Cirurgia de citorredução no câncer de ovário recidivado

Convivendo com ambivalência

Fleck, JF: Conexão Anticâncer 09(12), 2019

Dados atualizados da International Agency for Research on Cancer (IARC) revelam a relevância epidemiológica global assumida pelo câncer de ovário. Entre as neoplasias ginecológicas, o câncer de ovário ocupa a terceira posição em incidência (ASR = 6.6) e em mortalidade (ASR = 3.9). Esta informação vem enviesada pela alta incidência e mortalidade por câncer de colo uterino nos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos. A melhora da acuidade no screening do câncer do colo uterino obtida com imagens digitalizadas e inteligência artificial poderá mudar este cenário. O avanço global no diagnóstico precoce do câncer de colo uterino promoverá a câncer de ovário para a segunda posição mundial em incidência e mortalidade por câncer ginecológico. Infelizmente, ainda não existem métodos eficientes de screening para o câncer de ovário e somente 25% dos casos são diagnosticados em estádios iniciais. A maioria das pacientes (75%) são diagnosticadas em estádios localmente avançado (III) ou metastático (IV). Embora a cirurgia (histerossalpingo-ooforectomia bilateral) seja o tratamento primário standard em estádios iniciais, a indicação da cirurgia de citorredução secundária em estádios avançados permanece controversa. Há controvérsias, particularmente devido as evidências crescentes de benefício com a atual utilização de bevacizumab ou de inibidores da PARP (polyadenosine diphosphate-ribose polymerase) no tratamento de manutenção do câncer de ovário platina-sensível recidivado.

Em novembro de 2019, o New England Journal of Medicine publica os resultados do estudo GOG-0213. Trata-se de um estudo multicêntrico, prospectivo e aleatório de fase III no qual pacientes com carcinoma de ovário recidivado, não-platina resistentes e com doença ressecável são distribuídos para um braço tratado com citorredução + tratamento sistêmico versus um braço com tratamento sistêmico exclusivo. No delineamento do estudo, um dos objetivos era verificar o benefício da associação de bevacizumab com quimioterapia, tanto na indução de resposta como na manutenção. O outro objetivo era a avaliação do benefício alcançado com o uso de cirurgia de citorredução ótima. O tratamento com quimioterapia + bevacizumab foi administrado a 84% dos pacientes, observando-se adequado pareamento nos dois braços do estudo. O programa de quimioterapia mais utilizado (69% das pacientes) foi a combinação paclitaxel + carboplatina. No braço submetido a citorredução, 67% dos pacientes atingiram a condição de ressecção transoperatória completa. Uma publicação prévia no Lancet Oncology em Junho de 2017, após follow-up mediano de 49.6 meses, mostrou um aumento na sobrevida global mediana em pacientes tratadas com bevacizumab + quimioterapia (42.2 meses) em comparação com quimioterapia exclusiva (37.3 meses) (HR = 0.83 e um P=0.056). Esta diferença foi magnificada em uma análise de sensibilidade sustentada na estratificação quanto ao tempo livre de tratamento. A publicação mais recente avaliou o impacto da cirurgia de citorredução. A sobrevida livre de progressão foi numericamente superior no braço com citorredução, todavia um HR=0.82 para progressão de doença e morte não evidenciou este benefício. A cirurgia não aumentou a sobrevida global, mesmo no grupo de pacientes com resposta transoperatória completa. A discussão autocrítica do estudo GOG-0213 admitiu eventual viés de seleção e a definição segura de um standard terapêutico para pacientes com carcinoma de ovário não-platina resistentes aguarda a maturação de estudos clínicos prospectivos em andamento. 

ASR = Age standardized rate

 

Referências:

 

Robert L. Coleman, Nick M. Spirtos, Danielle Enserro, et al: Secondary Surgical Cytoreduction for Recurrent Ovarian Cancer, N Engl J Med, N Engl J Med 381:1929-39, 2019

Robert L Coleman, Mark F Brady, Thomas J Herzog, et al: Bevacizumab and paclitaxel–carboplatin chemotherapy and secondary cytoreduction in recurrent, platinum-sensitive ovarian cancer (NRG Oncology/Gynecologic Oncology Group study GOG-0213): a multicentre, open-label, randomised, phase 3 trial, Lancet oncol 18(6): 779-791, 2017