Nova fórmula de avaliação da função renal diminui o erro na prescrição de medicamentos potencialmente tóxicos
Basso, J & Fleck, JF: Conexão Anticâncer 25(09), 2017
A expressão latina primun non nocere está associada ao princípio ético da não-maleficência, que remonta ao juramento de Hipócrates há mais de 400 anos AC. O conceito permanece atual em oncologia clínica, pois exige atenção continuada na prescrição de tratamentos potencialmente tóxicos.
No tratamento do câncer, a escolha do medicamento deve considerar as comorbidades do paciente e suas implicações na farmacocinética da droga. Diversos quimioterápicos tem excreção predominantemente renal, tornando a aferição precisa da taxa de filtração glomerular (TFG) um importante recurso para evitar tanto a sub-dosagem quanto a dose excessiva em pacientes com insuficiência renal. Sua relevância é magnificada na contingência do tratamento curativo. A carboplatina é uma droga cuja excreção é linearmente relacionada com a TFG. A cisplatina tem seu uso clínico limitado a uma TFG mínima de 50 ml/min.
Tradicionalmente, o padrão ouro usado para medir a TFG é a 51Cr EDTA. Ao longo do tempo, diversas fórmulas foram desenvolvidas buscando estimar a TFG, porém sem consenso sobre o melhor método. A relevância do tema conduziu ao desenvolvimento de um método mais abrangente de avaliação da TFG denominado Body surface area (BSA)–adjusted chronic kidney disease epidemiology (CKD- EPI).
Um estudo publicado no Journal of Clinical Oncology em agosto de 2017, faz uma análise comparativa dos métodos para avaliar TFG em pacientes com câncer. Foram selecionados 2471 pacientes entre os anos de 2006 e 2013. Em geral eram pacientes com boa TFG, mostrando uma mediana de 81 mL/min. A fórmula que demonstrou maior acurácia e portanto menor erro para estimar a TFG foi a CKD-EPI. Para a elaboração da nova fórmula, os pacientes foram divididos em dois grupos. O primeiro, incluindo 80% da amostra, foi usado para o desenvolvimento do modelo e o outro, menor (20% da amostra), para sua validação interna. Adicionalmente, foram escolhidos 111 pacientes com diagnóstico de seminoma em estádio I, com indicação de carboplatina em uso adjuvante, para validação externa do modelo. A TFG mediana desses pacientes era de 113 mL/min. O cálculo do novo modelo utilizou como base a raiz quadrada da TFG, incluindo em sua fórmula a idade, sexo, superfície corporal e o logaritmo de creatinina. Esse novo modelo demonstrou maior precisão na estimativa da TFG e consequente redução no número de pacientes recebendo doses equivocadas.
Referência:
Janowitz, T; Williams, EH; Marshall, A: New Model for Estimating Glomerular Filtration Rate in Patients With Cancer, J Clin Oncol 35: 2798 – 2805, 2017
Tendo em vista que a medida da TGF serve como base para a manutenção da dosagem de diversos medicamentos em diferentes doenças, encontrar a melhor forma de aferi-la implica diretamente na exposição dos pacientes a concentrações adequadas de fármacos. Mesmo com os avanços cada vez mais específicos em investigações laboratoriais, tratamentos cirúrgicos e farmacológicos, considero que o profissional de saúde deva voltar sempre à reflexão sobre princípios básicos da Medicina, como o da não maleficência, beneficência, justiça e autonomia. Assim, prezando pela não- maleficência da toxicidade, é imprescindível que os pacientes sejam submetidos às melhores técnicas disponíveis para evitá-la.
As pesquisas em tratamento do câncer, em toda sua complexidade pela busca de medicamentos que possam buscar a cura, também precisam focar-se em tratamentos cuja dose seja adequada para que o objetivo seja atingido. Nesse enfoque, cada vez mais buscam-se novas técnicas para garantir que essas medidas estejam adequadas, como por meio dos níveis da TFG. É imprescindível que não somente se administre aos pacientes a medicação mais correta para a sua comorbidade, mas também se garanta que a dose recebida seja a correta para que se alcancem o máximo de benefícios e se tenha o mínimo de malefícios.
O desenvolvimento de uma nova fórmula para diminuir a toxicidade renal causada pelos quimioterápicos é algo ímpar, já que assim os pacientes poderão receber a dose adequada para seu tratamento com o mínimo possível de dano causado. Estudos como esses, que aprimoram cada vez mais o tratamento do câncer, com certeza dão mais expectativa tanto para médicos quanto para pacientes.
A criação de um novo método para avaliação da TFG é de grande valia para a oncologia, mas também para diversas outras áreas da medicina. O ajuste de dose permite o cálculo adequado da dosagem do medicamente, impedindo que o paciente receba doses excessivas - causando prejuízo ao bom funcionamento de outros órgãos (pela toxicidade) e da saúde em geral do paciente -, mas também permitindo que a dose máxima para combater a doença seja administrada - trazendo ainda mais benefícios para o paciente.
A reflexão acerca de não causar dano ao paciente é ainda mais importante no contexto da oncologia. Muitas vezes são pacientes que já não tem esperanças de cura, e o médico passa então a buscar aumento de sobrevida para o seu paciente. No entanto, talvez esse não seja o principal objetivo, e sim qualidade de vida. Uma boa estimativa da taxa de filtração glomerular e o cálculo adequado das doses de medicamentos entram nesse contexto, visto que muitas das drogas usadas na oncologia clínica são toxicas a muitos órgãos e podem prejudicar o paciente se não forem bem administradas.
Quando falamos em oncologia, sabemos que há uma linha muito tênue entre efeito positivo dos tratamentos sobre o câncer e toxicidade deles ao paciente. Isso é uma preocupação não somente dos médicos, mas também dos pacientes que muitas vezes recusam o tratamento pelo medo do sofrimento causado pelas drogas antineoplásicas. Nesse cenário, qualquer avanço que possibilite o melhor manejo causando menos comorbidades é digno de especial atenção. Ciente de que muitos quimioterápicos têm excreção renal, uma melhor estimativa da TFG pode ajudar a dar melhores condições de sobrevida ao paciente, evitando concentrações tóxicas e também contribuindo com melhor eficácia do tratamento ao inibir sub-dosagens. Dessa forma, torna-se menos angustiante para médicos e pacientes a decisão e o acompanhamento do tratamento quimioterápico visto que, há possibilidade de um controle mais fidedigno dos efeitos gerados.
O tratamento da maioria das doenças envolve toxicidade, principalmente renal, e a principal forma de medir a função renal e acompanhar o tratamento e ajuste de dose é a TFG. Um novo método que estime com maior precisão a TFG seria muito importante, para um melhor acompanhamento dos pacientes, levando a menor toxicidade medicamentosa, já que, por exemplo, na oncologia, os antineoplásicos são muito tóxicos.
A nefrotoxicidade é um problema a ser contornado na prática clínica durante a prescrição de medicamentos. A ação tóxica de alguns compostos tangencia a dose terapêutica, algo que deve ser notado e levado em consideração no dia-a-dia médico. Ter mecanismos mais acurados para a correta estimativa da capacidade de filtração renal dos paciente previne a dosagem errada, que levam ao subtratamento ou à nefrotoxicidade aguda. A nova fórmula já é usada na prática clínica e reflete um menor número de erros no tratamento de pacientes - inclusive oncológicos -, exibindo menores taxas de recidiva e mais porcentagem de pacientes curados.
As estimativas de filtração são de grande valia, em especial à ocologia, pois reduzem os riscos por toxicidade; além disso, permitem inferir o grau funcionamento do rim, que, além da depuração, pode atuar em qualquer fase farmacocinética (absorção, distribuição, metabolismo e excreção). Assim, o artigo permite certo otimismo não só para um melhor manejo de riscos, como também para tratamentos mais eficientes. E, se considerarmos que a quimioterapia em si pode representar um peso para a qualidade de vida, torna-se muito feliz a escolha do título pois, direta ou indiretamente, as equações aprimoradas contribuem para a questão primordial da prática médica.
A evolução médica constante - baseadas em evidências - dos procedimentos, prevenções, métodos diagnósticos, aferições prognósticas e terapêuticas (farmacológicas ou não) é um dos alicerces da medicina contemporânea, visto que esta almeja sempre o melhor atendimento das pessoas as quais se encontram necessitadas de ação médica. Nesse contexto, a evolução de métodos que afiram a TFG é fundamental para melhorar não só a posologia medicamentosa como também outros aspectos da rotina médica (estadiamento, prognóstico e intervenções de doenças, como a DRC e a IRA). Outro adendo interessante que comprova a maliabilidade e evolução médica é que está frase, presente no texto-resumo acima, de 2017, "Tradicionalmente, o padrão ouro usado para medir a TFG é a 51Cr EDTA", hoje, em 2019, estaria incorreta; haja vista que o padrão ouro atual da medição da TFG é o CKD-EPI. Faço questão de usar a palavra "atual", pois o amanhã não conhecemos.
Não somente o câncer enquanto doença, o tratamento quimioterápico por si também configura-se como causa importante de morbimortalidade entre os pacientes. Tomemos como exemplo a própria cisplatina, um agente alquilante sem especificidade para células neoplásicas, que acaba por produzir amplos efeitos adversos sistêmicos, especialmente ao aparelho auditivo, TGI, sistema nervoso e rins. A maior parte das terapias, devido a sua citotoxicidade, exige certo grau de performance do paciente para ser implementada, e, naqueles com TFG reduzida, a linha entre remédio e veneno torna-se ainda mais tênue. Uma estimativa precisa da TFG, portanto, é imprescindível no contexto do tratamento do câncer, para que possamos obter o máximo de benefício minimizando os riscos, assim seguindo o princípio básico da medicina que muitas vezes nos esquecemos: primun non nocere.
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