Células em constante sobrevivência
Basso, J & Fleck, JF: Conexão Anticâncer 12(06), 2017
A oncogênese está fundamentada em características mutacionais da célula tumoral. Em 1976, Peter Nowel publicou na revista Science uma visão sobre a característica evolutiva dos clones neoplásicos. Em geral, os tumores derivam de uma única célula mutada. Devido às características de instabilidade genética e falhas nos controles de regulação, a célula tumoral fica mais propensa a desdiferenciar-se. Ocorre a heterogeneidade intratumoral. Passam a ser encontradas populações de células com componentes fenotípicos e moleculares distintos. Embora a heterogeneidade não seja evidenciada em amostragens tumorais limitadas, ela poderá ser um fator relevante para alterar tratamento e gerar resistência às drogas.
Um trabalho, publicado no New England Journal of Medicine em 1º de junho de 2017, avaliou a magnitude da heterogeneidade intratumoral em desfechos clínicos em 100 pacientes com carcinoma brônquico não de pequenas células ressecados. Consistiu em um estudo de coorte, multicêntrico, prospectivo, com recrutamento iniciado em abril de 2014. O estadiamento dos pacientes variou de IA a IIIA. Forem realizadas biópsias em pelo menos duas regiões tumorais separadas por margens de 0,3 a 1 cm, conforme o tamanho tumoral. Foi utilizada técnica de sequenciamento genético conhecida por high-depth, multiregional whole-exome sequencing. Foram analisadas mutações pontuais e de cópia. Foi tentado também estabelecer a temporalidade das mutações, criando uma arvore filogenética. As mutações presentes em todas as células eram definidas como clonais. Aquelas presentes em apenas um subgrupo eram consideradas como subclonais, vindo a ocorrer a posteriori no desenvolvimento tumoral.
A análise demonstrou extensa heterogeneidade intratumoral, ocorrendo com uma mediana de 30% de mutações pontuais e 48% de mutações copia. A característica subclonal, demonstra um processo mutacional ativo durante a formação tumoral. Os autores defendem também que sem a análise multi-regional, 76% das mutações subclonais pareceriam clonais. Outro dado interessante é a maior prevalência de mutações clonais nos carcinomas escamosos, provavelmente decorrente da maior carga tabágica, levando a uma maior e uniforme exposição carcinogênica nas células. As mutações drivers, aquelas fundamentais para a consolidação do tumor (EGFR, MET, BRAF, e TP53) foram em sua maioria clonais. No entanto, ocorreram alterações drivers tardiamente no desenvolvimento, em mais de 75% dos tumores (PIK3CA e NF1) Considerando os desfechos clínicos, encontrou-se correlação entre elevada heterogeneidade de mutações de copia com sobrevida livre de progressão, com hazard ratio de 4.9 (95% CI, 1.8–13.1) P=4.4×10−4, prejudicial a maior taxa de mutações.
O maior mérito do trabalho é a quantificação da heterogeneidade tumoral e sua repercussão clínica. É bastante lógico que uma célula já com tendência a mutagênese venha a sofrer transformação durante seu ciclo de vida e que após anos de tratamento estejamos enfrentando uma doença completamente diferente da inicial. Eventualmente, poderemos estar tratando apenas um subgrupo de células. Com o crescente número de drogas-alvo, tornam-se necessários novos estudos, visando esclarecer em quais situações deve-se rebiopsiar o tumor, quantas biópsias serão necessárias e qual a melhor forma de orquestrar a terapêutica.
Referências:
Nowel, PC. The clonal evolution of tumor cell populations. Science, Oct 1st, 1976
M. Jamal-Hanjani, G.A, et al. Tracking the Evolution of Non–Small-Cell Lung Cancer. NEJM June 1, 2017
“Conheces teu inimigo e conhece-te a ti mesmo” talvez não faça muito sentido na luta contra o câncer de pulmão. Por um lado, sabemos que as neoplasias geralmente são doenças genéticas; portanto, está dentro de nós mesmos a resposta de o por quê as desenvolvemos. Por outro, há tanta heterogeneidade dentro de um mesmo sítio tumoral que ele já não é mais feito da mesma “coisa” que a gente. Dados sobre a heterogeneidade da neoplasia auxiliam no desenvolvimento de terapias mais específicas e com maior poder tóxico apenas para as células tumorais, diminuindo os efeitos adversos para o paciente.
A heterogeneidade dos tumores representa um real desafio para a Medicina. Um tratamento que hora se mostrava efetivo, agora pode se mostrar resistente ou só conseguir agir em algumas das células tumorais existentes. Com certeza, é de se comemorar quando novas rotas bioquímicas de ação são encontradas e levantam a centelha de esperança, tanto do médico quanto do paciente. No entanto, não raro nos presenciamos com a polifarmácia em pacientes oncológicos e, se para cada mutação tivermos de usar uma droga diferente, corremos o risco de enfrentarmos cada vez maiores números de efeitos adversos e potenciais interações medicamentosas que podem prejudicar o paciente. A utopia é encontrar um "ponto comum" entre todas células tumorais, incluindo aquelas mutadas, e cada vez mais se avança em direção a esse objetivo. Porém, a estrada é longa, e talvez só tenhamos começado a caminhar agora.
Entender a natureza das mutações que levam a heterogeneidade intratumoral é de grande importância para que se possa chegar a novos protocolos de tratamento. Os estudos buscam cada vez mais entender a natureza que leva às várias mutações nas células tumorais fazendo com que um tratamento outrora eficaz se torne ineficiente ao longo do uso ou tempo. Conseguir mapear as diferentes células e suas mutações dentro de um tumor será um ponto importante para as futuras intervenções. Contudo a busca de reduzir o uso de muitas combinações medicamentosas para reduzir os efeitos adversos ao organismo deve ser tratada com cuidado. Com o aparecimento de novas técnicas em pesquisa cada vez mais temos chances de desvendar e solucionar mecanismos antes não entendidos.
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