2 Trial of Stereotactic Ablative Radiation Therapy for Oligometastatic Cancer,Int J Radiation Oncol Biol Phys103 (1):116 - 122, 2018
Rebecca L. Siegel, Kimberly D. Miller, Ahmedin Jemal:Cancer Statistics, Surveillance and Health Services Research, American Cancer Society, CA Cancer J Clin 67: 7 – 30, 2017
D.A. Palma, R.A. Olson, S. Harrow, et al: Stereotactic Ablative Radiation Therapy for the Comprehensive Treatment of Oligometastatic Tumors (SABR-COMET): Results of a Randomized Trial, Int J Radiation Oncol Biol Phys102 (3) S3-S4, 2018
É interessante descobrir que é possível se desenvolver uma técnica de terapia genérica para câncer oligometastático, em contraste com o tratamento individualizado para cada tipo de câncer ao qual estamos acostumados a estudar, uma vez que a variabilidade da doença ainda é muito grande. Ainda assim, pelo fato de haverem ainda poucos estudos a respeito, e ainda menos ECRs, as evidências dos benefícios da RTEA ainda são fracas, apesar de positivas. O estudo SABR-COMET, apesar de pequeno, pode ser considerado um estudo bem desenhado e esmerado nos detalhes. Os vieses, no entanto, ainda existem e alguns são difíceis de se controlar (como grupos de tamanhos diferentes e a possível quimioterapia a critério do oncologista (o que cria uma irregularidade de tratamento entre os pacientes, que já não são uniformes em sítio primário)). Mesmo assim, os resultados são promissores, como evidenciado neste artigo, e poder contar com um tratamento não-sistêmico e não-cirúrgico para doenças oligometastáticas, que em alguns casos seriam aquelas em que por pouco o paciente não pôde contar com um tratamento mais localizado e acaba tendo que se submeter a um tratamento mais radical.
Apesar da evidente cautela necessária com relação à análise dos resultados dos estudos, há uma perspectiva de grandes avanços no tratamento do câncer oligometastático através da radioterapia estereotáxica ablativa. Espera-se que, aliadas à evolução significativa da resolução dos exames de imagem, as terapêuticas tornem-se progressivamente mais precisas, mais eficazes e menos tóxicas sistemicamente.
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