Balas mágicas no tratamento do câncer de pulmão

Uso de metáforas descritivas ilustrando a cronificação da doença metastática

Tiago Elias Heinen, MD, PhD & James Fleck, MD, PhD

Em 1908, Paul Ehrlich recebeu o Prêmio Nobel de Medicina utilizando uma metáfora descritiva denominada magische kugel. O termo remete para uma linguagem simbólica na qual balas mágicas atingem alvos biológicos com alta especificidade. O conceito promoveu avanços em imunologia, que atualmente sustentam o tratamento do câncer com drogas de alvo biológico. O desenvolvimento de habilidades semióticas e linguagem metafórica vêm impulsionando avanços em biotecnologia. Criou-se uma rede complexa de sinais pré-linguísticos que promovem interferências cognitivas crescentes. Em biologia sintética, o uso da metáfora descritiva vem sendo culturalmente regulada, promovendo aceitação social e ética, bem como fundamentando a atual investigação científica.  

Na oncologia atual, um dos principais alvos estudados são os receptores tirosina quinases, representados pelo acrônimo TKRs (Tyrosine Kinase Receptors), os quais são uma subclasse de receptores transmembrana para fatores de crescimento celular. Eles regulam diversas funções nas células normais, além de possuírem papel crucial na oncogênese. Grandes esforços têm sido realizados para entender seu papel na proliferação, migração, diferenciação e imortalidade das células tumorais. Quando mutados, estruturalmente alterados ou ativados constitutivamente, os TKRs tornam-se potentes onco-proteínas, levando ao desenvolvimento e progressão do câncer. Em vista disso, TKRs e seus ligantes tornaram-se excelentes alvos terapêuticos de inibidores da tirosina quinase (TKI = Tyrosine Kinase Inhibitor). Este conceito, tem permitido o desenvolvimento e disponibilização de novas drogas contra o câncer, como o trastuzumab (anti-HER2 utilizado no tratamento curativo e paliativo do câncer de mama), imatinib (BCR-ABL TKI para leucemia mielóide crônica), gefitinib (EGFR TKI responsável pela cronificação do adenocarcinoma brônquico EGFR-mutado), cetuximab (anticorpo anti-EGFR utilizado no tratamento do câncer colorretal ras-selvagem). Além disso, outros TKIs estão em fase de pesquisa em diversos cenários clínicos.

Atualmente, o adenocarcinoma de pulmão representa o protótipo da doença oncológica metastática passível de cronificação associada ao uso de TKIs. O câncer de pulmão é a maior causa de morte câncer-específica no mundo. Dados estimaram cerca de 2,2 milhões de novos casos em 2020, infelizmente ainda acompanhados de 1,8 milhões de mortes. A classificação anatomopatológica aponta para 85% de câncer de pulmão não pequenas células (CPNPC), na sua maioria diagnosticado como doença metastática ou localmente avançada. Até a virada do século, o tratamento paliativo consistia essencialmente em quimioterapia citotóxica, proporcionando o decepcionante resultado de 12 meses de sobrevida global mediana. Atualmente, a classificação molecular do adenocarcinoma brônquico passou a ser essencial na definição da estratégia de tratamento para doença metastática e localmente avançada. Evidências recentes, também apontam para um potencial benefício no cenário adjuvante. Alvos biológicos acionáveis no tratamento do adenocarcinoma brônquico incluem mutações no gene que codifica o receptor do fator de crescimento epidérmico (EGFR), quinase de linfoma anaplásico (ALK), oncogene ROS1, mutação BRAFV600E e, mais recentemente, fusões em RET, mutação em METHER2 e KRAS. Nas últimas duas décadas, diversos TKIs foram aprovados para tratamento do adenocarcinoma brônquico avançado, destacando-se inibidores de EGFR e ALK.  Existem três gerações de EGFR-TKIs: A primeira geração inclui gefitiniberlotinib e icotinib, a segunda geração é composta por afatinib e dacomitinib e a terceira geração abriga osimertinibalmonertinib e furmonertinib. Há, também, três gerações de inibidores de ALK, incluindo crizotinib, na primeira geração, alectinib e ceritinib na segunda geração e lorlatinib na terceira geração.  Estudos clínicos mostram benefícios no uso de TKIs ao serem comparados à quimioterapia tradicional, especialmente obtidos em pacientes que expressam mutações EGFR e translocação ALK. Muitos TKIs derivam aumento na sobrevida livre de progressão (SLP) e alguns já expressam desfecho favorável em sobrevida global (SG). Adicionalmente, a terapia alvo costuma ser menos tóxica que a quimioterapia, garantindo uma melhor qualidade de vida. No CPNPC com mutação em EGFR (deleção no exon 19 ou mutação de ponto L858R), a primeira linha de tratamento é com osimertinib, um TKI de terceira geração, pois ele aumentou a SLP desta população em sete meses quando comparado a TKIs de primeira geração. A opção preferida para tumores com rearranjo ALK são os inibidores de ALK de geração avançada, como alectinibbrigatinib ou lorlatinib. Em centro de alta qualificação a cronificação da doença é manifesta em estudos retrospectivos que relatam SG mediana de 8 anos na doença metastática. Translocação em ROS1 é altamente sensível a crizotinib e entrectinib, sendo preferível o último quando são detectadas metástases cerebrais, devido a melhor penetração através da barreia hemato-encefálica. Para tumores que carregam a mutação BRAFV600E, os guidelines atuais recomendam uma combinação dos inibidores de BRAF e MEK, (dabrafenib e trametinib, respectivamente). Outros alvos e moléculas estão descritos na tabelas abaixo.


Um dos maiores problemas enfrentados no uso clínico de TKIs é o desenvolvimento de resistência ao tratamento. Adicionalmente, a abundância de vias de proliferação e o cross talk entre diferentes sinais induzem um crescimento tumoral contínuo, afetando diretamente os efeitos inibitórios da terapia de alvo molecular. Como exemplo de resistência adquirida, destaca-se o surgimento da mutação p. T790M, a qual impede a ligação de EGFR TKIs de primeira e segunda geração ao seu receptor, o que ocorre em cerca de 60% da população. Para superar esse problema, foram desenvolvidos TKIs de terceira geração que se ligam de forma irreversível à EGFR, aumentando o efeito inibitório e eliminando um dos mecanismos de resistência.  Osimertinib é um EGFR TKI de terceira geração,  que apresenta atividade em tumores que expressam a mutação p. T790M. Infelizmente, mesmo EFGR TKIs de terceira geração, como osimertinib, estão sendo afetados por novas mutações associadas a resistência tumoral, como C797S. Novos esforços, entretanto, já estão em andamento com o desenho de EFGR TKIs de quarta geração ou até mesmo combinação de terapias-alvo  desenhadas para superar esse problema. Pesquisas futuras irão concentrar esforços em desvendar os mecanismos de resistência adquirida, explorar tratamentos combinados, definir a sequência terapêutica ideal e usufruir de novos modelos metafóricos descritivos.

 

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