Cooperação científica internacional
Fleck, JF: Conexão Anticâncer 17(06), 2019
O carcinoma do nasofaringe tem expressão endêmica, predominando no sul da China, sudeste asiático e norte da África. Dados epidemiológicos internacionais atualizados em 2018 pela International Agency for Cancer Research (IARC) apontam para uma incidência mundial de 130000 (ASR = 1.5), associada a uma mortalidade de 73000 (ASR = 0.84). No entanto, em áreas endêmicas pode atingir 25 casos / 100 mil habitantes (incidência semelhante ao câncer de pulmão no mundo ocidental). Variações geográficas implicam em esforços concentrados suportados pela cooperação científica internacional. Trata-se de um tumor maligno que se origina no epitélio de revestimento do nasofaringe, predominando a expressão morfológica indiferenciada (tipo III da classificação da OMS) principalmente nas áreas endêmicas, onde corresponde a 95% dos casos. Em regiões geográficas de alta prevalência sua etiologia está associada ao EBV e ao HPV em respectivamente 91.5% e 7.7% dos casos, com marcada suscetibilidade genética e expressão de polimorfismo. A forte associação com EBV tem recomendado sua utilização como método de screening em populações de alto risco. A expressão de EBV-DNA é um fator prognóstico e preditivo de doença metastática. Em carga superior a 4000 cópias / mL é recomendado o uso de PET-CT no estadiamento. A pouca familiaridade do mundo ocidental com esta doença, implica em atenção especial ao examinar pacientes com otite média associada a aumento de linfonodos cervicais, comprometimento de pares cranianos e/ou manifestações para-neoplásicas como febre, osteoartropatia hipertrófica e dermatomiosite.
Em maio de 2019, o Sun Yat-sen University Cancer Center, Ghangzhou, China publica no New England Journal of Medicine um estudo prospectivo aleatório de fase III avaliando o benefício da quimioterapia de indução (QI) precedendo o tratamento combinado com quimioterapia + radioterapia (Q+R) do carcinoma de nasofaringe localmente avançado (CNLA). O estudo distribuiu 480 pacientes com CNLA na proporção de 1:1 para um braço-teste composto por QI (três ciclos de cisplatina + gemcitabina) seguido de Q+R, versus um braço-controle constituído por pacientes tratados exclusivamente com Q+R. Após follow-up mediano de 42.7 meses a sobrevida livre de recorrência em 3 anos foi de 85.3% no braço-teste e de 76.5% no braço-controle (HR = 0.51 P= 0.001). Uma precoce avaliação da sobrevida global em 3 anos foi de 94.6% versus 90.3%, favorecendo o braço-teste (HR = 0.43). Também houve benefício na sobrevida livre de recidiva a distância com o uso de QI (HR = 0.43). No entanto, a sobrevida livre de recorrência local foi semelhante em ambos os braços, com índices muito próximos (91.8% no braço-teste e 91% no braço-controle). Houve maior toxicidade de grau 3 e 4 no braço teste (77.7% versus 55.7%). Todos os pacientes no braço-teste completaram o protocolo definido de radioterapia com intensidade modulada (RTIM), porém somente 38.9% completaram os três ciclos de cisplatina programados para administração concomitante com a RTIM. A dose mediana da cisplatina concomitante a RTIM foi de 200 mg no braço-teste e 300 mg no braço-controle. O tempo mediano transcorrido entre o início do terceiro ciclo de QI e o início da QR foi de 25 dias, correspondendo a 17 dias após a última dose de gemcitabina. O efeito radiossensibilizante da gemcitabina pode ter sido responsável pela redução na dose de cisplatina durante a RTIM administrada no braço-teste. Considerando que a expectativa de sobrevida global mediana em 5 anos para o CNLA (estádios III a IVB) varia de 54 a 66%, os resultados deste estudo devem ser interpretados como imaturos, especialmente devido a resultados contraditórios, previamente publicados pelo National Cancer Centre Singapura.
ASR = Age Standardized Rate OMS = Organização Mundial da Saúde EBV = Epstein-Barr vírus
Referências:
Y. Zhang, L. Chen, G.-Q. Hu, et al: Gemcitabine and Cisplatin Induction Chemotherapy in Nasopharyngeal Carcinoma, N Engl J Med May 31st, 2019. DOI 10.1056/NEJMoa1905287
Tan T, Lim WT, Fong KW, et al. Con- current chemo-radiation with or without induction gemcitabine, carboplatin, and paclitaxel: a randomized, phase 2/3 trial in locally advanced nasopharyngeal carcinoma. Int J Radiat Oncol Biol Phys 91:952-60, 2015
O carcinoma de nasofaringe tem expressão endêmica (sul da China, sudeste asiático e norte da África) e apresenta alta associação aos vírus EBV e HPV. Assim, os esforços da cooperação internacional devem ser direcionados para a realidade dos casos dessas regiões geográficas.O estudo publicado no New England Journal "Gemcitabine and Cisplatin Induction Chemotherapy in Nasopharyngeal Carcinoma" se insere dentro da realidade de que 70% dos casos são diagnosticados como lesões localmente avançadas e avalia o benefício da quimioterapia de indução precedendo o tratamento combinado com quimioterapia + radioterapia, revelando resultados imaturos e contraditórios em relação a outro estudo publicado. Desse modo, acredito que, além da necessidade de mais estudos para o tratamento da doença localmente avançada, a comunidade científica deveria concentrar seus esforços em garantir a prevenção da tramissão dos vírus envolvidos e o diagnóstico mais precoce da doença.
O carcinoma de nasofaringe não é tão facilmente reconhecido pelas comunidades médicas ocidentais. Contudo, sua prevalência em áreas endêmicas é tão alta quanto a do câncer de pulmão no mundo ocidental. Portanto, é imperativo que haja um esforço conjunto das comunidades médicas de múltiplos países, sejam eles áreas endêmicas ou não, para a formulação de novas soluções que auxiliem no diagnóstico precoce e no tratamento mais efetivo possível para esta doença. O artigo Gemcitabine and Cisplatin Induction Chemotherapy in Nasopharyngeal Carcinoma se propõe a avaliar o benefício de uma nova opção terapêutica, a quimioterapia de indução com gemcitabina e cisplatina associada a Q+R, versus a opção padrão, apenas Q+R. Os resultados parecem promissores em primeira análise: o número de pacientes vivos e livre de recidivas em 3 anos foi de 85.3% (80.0–89.3) no braço teste versus 76.5% (70.4–81.5) no braço controle (HR: 0.51; 0.34–0.77 95%CI); a sobrevivência geral também foi maior no braço teste, 94.6% (90.6–96.9), do que no braço controle, 90.3 %(85.6–93.5), (HR: 0.43; 0.24–0.77 95%CI); e o número de sobreviventes sem metástases à distância em 3 anos também foi maior no braço teste (91.1 (86.4–94.2) versus 84.4 (79.1–88.5); HR: 0.43; 0.25–0.73 95%CI). Contudo é importantíssimo ressaltar que o número de efeitos adversos, bem como a frequência de eventos de grau 3 e 4, também foi maior no braço teste. Em especial para: leucopenia, neutropenia, anemia, trombocitopenia, náuseas, vômitos, boca seca, nefro e hepatotoxicidade. Na minha opinião, o artigo falha ao não divulgar em sua tabela 3 os intervalos de confiança para que possamos ter certeza de que a associação é estatisticamente significativa, embora os números avulsos já sejam fortemente sugestivos e os autores comentem na discussão que os pontos percentuais de sobrevida ganhos pela terapia teste venham ao custo de um maior número de efeitos adversos agudos. Não parece haver uma diferença estatística entre os efeitos adversos a longo prazo. A produção científica acerca de assuntos mais infrequentes no mundo ocidental é vital para a evolução da ciência médica. O continente asiático possui cerca de 4.5 bilhões de habitantes, 60% da população mundial, o que significa que avanços nos métodos de diagnóstico e tratamento de doenças endêmicas a este continente têm um grande impacto no que se refere à preservação de vidas humanas. A missão da comunidade científica internacional deve ser agir em sinergia para atingir este objetivo.
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